Opinião
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2 de maio de 2018
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20:12

Crise de meia idade à brasileira (por Jorge Barcellos)

Por
Sul 21
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Crise de meia idade à brasileira (por Jorge Barcellos)
Crise de meia idade à brasileira (por Jorge Barcellos)
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Jorge Barcellos (*)

A tese de David Runciman (Piaui,139) de que até a democracia está condenada a passar para as páginas da história, de que o regime é mortal, é colocada da perspectiva de um americano que vê Donald Trump chegar à Casa Branca. “Sua eleição é sintomática de um ambiente político superaquecido que parece cada vez mais instável, fraturado pela desconfiança e pela intolerância entre as partes, alimentado por acusações insensatas e bravatas virtuais, um diálogo de surdos que se afogam mutuamente na balbúrdia”. Não parece claramente a descrição do que vem ocorrendo no Brasil? O próprio autor afirma que esse processo de dissolução da democracia ocorre em outros países, não só os Estados Unidos.

Mesmo que Donald Trump não seja o fim da democracia americana, é sintoma do fim. E o que vemos no Brasil? Diferente das instituições democráticas americanas, imaginadas para aguentar diversas crises, as instituições brasileiras são frágeis. Por isso o risco de que, depois do governo Temer, ao contrário do Governo Trump, o que venha é algo pior. Mas a questão de Runciman serve aos brasileiros: até aonde pode resistir a democracia brasileira?

Runciman evoca imagens da crise da democracia das décadas de 30 e 70 e com tanques nas ruas e repressão e o próprio governo Trump é comparado com tiranias do passado. O Brasil, ao contrário, mesmo com a imagem da ditadura militar, também dos anos 70, forja uma nova imagem repressiva, e por isso, o perigo de que a democracia brasileira esteja dando errado de outra maneira coincide com o medo do autor. Mas seu medo perde de vista, para os brasileiros, o sentido daquilo que o autor aponta, pois é justamente a “alvorada do fascismo, da violência e de uma guerra em escala mundial” que se trata. Os efeitos da prosperidade, da sociedade em rede e do conhecimento do que deu errado – a ditadura militar no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, não se tornou estruturas arraigadas.

“Quando a democracia chegar ao fim, o mais provável é que isto se dê de uma forma inesperada. Podemos talvez nem perceber que é o fim, porque estaremos olhando na direção errada”. Não é exatamente assim que estão as coisas no Brasil.

Primeiro porque o fascismo voltou com toda a força e garra. Ele voltou não nos poderosos, nos integrantes de Estado, ele voltou nas pessoas, numa classe média que prosperou no governo Lula e que não abre mão de suas vantagens. A violência que se estabeleceu não é uma forma física, ela é institucionalizada: quando é assassinada uma vereadora e as instituições mantém-se imóveis, sequer chegando a investigação do dar uma resposta a sociedade, estamos diante de uma violência contra a democracia. A escala é mundial – é o mundo das coisas que as pessoas têm acesso, seus direitos, suas formas de apelo à justiça que se torna ampliado em todos os sentidos.

As causas são sugeridas por Runciman: sim, os efeitos da prosperidade do país não atingiram a todos – problema da desigualdade; sim a democracia não se tornou uma estrutura arraigada após a Constituição de 1988. Sim, estamos olhando na direção errada. Como aponta o autor, a democracia brasileira, como a Latino-americana, foi precariamente estabelecida no país. O ciclo de direitos da Constituição de 1988 não se completou e sucessivos governos foram incapazes de finalizar o pacto contra a desigualdade. Runciman afirma que a persistência da democracia é uma questão de confiança: no caso brasileiro, perdemos muito cedo (30 anos) a confiança no resultado das eleições “as pessoas que tem algo a perder com o resultado de uma eleição precisam acreditar que vale a pena perseverar até o pleito seguinte. Os ricos precisam acreditar que os civis não irão tomar seu dinheiro. Os militares precisam acreditar que os civis não irão despoja-los de suas armas”. Está claro que se os militares podem descansar, que os civis não têm interesse em suas armas, e que os ricos não precisam temer que os pobres não irão tomar seu dinheiro, o que está claro é que na visão do autor, o que aconteceu no brasil foi muito pior, porque os ricos ao contrário, não satisfeitos com o que já tem, quiseram tirar tudo o que restava de dinheiro aos pobres – e aos servidores públicos, naturalmente.

A explicação da falência da democracia brasileira então não vem do seu passado, mas da agudização das condições de exploração de uma classe sobre outra no seu presente. Por isso a falência da democracia não leva a sociedade ao início, mas a impulsiona para o seu fim: fim das conquistas sociais, fim dos direitos, fim das condições de trabalho. Não se trata de “marcha a ré no processo de criação”, mas aceleração no processo de desagregação.

Ao contrário do que diz Runciman, os arranjos institucionais no Brasil nunca foram algo de grande confiança. Aqui e ali já desconfiávamos que as coisas não iam tão bem como desejávamos, ao menos, desde o segundo governo Lula. Você tinha eleições regulares, sistema de partidos organizados, campanhas públicas, mas ao mesmo tempo, uma matéria básica, a qualidade das candidaturas, nunca esteve à altura das instituições. Isso levou a constituição de legislativos apenas parcialmente democráticos e tribunais dependentes da opinião pública. Mesmo a imprensa, em que pese o nascimento de uma imprensa alternativa da qual Piauí é um exemplo, nunca deixou de apoiar esta ou aquela corrente dominante. Mas de certa forma, seguiram-se a predição de Runciman, de que “Todos eles podem continuar a funcionar da maneira habitual, embora sem nos proporcionar mais o que deveriam garantir”.

Nossa democracia, assim, esvaziava-se mais rapidamente que a democracia americana. Recorríamos a democracia e suas instituições para garantir nossa salvação, mas ao mesmo tempo, os sinais de seu distanciamento dos anseios populares não tardaram a vir: protelamento dos julgamentos dos assassinos de lideranças política, comunitárias, culturais até a retirada da presidência de Dilma Rousseff, tudo é parte da demonstração de que a democracia deixou de ser uma tábua da salvação.

As dificuldades vieram a cada eleição do período pós Constituição de 1988. A cada uma, como diz o autor, as pessoas perderam a confiança nos políticos, pois a cada assunção ao governo, deram motivos para desgosto. Não é o suficiente para a população se armar, é verdade, mas foi o suficiente para o surgimento dos Black blocs e outras formas de violência produto do desespero. As redes sociais estão repletas de cenas de pequenas violências políticas cotidianas, que levaram, por exemplo, ao suicídio de Plinio Zalewsky Vargas, em Porto Alegre, durante das eleições divididas entre Sebastião Melo e Nelson Marchezan Jr. A exasperação está no ar.

Runciman afirma que as democracias vivem sua crise de meia idade. Será que a explicação se aplica no Brasil? É uma crise relacionada com o esgotamento da democracia e sua volatilidade e complacência. O elemento que está presente em ambas crises, da americana à brasileira, não é nem um nem outro, é o terceiro elemento que o autor aponta, a raiva. A democracia esgotou-se no Brasil? Acredito que não, pois ainda há uma efervescente “resistência” protagonizada por uma centena de atores sociais, ONGs, entidades não formais estabelecidas recentemente que só podem existir num contexto democrático de debate de ideias. A democracia está em crise no Brasil porque é volátil e complacente? Em parte, sim, porque as instituições, especialmente o judiciário, deram provas recentes que agem com dois pesos e duas medidas, especialmente no que se refere ao julgamento de Lula. Mas não podemos desprezar a força da raiva citada por Runciman. É ela, no meu entender, que aciona todo o processo.

Ainda que a analogia de Runciman seja frágil porque não podemos reduzir a complexidade social ao comportamento humano da mesma forma que não podemos reduzir a economia de um país ao que se passa no lar, a ideia de que a democracia evoca sentimentos dos jovens tem lá seu lado promissor quando se trata de evocar as emoções.

Diz o filósofo Paul Virilio que nosso problema é que vivemos uma “democracia de emoção”, isto é, uma consequência da sociedade de massas onde impera a indústria cultural. A crise da meia idade vivida pelos Estados Unidos, na concepção de Runciman tem a ver com os rompantes dos líderes imaturos, o que revela a complacência do autor com o comportamento de seu presidente – Veja só, se não é um presidente arrogante e bon vivant, suas pretensões são exageradas, mas nós o elegemos, é verdade. Não é assim com a situação brasileira: um golpe de estado promovido por uma classe média conservadora apoiou uma articulação promovida pelo candidato derrotado e retirou uma presidente legitimamente eleita. Quer dizer, um golpe premeditado, organizado de forma lógica, que, entretanto, usou da emoção no estado público para ser construído, eis a questão.

A única aspiração a um mundo melhor de nossas elites é ao seu mundo. E para isso, puxam para trás todas as conquistas de 30 anos de uma caminhada por um mundo melhor. É pior que a hipótese de Runciman porque sequer tais grupos percebem que a democracia prestou bons serviços: ela não prestou bons serviços as elites e as classes medias recentemente promovidas, ela estava em vias de prejudica-las. O apelo ao populismo surgiu como saída e o fato de que Bolsonaro esteja bem posicionado só vem a confirmar isso. Mal havíamos formulado as condições do pacto democrático, que imediatamente emerge o modelo alternativo antidemocrático, ao contrário do que explora o autor. “Quando um indivíduo começa a se desestruturar, as vezes dizemos que ele ou ela está aos pedaços. Hoje, a democracia nos parece aos pedaços. O que não quer dizer que seja irrecuperável. Ainda não”.

Esse é o ponto chave. Numa democracia de emoção, falar de desestruturação do indivíduo não é uma metáfora, é real. Os cidadãos estão aos pedaços de forma real. Sua subjetividade está aos prantos. Sua emoção, raiva, é das consequências das políticas neoliberais, que afetando sua vida, afetam sua família, sua subjetividade. No momento em que escrevo estas linhas, o governo Nelson Marchezan deixa de pagar empresas que mantém a alimentação nas escolas municipais obrigando pais a irem as redes sociais denunciar, de forma emocional, que seus filhos passam fome; nesse momento, o governo Sartori parcela mais uma vez os salários de seus servidores, provocando corridas aos bancos em busca de empréstimos que desestruturam famílias.

As razões apontadas por Runciman para diferenciar a crise atual da democracia de outras servem para o Brasil? Ainda que a violência política seja diferente entre ambos os países, isso não significa que seja menor em escala e em seu caráter. Não é algo somente à espreita das margens do processo político, ela está no centro do palco. É violento o processo democrático, isto é, que se quer legitimo, que retira direitos trabalhistas; é violento o processo que retira do direito ao futuro, a reforma previdenciária; é violento o processo “dito” legitimo que retira uma presidente eleita. Onde está a redução da escala da violência? Porque não há sangue? Mas há o de milhões de brasileiros que morrem porque direitos à saúde são reduzidos? Qual é a diferença?

A segunda razão é a ameaça de uma calamidade, de uma catástrofe, que paralisasse as pessoas. Guerra atômica, mudança climática desastrosa, bioterrorismo, robôs assassinos – esta última não deixa de ser cômica quando pensada a realidade brasileira. Ora nossas calamidades são outras, mas não deixam de ser…calamidades: o caso Samarco e a ausência de punição, o perdão de dívidas de grandes bancos e personalidades, ela revela que frente ao capital, não são as pessoas que se paralisam, são as instituições. Ora, ao contrário, na catástrofe o fim da democracia não é o menor dos problemas, ao contrário, seu fortalecimento é a melhor solução.

O terceiro elemento é a revolução informática, que, no caso americano, é a dependência e compartilhamento de informações “que não controlamos e nem entendemos muito bem”. No Brasil, a única estrutura “inteligente” é realmente…burra: as redes sociais, veículos que poderiam servir para divulgação de informações, mobilização e conscientização, cada vez mais dão provas do contrário. Fake News, alienação e ampliação do pensamento de direita estão cada vez mais no centro das redes do que fora.

A democracia irá por isso terminar? Para o caso americano, a resposta é não. Para o caso brasileiro, acredito que a resposta seja talvez. Já se discute se haverá eleições e o que acontecerá no campo dos movimentos sociais com a prisão de Lula ainda é uma incógnita. “A morte da democracia é um processo lento”, afirma Runciman, mas não é difícil constatar que no Brasil está a passos largos. Mas se o autor está fixo na década de 30, é muito provável que nós, brasileiros, estejamos olhando o processo com os anos 70 na mente, e da mesma forma, “nossa obsessão com certos momentos traumáticos do passado corre o risco de nos cegar”. Concordamos que o futuro será diferente do passado, mas, da mesma forma que para os americanos, a posse de Trump é um novo ponto de partida, no Brasil, a prisão de Lula é o nosso. “Não foi o momento em que a democracia chegou ao fim. Mas foi um bom momento para começar a pensar no que pode significar o fim da democracia”.

(*) Historiador, Mestre e Doutor em Educação e Coordenador de Cursos da Escola do Legislativo da Câmara Municipal de Porto Alegre. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017), é colaborador de Le Monde Diplomatique Brasil, Sul 21 e mantém a coluna democracia e política no Jornal O Estado de Direito e página jorgebarcellos.pro.br.

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