Opinião
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17 de maio de 2018
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16:49

A interpretação dos fatos, os livros e a repressão política (por Franklin Cunha)

Por
Sul 21
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A interpretação dos fatos, os livros e a repressão política (por Franklin Cunha)
A interpretação dos fatos, os livros e a repressão política (por Franklin Cunha)
“Diz-se que a grande Buenos Aires tem mais livrarias do que em todo o Brasil”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Franklin Cunha (*)

O amigo Jorge Loeffler, do qual tenho a ventura de ser contemporâneo (e, infelizmente, não coetâneo) e com o qual comungo de sua avaliação política e social dos fatos, tocou num ponto crítico na interpretação do nosso tradicional analfabetismo interpretativo dos acontecimentos nacionais e globais. Explico com uma comparação com a vizinha Argentina.

Não é simples casualidade que nossos vizinhos tenham sido indicados para cinco prêmios Nobel: Bernardo Houssay de Medicina, Luis Leloir e César Milstein, de Química, Carlos Saavedra Lamas e Adolfo Pérez Esquivel , da Paz

Jorge Luis Borges, por supuesto também teve abundantes méritos para ser Nobel de Literatura, porém sua desastrada atuação política de apoio inicial às ditaduras do cone sul, obrigou a Academia Sueca a negar-lhe o prêmio. E não seria estranho se Juan José Sebreli, Ernesto Sabato, José Pablo Feinman, David Viñas e Hebe de Bonafini também fossem “nobelisados”. E talvez não seria absurdo também lembrar do nome de Daniel Barenboin, grande regente de orquestra, pianista e compositor como ganhador de outro Nobel da Paz. Isto porque, Barenboin e o escritor palestino-norteamericano Edward Said, organizaram e mantém uma orquestra sinfônica composta por músicos palestinos e judeus que percorre o mundo pregando a tolerância e a paz.

Certa vez Paul Groussac, o prolixo e culto escritor franco-argentino indicado em 1877 por Nicolás Avellaneda como organizador da Universidade de Tucuman, àquela época uma região povoada por indígenas e por desterrados “gauchos malevos” , observou que a Argentina era um país privilegiado pois tinha um poeta como Presidente, isto é, o próprio Avellaneda.

Desde essa observação de Groussac, a literatura argentina tem se destacado no horizonte intelectual sul-americano, com qualidade e intensidade muito fortes em reação aos países lindeiros. J.L. Borges em seu livro “ El mejor de Groussac , confessa a seus leitores que o intelectual franco-argentino qualificou positivamente a literatura argentina, livrando-a dos “floripondios, de las pomposidades y de las adjetivaciones inutiles”.E – acrescento – de algum regionalismo vulgar.

Certamente figuras de intelectuais de grande qualidade como os já citados e muitos outros, fizeram da literatura – pensando bem mais portenha do que argentina – uma das mais respeitadas e lidas do mundo.

Também devem-se considerar alguns fatores adicionais. Primeiro que o índice de analfabetismo sempre foi mínimo. Igualmente é importante assinalar o grande número de editoras e livrarias de língua espanhola. Ainda é do velho Borges a observação de que : “Buenos Aires és la ciudad de los restaurants y de las librerias”. E das inúmeras e grandes editoras da Argentina, (Ateneo, Sudamericana, Planeta) da Espanha (Espasa Calpe) do México (Fondo de Cultura Económica) todas publicando no idioma espanhol para uma extensa população leitora espalhada pelos cinco continentes , tornando a edição e venda de livros uma atividade econômica muito próspera.

Diz-se que a grande Buenos Aires tem mais livrarias do que em todo o Brasil. Pode não ser um dado verdadeiro, mas para quem circula pela Santa Fé, Corrientes, avenida de Mayo, Florida e adjacências, – e, claro, para quem além de tangos também se interessa por livros – fica estupefato com o número e a grandiosidade das livrarias. Recomento uma delas, a minha preferida: El Atheneo Gran Splendid, na avenida Santa Fé, um universo de livros num espaço belíssimo e grandioso de um antigo cine–teatro, o Gran Splendid. No teto, lindos afrescos nos fazem lembrar a Capela Sistina.

Enfim, fico pensando que, talvez, o grande número de intelectuais de qualidade e com inclinação politica de esquerda tenha sido uma das causas da brutal, ampla e prolongada atuação repressiva genocida dos militares argentinos que afinal, se mostraram tão eficazes em reprimir seu povo e tão pusilânimes, incapazes e covardes ao enviar centenas de jovens para a morte na trágica aventura das Malvinas.

(*) Médico, membro da Academia Rio-Grandense de Letras


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