Opinião
|
20 de abril de 2018
|
01:58

A terceira morte de José Antônio Daudt (por Ayrton Centeno)

Por
Sul 21
[email protected]
A terceira morte de José Antônio Daudt (por Ayrton Centeno)
A terceira morte de José Antônio Daudt (por Ayrton Centeno)
José Antônio Daudt (Reprodução/Youtube)

Ayrton Centeno (*)

José Antônio Daudt morreu três vezes. A primeira e mais conhecida de suas mortes aconteceu no prelúdio de uma madrugada de frio rascante, a de 5 de junho de 1988, após breve agonia no Hospital de Pronto Socorro. Decorrência de seu encontro, duas horas antes, com dois disparos de espingarda calibre 12, no portão de casa, na rua Quintino Bocaiúva, bairro Moinhos de Vento. Os pedaços de chumbo perfuraram-lhe coração, pulmão, pernas e braços. Tinha 48 anos. Dentro de pouco mais de um mês, este episódio lavado em sangue, dor e espanto completará três décadas. É a única de suas três mortes até hoje sem solução.

Daudt era uma figuraça. A ele devo o convite para trabalhar na TVE quando esta ainda se abrigava em algumas salas da Faculdade dos Meios de Comunicação Social, na PUC. Não rolou, então, por razões que não vem ao caso, como diria Sérgio Moro a propósito de lambanças de seus afins. Mas rolaria mais tarde e trabalharíamos juntos em outra TVE, já encarapitada no morro Santa Teresa.

No começo dos anos 1980, quando um incêndio atingiu os estúdios na Famecos, indagou-se se a emissora pública do Estado, largada ao relento, teria forças para reagir. Daudt não vacilou: no peito e na raça, caudilhescamente, galgou o morro e ocupou as instalações improdutivas da TV Piratini.

Em 1959, coubera à Piratini uma primazia: o ingresso do Rio Grande do Sul na era televisiva. Pertencia aos Diários e Emissoras Associados, do magnata Assis Chateaubriand. Mas os herdeiros e sócios de Chatô deviam os tubos para a União. Insolventes desde 1979, tinham tributos atrasados, processos às pencas e suas concessões de rádio e TV espalhadas pelo país estavam vencidas, entre elas a da Piratini. Então, os estúdios no cume de Santa Teresa aguardavam alguma audácia. E Daudt empunhou a sua.

Os governos federal e estadual, mais os Associados, acabariam acertando as pontas e a TVE arranchou-se no platô que descortina a mais deslumbrante vista da cidade e do rio. Em 1982, acolhido pela Rosvita Sauressig, chefe de telejornalismo, cheguei à TVE. Fui trabalhar com a Beth Corbetta, chefe da produção. Quando a TVE virou fundação, Daudt já havia passado adiante o bastão de comando mas permanecia na casa. Virei seu produtor em programas de debates. Entre quem apresenta e quem propõe a pauta e corta no suíte, nem sempre as coisas correm bem mas eu e ele tivemos convivência amena.

Certa vez, quando propus um debate entre representantes das comunidades palestina e judaica sobre o eterno conflito do Oriente Médio, foi Daudt quem me tirou de uma enrascada. Convidados, os palestinos toparam de cara mas o outro lado, além de recusar o confronto, pressionou o então governo estadual, de Jair Soares (PDS), para cancelar o programa. E ganhou a parada. Quando os palestinos quiseram saber das razões do cancelamento, resolvi contar exatamente o que aconteceu. Indignada, a comunidade denunciou o fato à imprensa e eu estive a ponto de perder o emprego. “Some por alguns dias, deixa isso esfriar”, aconselhou. Foi o que fiz.

Quando Daudt teve aquele encontro noturno fatídico, estávamos ambos distantes e distantes da TVE. Eu deixara o morro em 1984 e ele se elegera deputado estadual pelo PMDB em 1986, quando o Plano Cruzado enfunou as velas da legenda. O PMDB, então, era o partido de Ruy Carlos Ostermann, José Paulo Bisol, Leônidas Xausa e outros e não a gosma fétida de agora. Guardava laivos da luta civilizatória contra a ditadura e alguns lampejos de Iluminismo em vez do pântano de gedéis, cunhas, temers, padilhas e moreiras que hoje o devora. Ninguém, ao pensar na legenda, imaginava corridinhas com malas cheias de dinheiro, tramóias nos porões do Jaburu ou apartamentos atapetados com 51 milhões de reais.

Daudt fizera fama na TV como o irascível comentarista que dava socos na bancada, maldizendo os flagelos da cidade. O que terá lhe granjeado inimigos nunca se sabe quais nem quantos. Na tribuna da Assembléia, aporrinhava Pedro Simon, pouco importando fosse o governador do seu partido. Ou que tivesse sido justamente Simon quem o convencera a se candidatar. Descascava o governo, exigindo-lhe providências para sanar a crise na segurança pública.

Seu assassinato serviria para expor a esplendorosa ineficiência da estrutura policial. Até um deputado poderia ser morto como uma lâmpada que se apaga. Sem consequências. Houve um turbilhão de erros durante a investigação: a cena do crime não foi isolada e dezenas de curiosos pisotearam a área; o apartamento da vítima somente foi interditado na noite seguinte; as roupas que usava foram lavadas antes da perícia; demorou-se quatro dias para realizar busca em seu gabinete na Assembléia; uma fita de áudio recolhida teve dez trechos apagados não se sabe por quem; e delegados entraram em conflito durante as investigações.

Em meio à barafunda, Antonio Dexheimer, médico e colega de Daudt na Assembléia, também eleito pela chapa peemedebista, foi indiciado. Vera Mincarone, sua mulher, estaria apaixonada por Daudt. Enciumado, o marido teria dado fim ao idílio. O álibi de Dexheimer era frágil e todos os olhos se voltaram para o grande suspeito.

Se o assassinato já era bombástico por si só, a ideia de que outro deputado do PMDB pudesse ser o assassino era uma bomba de fragmentação no interior do partido. Assombrado por tão péssima notícia, Simon mexeu seus pauzinhos.

– Sim, eu interferi. Interferi da maneira que podia. Se tivesse avançado mais, teria prejudicado o Dexheimer. Foi o que admitiu à Zero Hora 20 anos depois (1). Convencido da inocência de Dexheimer, resolveu ficar do lado dele. Conforme Zero Hora, Simon “repassou informações acerca do andamento da investigação, deu conselhos e, encerrado o inquérito que indiciava Dexheimer, intercedeu junto à Procuradoria-Geral de Justiça para que a denúncia fosse encaminhada sem novas diligências”.

Depois disso que se poderia chamar de “pedaladas processuais” ou talvez de algo mais grave, Dexheimer compareceu ao Tribunal de Justiça em agosto de 1990. Parlamentar, foi julgado por 21 desembargadores e absolvido por 14 votos contra sete.

Em 2008, o crime prescreveu. A polícia teve 20 anos para encontrar o assassino e fracassou. Quem premiu o gatilho ficou livre para sempre. Foi a segunda morte de José Antônio Daudt.

A terceira morte está acontecendo agora. É lenta e dolorosa. Mas, ao menos, se conhece a autoria: o PMDB ou “MDB”, sua atual fachada. Aquele partido do qual Daudt era deputado está matando a emissora que seu arrojo carregou para o alto do morro e que sucessivos governos, de diferentes cores, lá a mantiveram.

Proposta por José Ivo Sartori – antigo colega de bancada de Daudt, hoje governador — a injeção letal aplicada à Fundação Piratini e a outras fundações estaduais foi aplicada pela Assembléia Legislativa em 2016. Contou com todos os votos do PMDB e dos partidos e parlamentares à direita do espectro político. A resistência dos funcionários da fundação e dos sindicatos e os embates judiciais impediram um desfecho imediato. Mas, agora, em 2018, está acontecendo.

Apequenada e convertida em departamento da Secretaria de Comunicação/RS, a Fundação Piratini, que abrange a TVE e a rádio FM Cultura, deixa de existir. Dissolve-se o Conselho Deliberativo, integrado por representantes da sociedade civil, incumbido de zelar pelo caráter publico da programação. Sucateada e rebaixada, esvaída da sua função pública, perdendo grande parte de seu quadro profissional e concursado, parece mesmo que o destino da TVE – e da FM Cultura — será tornar-se mero apêndice da propaganda governamental.

Na madrugada em que foi selada a sorte da fundação, os servidores deram as costas para os governistas. Não sem antes jogarem-lhes moedas, tachando-os de “vendidos” e “canalhas”. Gosto de imaginar que Daudt, pelo seu perfil de autonomia e intensidade, de algum lugar onde estiver, também lhes atirou uns tostões antes de virar-lhes as costas e socar a bancada com violência.

(1) Especial – “Caso Daudt: Simon admite ter ajudado Dexheimer”, em Zero Hora, edição de 02/06/2008.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora