Opinião
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8 de março de 2018
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10:00

Por que precisamos do 8 de março? (por Natalia Pietra Méndez)

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Sul 21
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Por que precisamos do 8 de março? (por Natalia Pietra Méndez)
Por que precisamos do 8 de março? (por Natalia Pietra Méndez)
Marcha do Dia Internacional da Mulher, em março de 2017, em Porto Alegre. Foto: Maia Rubim/Sul21

Natalia Pietra Méndez (*)

Todos os anos, próximo ao Dia Internacional da Mulher, escutamos declarações de quem acredita não ser necessária uma data como esta, afinal, após a segunda onda do feminismo, mulheres conquistaram, em boa parte do mundo, direitos políticos, liberdade sexual, acesso à educação e a trabalhos que anteriormente eram ocupados apenas por homens. Ouvimos, com frequência, perguntas sobre o que nós queremos já que temos liberdade de ser o que quisermos. Essa retórica afirma que a igualdade entre mulheres e homens é apenas uma questão de vontade individual. Argumenta que as oportunidades estão disponíveis a todos e todas e que cabe às mulheres realizar suas escolhas: ser dona de casa ou astronauta, ter ou não filhos, depende de cada uma. Com frequência, segmentos do feminismo repetem esta retórica quando reforçam uma lógica do empoderamento individual, sem considerar que as hierarquias de gênero conformam o mundo em que vivemos.

Como salienta a historiadora Silvia Federici, a tentativa de controle sobre os corpos femininos é um dos elementos estruturantes do sistema capitalista. Portanto, pensar que a igualdade de gênero pode ser superada a partir da iniciativa individual é uma posição confortável que só interessa a quem pretende a manutenção de uma sociedade discriminatória. Ou a um pequeno segmento de mulheres que conseguiram ocupar espaços privilegiados de poder. Mas cuidado, não raro estas mesmas mulheres privilegiadas vêm a público denunciar que foram vítimas de discriminações (salários inferiores, assédio, negativas de emprego). Foi o que aconteceu, por exemplo, em 2017, quando atrizes de Hollywood lançaram a campanha Time’s Up (contra o assédio sexual no ambiente de trabalho). Ou seja, nem mesmo aquelas mulheres que alcançaram as carreiras mais cobiçadas e melhores remuneradas estão a salvo de viver, cotidianamente, violências e segregações baseadas no gênero.

Ao longo da história do feminismo (que remonta ao surgimento das revoluções burguesas, final do século XVII), foram muitas os campos de luta e conquistas das mulheres. O acesso à cidadania formal, bem como a igualdade jurídica na maioria dos países, foram o resultado da chamada “primeira onda” feminista. A luta por igualdade salarial, por jornadas laborais dignas e pelo combate ao assédio nos locais de trabalho foram o mote das manifestações de mulheres operárias que, a partir do começo do século XX, passaram a reivindicar o caráter internacional de suas lutas.

A data do 8 de março remonta a este período e, ao que tudo indica, unificou atos que já aconteciam desde a segunda metade do século XIX nos Estados Unidos e Europa, promovidos por mulheres trabalhadoras, operárias socialistas, comunistas e anarquistas. As pesquisas mais recentes têm lançado dúvidas sobre o já mitológico episódio das mártires de Nova York, que teriam sido queimadas em 1857 durante uma greve. Ao que tudo indica, a data remonta a diversos antecedentes (greves de operárias, manifestações de mulheres na Rússia Czarista, dia da Mulher Trabalhadora que já era comemorado em alguns países da Europa e nos Estados Unidos). Em 1910, na Segunda Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, foi aprovada a adoção desta data para marcar a defesa das mulheres trabalhadoras do mundo.

A partir da segunda metade do século XX, as pautas feministas foram ampliadas e se acentuou a heterogeneidade deste movimento. O feminismo ressurge com toda a força nos anos 1960 e 70. Este período foi caracterizado pela influência de diversas matrizes teóricas e reivindicações. Além da luta pela cidadania feminina, temas vinculados à igualdade salarial, a autonomia sobre o corpo e sexualidade ganharam evidência. Composto até então, majoritariamente por mulheres das camadas médias, o movimento foi confrontado a discutir as pautas de grupos que, historicamente, não se sentiram representados pelo feminismo de matriz branca, ocidental e heterossexual. A organização de mulheres negras foi crescente em todo o mundo, principalmente nos países de passado escravocrata – como Estados Unidos e Brasil. Por sua vez, mulheres lésbicas chamavam a atenção para o fato de que a liberdade sexual almejada pelo feminismo deveria incorporar a crítica à heteronormatividade. Ao mesmo tempo, nos chamados países periféricos ou de terceiro mundo, vozes femininas questionaram a capacidade de representação de um sujeito “mulher” universal. Denunciavam os efeitos dos contextos econômicos, políticos e religiosos nas relações de gênero. Como não levar em conta os impactos do colonialismo e imperialismo sobre as mulheres? O feminismo se deparou com a problemática do caráter fluído e fragmentado do sujeito mulher, o que representa uma dificuldade e, ao mesmo tempo, um desafio de pensar pautas comuns às mulheres do mundo que são atingidas por diversas formas de opressões.

Este caráter heterogêneo do movimento tem se acentuado no feminismo do século XXI, que, se caracteriza pelo crescimento de grupos organizados ou mesmo pelo ativismo individual. Através da tecnologia, pequenos grupos podem promover sua militância e alcançar um expressivo número de pessoas. Ao mesmo tempo, o uso das tecnologias tem proporcionado o fortalecimento do feminismo com caráter global, unificando as ações de mulheres de diversos continentes que reagem a uma nova onda conservadora. Por exemplo, no ano de 2017, o 8 de março, Dia Internacional da Mulher, envolveu organizações de mulheres de mais de 46 países pelo fim da violência (com importante destaque na América Latina para a palavra de ordem Ni una a menos) e em defesa da igualdade salarial e o combate à pobreza. A data também teve como mote a resistência feminista contra o avanço de governos conservadores que ameaçam direitos conquistados pela população feminina. Nos Estados Unidos, lideranças feministas como Angela Davis, Nancy Fraser e Linda Alcoof lançaram o manifesto: “Mulheres dos Estados Unidos, vamos fazer greve. Vamos nos unir e assim Trump verá nosso poder.”[1]

No Brasil, a crise política e econômica que se acentuou após o Golpe de 2016 que depôs a primeira mulher eleita presidenta, se caracteriza pela implementação de ajustes de caráter neoliberal. Essa orientação tem provocado aumento do desemprego, fenômeno com maior impacto para a população feminina. O Informe PED Mulher 2018, elaborado pelo DIEESE e pela FEE, apresenta um panorama anual da participação das mulheres no mercado de trabalho na Região Metropolitana de Porto Alegre.[2] A pesquisa aponta que em 2017 foi registrada a maior retração na ocupação da força de trabalho feminina de toda a série histórica. Com efeito, as mulheres são o grupo populacional que mais têm perdido postos de trabalho e que apresentaram maior aumento no tempo de procura por um emprego.

Os dados da pesquisa PED indicam que a população feminina voltou a ser a maioria entre os desempregados: eram 48,6% em 2016 e passaram para 50,4% em 2017. Outro dado preocupante da pesquisa é o crescimento do desemprego entre mulheres que são as principais responsáveis pelo sustento do lar. Nota-se que o resultado imediato da crise é a precarização generalizada dos postos de trabalho, o que atinge primordialmente as mulheres. A pesquisa registrou, pelo terceiro ano consecutivo, um aumento da ocupação feminina no emprego doméstico, com um crescimento de 16,1% entre as diaristas e redução de 1,2% entre as mensalistas.

Além da maior vulnerabilidade econômica, a população feminina brasileira convive com um nível elevado de violência de gênero. A taxa de feminicídios é de 4,8 para 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ou seja, o Brasil é o quinto país mais perigoso para as mulheres. Segundo o Mapa da Violência 2015, na última década o percentual de homicídios de mulheres brancas teve um decréscimo de 9,8% ao mesmo tempo em que houve um aumento de 54% de mortes em que as vítimas eram mulheres negras.[3] Estes são alguns dados que demonstram a necessidade de pensar o dia internacional da mulher como um momento de reflexão sobre as formas como opressões de gênero, classe, raça, sexualidade, entre outras, se articulam para a manutenção das hierarquias sociais.

O espaço deste texto é pequeno para enumerar todas as razões pelas quais nós precisamos de um dia mundial de mobilizações que enfoque as condições de desigualdade em que vivem a imensa maioria das mulheres no mundo. Salientar o caráter histórico do 8 de março é fundamental para que esta data não seja esvaziada do seu sentido e transformada em um evento comercial de exaltação à mulher. No Brasil, este ano será um dia de lutas contra a violência que todos os dias nos atinge, contra a reforma da previdência que ameaça ainda mais o direito a um futuro digno. Será um dia de enfrentar nas ruas a onda conservadora que quer a retirada dos poucos direitos conquistados. Um dia para denunciar discursos retrógrados e misóginos, para dizer que não aceitaremos que homens ricos, brancos e privilegiados decidam nossos direitos sexuais e reprodutivos. Voltando ao início deste texto, precisamos do 8 de março porque ser mulher ainda representa um risco à nossa vida, um obstáculo para o acesso a direitos sociais, políticos e humanos. O 8 de março será necessário sempre, enquanto nós, mulheres, constituirmos a maioria da população entre os mais pobres do mundo e formos as mais atingidas pela falta de trabalho e pelos empregos precários. A história das mulheres é feita todos os dias e em todos os 8 de março, data simbólica das nossas lutas e resistências.

(*) Professora do Departamento de História/UFRGS

Notas:

[1] O manifesto está disponível em: https://www.theguardian.com/commentisfree/2017/feb/06/women-strike-trump-resistance-power

[2] Disponível em: https://www.dieese.org.br/analiseped/mulheresPOA.html

[3] Disponível em: https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf

 


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