Opinião
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17 de março de 2018
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11:40

É lícito um Estado ameaçar outro com o uso da força? (por José Monserrat Filho)

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Sul 21
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É lícito um Estado ameaçar outro com o uso da força? (por José Monserrat Filho)
É lícito um Estado ameaçar outro com o uso da força? (por José Monserrat Filho)
CIVIL DEFENSE IDLIB/FOTOS PÚBLICAS

José Monserrat Filho (*)

“O mundo não está ameaçado pelas pessoas más, e sim por aquelas que permitem a maldade.”
Albert Einstein (1)

Vivemos num mundo de ameaças. A natureza da Terra está ameaçada em pontos cruciais, como a atmosfera (aquecimento global), os oceanos, os rios, as florestas, as cidades. O planeta pode sofrer um colapso global, como adverte o Relógio do Apocalipse, criado em 1947 pela Associação dos Cientistas Atômicos dos EUA e ainda em ação. O Relógio marca atualmente dois minutos para a meia-noite, a hora da grande hecatombe. Como se isso não bastasse, Estados poderosos lançam ameaças a outros Estados, em plena corrida armamentista da nova Guerra Fria, que atemoriza o mundo de forma crescente. O perigo nuclear, devidamente modernizado, avança e torna-se cada vez mais possível e até mesmo provável.

Ameaçar significa intimidar, meter medo, apavorar, intimar, pressionar, avisar, cafangar, cominar, inquietar, intranquilizar, simular, fingir, aterrorar, sobressaltar, advertir, espavorizar, espavorir, aterrorizar, assustar, amedrontar, roubar a paz. (2)

“Todos os [Estados] membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas”, reza o Artigo 2 (§4º) da Carta das Nações Unidas, de 1945 (3). Portanto, não apenas o uso da força é ilegal, como também a ameaça de uso da força. Mas a definição de ameaça de uso da força, também princípio básico do Direito Internacional Contemporâneo – que tem na Carta das Nações Unidas o seu documento central – está ausente da Carta e é escassa na literatura especializada. Não por acaso, nenhum país que ameaçou outro ou outros, desde 1945, foi julgado até hoje por esse motivo.

Há exceções, claro. O Dicionário de Direito Internacional, publicado na União Soviética em 1988 pela Editora Progresso (2), com tiragem de 9,8 mil exemplares, assim descreve o conteúdo do vocábulo jurídico ameaça ao uso da força: “Ações violentas de um Estado, que ameacem os direitos de outro Estado. Exemplo de tais ações, incompatíveis com o princípio da proibição da ameaça ou uso da força, são as demonstrações marítimas realizadas nas proximidades do litoral de outro Estado; a concentração de forças armadas e armamentos nas fronteiras, em quantidade que excedem as habituais, etc. A ameaça de recorrer à força não pode ser classificada como agressão, já que a maior característica da agressão é infringir a inviolabilidade territorial ou a independência de outro Estado. Por isso, a ameaça de usar a força não concede o direito de recorrer à defesa. A réplica lícita a tal ameaça são as ações de idêntico caráter e as ações diplomáticas, inclusive a solicitação ao Conselho de segurança para que exerça suas atribuições, conforme os capítulos VI e VII da Carta das Nações Unidas.”

Ameaçar com o uso da força não é agressão, mas é crime. Sob esse prisma, a ameaça de uso da força por um país, embora não possa ser definida como agressão por não violar o território, nem a independência de outros países, é crime grave, pois pode provocar o uso da força (a guerra) entre países e afrontar a paz mundial.

“Criar uma reputação assustadora.” É o que recomenda Robert Greener, cidadão americano formado em Estudos Clássicos, autor do livro 33 Estratégias de Guerra, aos países interessados em promover uma guerra. Ele explica: “Essa reputação pode ser criada com várias condutas: ser difícil, teimoso, violento, de uma eficiência sem piedade. Monte essa imagem ao longo dos anos e as pessoas recuarão diante de você, tratando-o com respeito e um pouco de medo. Você precisa criar sua reputação com cuidado, não deixando passar nenhuma incoerência.” (5) Ou seja, você deve ser duro, muito duro. É isso o que constrói uma ameaça real e efetiva, na hora escolhida.

“A Lei da Guerra se baseia no engano.” Quem afirma isso é Sun Tzu, autor do célebre trabalho A Arte da Guerra, escrito há 2500 anos e tido como “o maior tratado de guerra de todos os tempos”. Segundo Sun Tzu, “o general sábio deve criar situações que lhe sejam favoráveis. Isso significa tirar partido do campo, do tempo e das vantagens que apareçam. A Lei da Guerra se baseia no engano. Finja ser incapaz quando puder atacar e capaz quando não puder. Se está longe, pareça estar perto; se perto, pareça estar longe. Use iscas para atrair o inimigo”. (6) A ameaça de uso da força também pode ser recurso de uma estratégia de engano, de engodo, de trapaça. Afinal, para Sun Tzu, “a arte suprema da guerra é subjugar o inimigo sem lutar”.

“Claro que a ameaça de usar uma ação militar para coagir um Estado a fazer concessões”, sentencia o Prof. Oscar Schachter, em seu livro International Law in Theory and Practice, de 1991 (7). A seu ver, “em muitas situações o uso de forças militares ou mísseis tem objetivos não declarados, e seu efeito é um equívoco. Mas a preponderância do poderio militar em certos Estados e em suas relações políticas com Estados potencialmente alvos pode levar, de modo justificável, à inferência de ameaça de uso da força contra a independência política do Estado alvo. Um exame das circunstâncias particulares é necessário para se chegar a tal conclusão, mas a aplicação do Artigo 2 (§4º), em princípio, dificilmente pode ser negada”. Schachter acrescenta: “Curiosamente, o Artigo 2 (§4º) não tem sido invocado para proibir de forma explícita ameaças implícitas. A explicação pode estar nas sutilezas das relações de poder e na dificuldade de demonstrar uma intenção coercitiva. Ou talvez, de modo mais realista, pode ser uma manifestação de reconhecimento geral e de tolerância face às disparidades de poder e de seu efeito na manutenção de relações dominantes e subordinadas entre Estados desiguais. Mas tal tolerância, por mais ampla que seja, não é ilimitada. Uma ameaça de força flagrante e direta para obrigar outro Estado a entregar território ou fazer concessões políticas substanciais (não exigidas por lei) teria que ser vista como ilegal nos termos do Artigo 2 (§4º), se as palavras ‘ameaça de [uso da] força’ tiverem algum significado.”

“Um boicote poderá ser considerado pelo Conselho de Segurança [das Nações Unidas] um caso de ameaça à paz, e condenado, mas ele não violaria o Artigo 2 (§4º)”, escreveu o Prof. Celso D. de Albuquerque Mello (1937-2005), citando (8) o Prof. Hans Wehberg (1885-1962), autor do livro The Problem of an International Court of Justice, cuja última edição saiu em 2015. Outra obra de Wehberg, The outlawry of war (O Crime da Guerra) reúne conferências proferidas na Academia de Direito Internacional de Haia, Países Baixos, e no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra, Suíça. Boicote internacional – há que elucidar – é ação ou política destinada a causar dano de forte impacto a outro país ou países e a organizações intergovernamentais e não-governamentais, inclusive empresas privadas. Não raro, sanções impostas por um ou mais países a outros países não passam de boicotes para sabotar a economia e o desenvolvimento nacional desses países.

Um livro inteiramente dedicado ao tema alcançou grande êxito. É The Threat of Force in International Law (A Ameaça da Força no Direito Internacional), de Nikolas Stürchler (9), publicado no Reino Unido pela Cambridge University Press em 2007. De acordo com Stürchler, “em junho de 1945, os signatários da Carta das Nações Unidas concordaram com a formulação do Artigo 2 (§4) tal como foi preparado pelo Departamento de Estado dos EUA antes das conversações de Dumbarton Oaks [Patrimônio histórico no bairro de Georgetown em Washington]. Por consenso informal de seus redatores, o objetivo, como logo ficaria claro, era reformular a linguagem da Convenção da Sociedade das Nações, cuja proibição da “guerra” carregava o estigma do fracasso; a Convenção fracassara em conter a violência entre países de 1919 a 1945”. Com a Guerra Fria proclamada em 1947 – dois anos apenas depois de lançada a Carta das Nações Unidas –, o clima internacional cresceu por inteiro na direção contrária à aplicação de seus princípios. Stürchler anotou: “Para o melhor ou para o pior, e talvez para uma escala maior do que os signatários de São Francisco esperavam, eles deixaram o refinamento da regra da não ameaça para uma futura prática.” Que, diga-se sem meias palavras, nunca chegou.

Ante todos estes depoimentos de alto nível, não há como impugnar o princípio da “ameaça de força” ou da “ameaça de uso da força” nas relações internacionais. Quem retira dessa norma o seu valor legal imperativo, provavelmente não está efetivamente interessado na necessidade – hoje mais imprescindível que nunca – de cooperação, respeito e confiança entre os países, para garantir a sobrevivência do nosso Planeta e da espécie humana – até agora única no Universo.

(*) José Monserrat Filho, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), ex-Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional do Ministério da Ciência e Tecnologia (2007-2011) e da Agência Espacial Brasileira (AEB) (2011-2015), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, e Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica. Ex-diretor da revista Ciência Hoje e editor do Jornal da Ciência, da SBPC, autor de Política e Direito na Era Espacial – Podemos ser mais justos no Espaço do que na Terra?, Ed. Vieira&Lent, 2017. E-mail: <[email protected]>.

Referências

1) Albert Einstein, físico, criou a Teoria da Relatividade, nasceu em 1879 em Ulm, Alemanha, e faleceu em 1955 em Princeton, EUA.

2) Ver <www.sinonimos.com.br/ameacar/>

3) A Carta das Nações Unidas <www.unric.org/html/portuguese/charter/Cartaun .pdf>) foi assinada por 50 países em São Francisco, EUA, em 26 de junho de 1945, na Conferência que criou a Organização das Nações Unidas. A ONU entrou em vigor no dia 24 de outubro do mesmo ano de 1945, quando a Alemanha Nazista e a Itália fascista foram fragorosamente derrotadas na 2ª Guerra Mundial, que causou a morte de mais de 50 milhões de seres humanos, entre militares e civis. O Estatuto da Corte Internacional de Justiça é parte integrante da Carta.

4) Diccionario de Derecho Internacional, URSS, Moscú: Editorial Progreso (publicado em russo em 1982, pela Editora Relações Internacionais, e traduzido para o espanhol, em 1988), pp. 17-18.

5) Greene, Robert, 33 Estratégias de Guerra, Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2013, p. 75. Nos EUA, esse livro foi lançado em 2006.

6) Tzu, Sun, A Arte da Guerra, tradução e adaptação de André da Silva Bueno (tradução direta do chinês), S. Paulo: Jardim dos Livros, pp. 31-32. Sun Tzu (545 aC—470 aC) era um general chinês, estrategista militar, escritor e filósofo que morou no período oriental de Zhou da antiga China. Sun Tzu viveu 75 anos bem antes de Cristo.

7) Schachter, Oscar (1915–2003), International Law in Theory and Practice. Professor de Direito Internacional e Diplomacia, assessor das Nações Unidas, formado pela Escola de Direito da Universidade Columbia, EUA.

8) Mello, Celso D. de Albuquerque Mello, Curso de Direito Internacional Público, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 8ª edição, 1986, p. 1020. O Professor Celso Mello lecionou nas Faculdades de Direito da Universidade Federal do RJ, da Pontifícia Universidade Católica do RJ e do Centro Universitário Bennett. E foi também Juiz do Tribunal Marítimo, como especialista de Direito Internacional Público.

9) Stürchler, Nikolas, The Threat of Force in International Law (A Ameaça da Força no Direito Internacional), publicado no Reino Unido pela Cambridge University Press, em 2017. Stürchler é pesquisador sênior do World Trade Institute e professor visitante de Direito Internacional e Direito Constitucional na University of Basel, UK. Ver, em especial, o primeiro capítulo.


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