Opinião
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10 de março de 2018
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10:47

As vinhas da Reforma Trabalhista (por Pedro Henrique Koeche Cunha)

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As vinhas da Reforma Trabalhista (por Pedro Henrique Koeche Cunha)
As vinhas da Reforma Trabalhista (por Pedro Henrique Koeche Cunha)
Cena do filme “Vinhas da Ira”, de John Ford. (Divulgação)

Pedro Henrique Koeche Cunha (*)

Em seu clássico As Vinhas da Ira, publicado em 1939, o vencedor do Nobel de Literatura John Steinbeck retratou o tortuoso e cruel caminho de famílias de meeiros estadunidenses que, assoladas pela Grande Depressão vivida pelo sistema capitalista à época e expulsas pelos bancos das terras onde trabalhavam, rumaram da região de Oklahoma ao oeste estadunidense em busca de uma vida melhor e, sobretudo, de oportunidades de trabalho. A narrativa gira em torno da família Joad e tem como protagonista Tom Joad, que acabara de sair da prisão para retornar ao seio familiar e fora surpreendido com a necessidade de partir da região em que sua família trabalhava há décadas.

Embora contrariados com a repentina expulsão das terras das quais eram arrendatários, os Joad – e outras milhares de famílias – foram atraídos à Califórnia por folhetos amarelos espalhados pela região, que anunciavam a existência de abundantes vagas de trabalho com bons salários em plantações do distante oeste estadunidense. Ao chegarem lá, contudo, jamais encontraram as vagas anunciadas, passando por sucessivas e intermináveis desilusões.

Assim como nos folhetos distribuídos aos Joad e seus conterrâneos nos Estados Unidos do início da década de 30, os defensores da reforma trabalhista brasileira aprovada em 2017 alardeiam que a nova legislação trará empregos aos milhões. O otimista anúncio dos “especialistas”, contudo, não parece se concretizar. De acordo com os dados mais recentes, o desemprego alcançou, em janeiro de 2018, a taxa de 12,2% [1] – percentual superior, inclusive, ao verificado quando da entrada em vigor da nova legislação.

Por outro lado, ainda que a propaganda se concretize, com a efetiva criação de novas vagas de trabalho, é preciso questionar que tipo de empregos serão criados. Ora, trabalho também existia para os Joad. Os donos das terras californianas ofereciam o pagamento de irrisórios vinte cents por hora de trabalho braçal no recolhimento de frutas. Ainda que o valor pago não fosse capaz de garantir sequer a alimentação de uma família, não faltavam trabalhadores dispostos a aceitar o encargo, em decorrência da criação de um exército de reserva por parte dos fazendeiros, que através das falsas promessas de vagas de trabalho acabaram por atrair milhares de pessoas à região e se utilizavam do excesso de mão de obra para pagar salários cada vez mais baixos.

A reforma trabalhista, por sua vez, teve a nada admirável capacidade de criar uma forma de “emprego” em que o trabalhador não sabe quantos dias trabalhará e tampouco quanto receberá ao final do mês. A nova forma contratual, chamada de “trabalho intermitente”, foi inspirada em reformas trabalhistas estrangeiras – como a espanhola e a britânica – que ficaram muito distantes de render os resultados positivos pretendidos [2].

Não foi preciso muito tempo para perceber que a nova modalidade contratual não é capaz de garantir um salário mínimo “capaz de atender a suas (dos trabalhadores) necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”, como determina a Constituição Federal no inciso IV do seu artigo sétimo.

Mesmo antes da entrada em vigor da reforma, grupos empresariais já se aproveitavam da nova forma contratual para anunciar a criação de vagas de “trabalho intermitente”. Exemplo disso foi o anúncio de setenta novas vagas, que partiu de redes de fast food que ofertaram o pagamento de vultosos R$ 4,45 por hora de trabalho, com jornada de cinco horas aos sábados e domingos, totalizando, assim, R$ 22,25 por turno de trabalho no final de semana [3]. Bingo: setenta “empregos” criados. A inescrupulosa oferta bem retrata os “novos empregos” possíveis de serem criados pela reforma: precários, despidos de garantias e direitos e com baixíssima remuneração.

Tal qual nos Estados Unidos dos Joad, trabalho existe. Não trabalha quem não quer. De acordo com o propagandeado, a reforma trabalhista tem o objetivo de privilegiar a autonomia da vontade e a liberdade de contratação. Convenientemente ignoram os defensores da nova lei que, assim como nos Estados Unidos da década de 30, no Brasil de 2018 vive-se num sistema em que é preciso trabalhar para poder viver. Nesse sistema, ou se aceita o trabalho existente, cujas condições são invariavelmente determinadas pelos empregadores, ou pode-se ter a “autonomia” e a “liberdade” de viver na penúria.

Em sua obra, Steinbeck narra o drama de miseráveis famílias de trabalhadores que não contavam com qualquer tipo de proteção ou de direitos positivados pelo Estado. O aparato estatal só apareceu, na saga da família Joad, na forma de polícia – e sempre para reprimir focos de organização dos trabalhadores. Quaisquer projetos de formação de sindicatos eram invariavelmente sufocados pela polícia e pelas associações de fazendeiros. A organização de uma greve culminou, no romance, no assassinato de Jim Casy, um pregador que buscava melhores condições remuneratórias para os trabalhadores de uma plantação que eram submetidos a pagamentos obscenos por dias de trabalho braçal.

É inevitável, também neste ponto, a comparação com o atual debate político brasileiro, em que crescem as vozes que atacam abertamente as organizações sindicais e, mais recentemente, chegam a pregar a extinção da Justiça do Trabalho. Num cada vez mais frequente discurso de patrocínio da desregulamentação e da extinção de direitos, é crescente a defesa de um Estado que só apareça para os mais necessitados na repressiva figura da polícia. O modelo de Estado ideal, para alguns, seria alcançado através de décadas de retrocesso, com a reprodução daquele existente na Grande Depressão estadunidense.

Em que pese as falsas narrativas de prevalência da autonomia e de criação de empregos, a reforma trabalhista aprovada em 2017 tem, em sua essência, a marca da precarização das relações de trabalho. Mas, como proclamou a matriarca de As Vinhas da Ira ao seu filho Tom Joad, “Calma, cê deve ter paciência. Olha, Tom, a nossa gente estará viva ainda quando já esse pessoal não existir mais. Nós vamos viver, Tom, iremos viver sempre. Ninguém pode destruir a gente. Nós somos o povo, vamos sempre pra adiante”.

Notas

[1] Dados oficiais do IBGE. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/desemprego-fica-em-122-em-janeiro-de-2018.ghtml>

[2] Vale citar, no ponto, as excelentes reportagens do El País sobre as reformas espanhola e
britânica: <https://brasil.elpais.com/brasil/2015/05/01/internacional/1430504838_853098.html>
e <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/16/economia/1497635788_119553.html>.

[3] Fonte: <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2017/10/31/empresas-ja-anuncia-vagasde-trabalho-intermitente-novidade-da-reforma.htm>.

(*) Advogado trabalhista – OAB/RS 104.10


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