Opinião
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16 de fevereiro de 2018
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15:52

Sobre um belo e vitorioso fevereiro quilombola (por Carlos Guedes de Guedes)

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Sobre um belo e vitorioso fevereiro quilombola (por Carlos Guedes de Guedes)
Sobre um belo e vitorioso fevereiro quilombola (por Carlos Guedes de Guedes)
Vitória no STF, ironicamente, incorporou um novo conceito à luta quilombola: a segurança jurídica para a conquista de novos territórios. (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Carlos Guedes de Guedes (*)

A vitória dos quilombolas no STF é a vitória de quem pensa o Brasil Rural como espaço de vida, cultura, tradição, produção e preservação ambiental, e não de quem pretende transformar nossas florestas, campos e matas na fazenda do mundo.

No primeiro ano do primeiro mandato do Presidente Lula, o direito dos quilombolas à terra, assegurado pela Constituição Federal, foi regulamentado pelo Decreto 4.887/2003 e questionado pelo DEM junto ao STF com o objetivo de inviabilizar a eficácia da política pública.

A ação do DEM pretendia bloquear qualquer ameaça ao projeto de expansão infinita das fronteiras agrícolas no Brasil, independentemente da condição dos biomas, das formas de uso da terra e de quem as ocupasse. A ação contra os quilombolas, assim como o ataque à reforma agrária, os questionamentos aos direitos indígenas e de comunidades tradicionais, a resistência à criação de unidades de conservação vão todos no mesmo sentido, o projeto de esvaziamento do campo. A chamada “argentinização” do Brasil já tinha meios financeiros e tecnológicos disponíveis e seus profetas armados, agora o foco era “segurança jurídica” para aumentar os limites da expansão.

A Suprema Corte brasileira demorou 14 anos para confirmar o direito das comunidades se autodeclararem, e terem suas terras regularizadas como remanescentes dos quilombos. Os efeitos dessa espera foram sentidos em cada um dos 1.536 processos de regularização. Anos separam o reconhecimento das comunidades, emitido pela Fundação Palmares, dos títulos das terras concedidos pelo Incra.

O Decreto 4.887/2003 nasceu do encontro da luta dos movimentos sociais quilombolas com o sentimento de República do governo brasileiro. Essa conjunção permitiu retirar da invisibilidade a história do Brasil construída pelo povo negro, que conquistou sua liberdade com luta e buscou vivenciá-la em comunidades oriundas dos quilombos. Esse mesmo sentimento de República moveu os governos Lula e Dilma para ampliar políticas públicas de saúde e educação, elevar o salário mínimo e redistribuir renda como nunca visto anteriormente no país.

Os governos Lula e Dilma ampliaram o acesso à terra, mesmo em um período de forte expansão do agronegócio. Buscou-se o equilíbrio entre as forças em contradição numa disputa pelo mesmo espaço, um Brasil Rural de diferentes significados para as partes. O resultado dessa mediação produziu importantes vitórias simbólicas com o reconhecimento de territórios quilombolas em áreas rurais e urbanas em todas as regiões do Brasil.

Os processos conduzidos pelo governo federal ganharam volume – são mais de 2 milhões de hectares em regularização – complexidade e, por consequência, tensão e conflitos. A opção do governo sempre foi pelo intenso diálogo, respeito a Constituição e aprofundamento do sentido democrático de tal ação civilizatória. Abrir o Palácio do Planalto a cada novembro da Consciência Negra, com novas conquistas do Programa Brasil Quilombola, portarias de reconhecimento e títulos de territórios era uma referência do significado da luta e da conquista.

Outra iniciativa relevante foi a constituição da Mesa Permanente de Acompanhamento da Regularização Quilombola. Inspirada no Decreto 8.423/14 da Política Nacional de Participação Social, contava com a presença de órgãos governamentais e do movimento social a fim de planejar, executar e avaliar cada passo na ação de regularização de territórios. A Mesa continuou produzindo resultados nos dias 20 de cada mês – em alusão ao 20 de novembro – mesmo depois do Congresso Nacional ter derrubado o decreto da participação, em mais uma iniciativa de interromper o caráter democrático do governo Dilma. O golpe de 2016 encerrou as atividades da Mesa Permanente, escancarando a falta de compromisso do governo ilegítimo com a democracia e com os direitos quilombolas.

Talvez, só a força de Xangô com as rédeas de 2018, possa explicar dois momentos tão emblemáticos de representação da luta do povo negro, em menos de uma semana nesse fevereiro de 2018. A vitória por 10 x 1 no STF, ironicamente, incorporou um novo conceito à vida e luta quilombola, um conceito caro a quem queria inviabilizá-la, a segurança jurídica para a conquista de novos territórios. E, quatro dias depois, o inesquecível desfile da Paraíso do Tuiuti com seu grito de liberdade e a denúncia sobre as novas formas de escravidão e dominação.

Após a decisão do STF, ao governo cabe o papel que a Constituição lhe reservou e que o Decreto 4.887/2003 corretamente traduziu: garantir as terras quilombolas do Brasil, para que assim como o morro Tuiuti de São Cristóvão, se tornem sentinelas da libertação.

(*) Analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário, ex-Presidente do Incra


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