Opinião
|
15 de dezembro de 2017
|
10:00

Ainda, e sempre, por uma sociedade sem manicômios! (por Simone Mainieri Paulon)

Por
Sul 21
[email protected]
Ainda, e sempre, por uma sociedade sem manicômios! (por Simone Mainieri Paulon)
Ainda, e sempre, por uma sociedade sem manicômios! (por Simone Mainieri Paulon)
“A atenção comunitária pode ser melhor custo-efetiva que a internação hospitalar, inclusive para atendimento às crises”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Simone Mainieri Paulon (*)

Nas últimas 5ª e 6ª feira, 07 e 08/12/17 a cidade de Bauru, SP, voltou a transformar-se em palco nacional da luta antimanicomial do Brasil. Reunindo em torno de 2000 pessoas, entre usuários dos serviços de saúde mental do SUS, trabalhadores, amigos e familiares, o evento que há 30 anos foi marco inaugural do movimento que resultaria na Reforma Psiquiátrica brasileira voltou a bradar em coro uníssono: “Nenhum Passo Atrás! Manicômio Nunca Mais!”

Mas por que 16 anos após conquistadas aprovações das leis Federal (10.216) e 25 anos, no caso do RS que aprovou a primeira Lei estadual (9.716), garantindo atendimento dos transtornos psíquicos prioritariamente inseridos na comunidade, com progressiva extinção dos leitos em hospícios, ainda precisaríamos levantar esta bandeira?

Quando o país inteiro se vê ameaçado em sua soberania, violentado no curso de seu processo de democratização e vilipendiado até em garantias constitucionais – como a presunção de inocência, ultimamente tão démodé – faria sentido alardearmos a problemática da loucura? Seria o momento de trazermos à tona uma questão aparentemente tão específica, como esta que diz respeito ao direito de atendimento adequado à saúde mental, em um Brasil que está retornando, segundo a ONU, ao mapa da fome no mundo do qual acabara de sair?

Pode parecer papo de louco àqueles leitores que não estejam por algum motivo pessoal ou profissional mais ligados ao tema, mas quero sustentar que sim, que a defesa de uma sociedade livre do flagelo manicomial é um problema da ordem do dia para todos nós.

O alinhamento ético, político e social que a Reforma Psiquiátrica brasileira fez à contemporaneidade não foi mais do que trazer para nossa realidade, tardiamente, parte das evidências colhidas em mais de 2 séculos de asilamento dos doentes mentais com seus resultados de cronificação, violações de direitos humanos e morbidade. Quando o Brasil, em 1990, torna-se signatário da Declaração de Caracas, na Conferência Regional para a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica na América Latina, assume o compromisso de promover saúde mental com base comunitária e local, de forma participativa, integral desativando grandes hospitais psiquiátricos para garantir os direitos dos portadores de sofrimento psíquico. As legislações do SUS e Reforma Psiquiátrica que daí decorreram são fruto desse longo processo de debates e orientações internacionais indicando os benefícios que o cuidado em liberdade traz às pessoas em sofrimento psíquico.

Dede então, a formação de uma Rede de Atenção Psicossocial começou a ser estruturada e mostra notáveis conquistas no atendimento à saúde mental, na garantia de direitos humanos, proteção social, trabalho, ocupações das pessoas com transtorno psíquico. A RAPS hoje conta com mais de 2000 CAPS – Centros de Atenção Psicossocial – mais de 800 Serviços Residenciais Terapêuticos, Unidades de Acolhimento e Convivência se espalharam e diversificaram as formas de atenção nas diferentes regiões e culturas do país. Oficinas
Terapêuticas criam alternativas não apenas de ocupação, mas também de geração de renda para usuários e seus familiares. Consultórios na Rua acessam pessoas em situação de vulnerabilidade que antes ficavam restritas ao circuito rua-prisão-hospício sem acesso a um modo de atenção que acolhesse suas singularidades. Entre 2002 e 2015 os leitos em hospícios diminuíram de 53 para 18 mil, mas segundo o Ministério da Saúde, hoje ainda existem no Brasil 25 mil pessoas internadas em 139 instituições com características asilares que deveriam estar desativadas segundo a Lei da Reforma Psiquiátrica.

Isto demonstra que a Política Nacional de Saúde Mental aprovada em 2001 com bases territoriais e princípios antimanicomiais avançou muito e resta ainda muito o que avançar. No entanto, no apagar das luzes de um ano de retumbantes retrocessos e aviltantes descasos às mais caras conquistas no campo das políticas públicas que este país já vivenciou , em um curto espaço de tempo que nele coube, a política de saúde mental não sairia ilesa.

Desconsiderando as 4 Conferências Nacionais de Saúde Mental com todos os indicativos que reforçam os princípios regidos na Lei 10.216 e alinhados às orientações internacionais para atenção às pessoas com transtornos psíquicos, o gestor público federal responsável pela área, dr. Quirino Cordeiro Júnior, lança uma proposta de revisão da Política Nacional de Saúde Mental para reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT).

Favorecendo nitidamente instituições privadas e de cunho religioso, como são as Comunidades Terapêuticas, formas insidiosas com que o fantasma manicomial se atualiza, e incluindo acintosamente os hospitais psiquiátricos como integrantes de uma Rede montada para ser Substitutiva a eles mesmos (?!) a proposta apresentada pelo gestor neste 14/12/2017 além de afrontar os princípios do SUS, dos Direitos Humanos e descumprir a Lei 10.216 vai na contramão da história e das evidências científicas internacionais neste campo.

Abordagens como do Open Dialogue utilizadas na Finlândia, da Gestão Autônoma da Medicação, desenvolvida no Canadá e já adaptada ao Brasil, e as alternativas largamente exploradas na Reforma italiana, espanhola, que se iniciam no Brasil com fortalecimento da Atenção Básica fornecem fartos elementos para demonstrar que a atenção comunitária pode ser melhor custo-efetiva que a internação hospitalar, inclusive para atendimento às crises.

Tudo isto permite constatar o que ficou lavrado na carta dos 30 anos de Bauru e que aqui reproduzo a fim de atestar a ideia inicial de que não é nenhuma loucura pensarmos que o desmonte pretendido à Política de Saúde Mental brasileira não agride apenas a quem hoje sofra diretamente as torturas diretas que possam representar um retorno à lógica manicomial:

“No Brasil, um processo de redução das desigualdades sociais, iniciado nos anos 2000, foi brutalmente interrompido pelo golpe de 2016, golpe que resultou, dentre tantos outros efeitos deletérios, na ampliação do processo vigente de privatização e na redução de recursos para as políticas sociais como moradia, transporte, previdência, educação, trabalho e renda e saúde. Vivemos um violento ataque ao SUS, com a diminuição do financiamento e a desfiguração de seus princípios de universalidade, equidade e integralidade. Nossa democracia, ferida, vive hoje sob constante e forte ameaça. Precisamos fortalecer a luta por um processo de educação permanente, por nenhum serviço a menos, nenhum, trabalhador a menos e nenhum direito a menos. Apesar desses graves retrocessos e dos riscos crescentes, os efeitos desses anos de livre e amoroso cuidado são indeléveis e duradouros. Acesa e viva mantém-se a nossa disposição de lutar contra tudo aquilo que é intolerável para a dignidade das pessoas e nefasto para seu convívio enquanto iguais: a exploração e a ganância, o manicômio e a tortura, o autoritarismo e o Estado de exceção. Tecemos laços de afeto e de solidariedade que nos acolhem na dor e nos protegem no abandono. Portanto, prosseguimos, com o mesmo empenho tenaz, na luta por uma sociedade sem manicômios.”

(*) Psicóloga, Dra. em Psicologia Clínica (PUC-SP), professora-pesquisadora da UFRGS.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora