Opinião
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20 de novembro de 2017
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12:35

A incorreta história incorreta de Leandro Narloch (por Erick da Silva)

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Sul 21
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A incorreta história incorreta de Leandro Narloch (por Erick da Silva)
A incorreta história incorreta de Leandro Narloch (por Erick da Silva)
“O jornalista busca situações que sejam apelativas e gerem acalorados debates nas redes”. (Reprodução/History Channel)

Nos últimos anos, o considerável sucesso de vendas da série de livros “Guia Politicamente incorreto da Historia”, escritos pelo jornalista Leandro Narloch, converteram o autor em uma espécie de “historiador público”. Sua presença se tornou corriqueira em grandes jornais, programas de TV, revistas, etc. Recentemente, seu “Guia Politicamente incorreto da Historia” foi transformado em programa de TV no canal History.

A Historia politicamente incorreta de Narloch, tem parte de seu sucesso explicada pela forma adotada. Numa linguagem não-acadêmica, destinada a um publico amplo, em particular aos jovens, o apelo ao “politicamente incorreto” busca dar ares de rebeldia frente a uma história supostamente “correta” e portanto careta. Temas que foram frutos de longas pesquisas são apresentadas como cânones a serem desmascarados por supostas “verdades inconvenientes”.

Quando confrontado, Narloch desliza em variações do seu prefácio no primeiro Guia: “Este livro não quer ser um falso estudo acadêmico, como o daqueles estudiosos, e sim uma provocação. Uma pequena coletânea de pesquisas históricas sérias, irritantes e desagradáveis, escolhidas com o objetivo de enfurecer um bom número de cidadãos.” Deixando explicita que a intenção principal é criar barulho, como forma de impulsionar as vendas.

Evidentemente que apenas um acerto na forma de sua narrativa não seria capaz de garantir a considerável amplitude da difusão do trabalho de Narloch. Além da já mencionada presença na grande mídia, conta com uma considerável promoção militante de suas obras por diversas think-tanks “liberais”, o que deixa muito claro a serviço de qual agenda política Narloch se insere.

Em termos gerais, os livros e artigos de Narloch obedecem um esquema básico que invariavelmente se repetem: descontextualiza-se um determinado fato ou personagem histórico que possuam algum apelo junto a setores populares ou cuja memória histórica seja reivindicada pela esquerda e se busca apontar (de forma anacrônica) situações que seriam incoerentes aos olhares contemporâneos.

É o que ele faz, por exemplo, com Zumbi dos Palmares, figura icônica da luta contra a escravidão negra no Brasil, ele afirma que Zumbi também possuía escravos. Esta afirmação não visa tornar mais complexa o personagem histórico, mas sim de retirar sua legitimidade.

Ele busca situações que sejam apelativas e gerem acalorados debates nas redes. Tática que induz a erros sobre o caráter da obra de Narloch. Um dos erros que alguns historiadores e críticos em geral cometem é classificar Narloch como um “polemista”. Nada mais longe da verdade, sua intenção real é criar ficções elitistas e racistas confortáveis e batizá-las de “politicamente incorretas”.

Os pontos de pauta de Narloch em sua Historia Incorreta são todos importados de “libertarianos” como Stephan Molyneaux ou de ultraconservadores como Pat Buchanan. Quando escreve sobre o Brasil, adapta esta “matriz teórica” em fontes conservadoras variadas (por vezes conflitantes ou incoerentes), principalmente em narrativas e mitificações históricas não especializadas ou já há muito superadas e defasadas. Os avanços de décadas de pesquisas históricas nas universidades brasileiras parecem ser seletivamente ignoradas pelo astuto jornalista.

Nada do que ele traz é novidade. No caso dos povos pré-colombianos, por exemplo, para sustentar uma tresloucada tese que os “indígenas devastaram a natureza mais do que os europeus” recorre a um amontoado de bobagens anti-indigenista requentadas das décadas de 1930-40.

Seja qual for o objeto da “polêmica” incorreta de Narloch, o caminho básico é invariavelmente o mesmo: se questiona ou problematiza dada situação histórica com o objetivo de inverter responsabilidades e papéis. Dentro de uma perspectiva elitista, ele busca sempre “absolver” e redimir aos poderosos da ocasião.

Para ilustrar este ponto, a forma como o tema da história da África é abordada por ele é significativa. Em um artigo publicado na Folha de SP onde polemiza com a escolha do tema da escola de samba Unidos do Tatuapé, “Mãe África conta a sua história: do berço sagrado da humanidade à abençoada terra do grande Zimbabwe.”, campeã do carnaval de SP de 2017, Narloch descarrega seu arsenal de preconceitos e “informações alternativas”. Seus argumentos, para dizer o mínimo, são um tanto distante daquilo que outrora chamava-se de “verdade histórica”.

Em dado momento, para justificar o equívoco de se reverenciar o legado do povo africano, ele afirma, citando Paulo Francis, que “A descoberta do clarinete por Mozart foi uma contribuição maior do que toda África nos deu até hoje”, e na sequência, completa: “Podemos ir mais longe em se tratando de um país específico. A última temporada de ‘Malhação’ foi uma contribuição maior que todo o Zimbábue nos deu até hoje.”

A forma desrespeitosa com que se refere a um país e a seu povo, dispensa maiores comentários. Em tempo: o clarinete foi inventado em 1690, 66 anos antes de Mozart nascer. Sem esboçar nenhuma intenção em problematizar e conferir alguma profundidade para seus argumentos, ele promove o achatamento da história em uma frase.

Sobre os problemas sofridos pelos países africanos, suas omissões dizem muito. Sem mencionar os séculos de empreitada colonial e a contínua rapinagem dos países ocidentais (e agora também da China) sobre as riquezas locais (ferindo soberanias e aprofundando desigualdades de natureza variadas), ou ainda as décadas de apartheid e as guerras civis, Narloch elege como vilões a descolonização e o “socialismo”. Os fundamentalistas religiosos, ditadores “liberais” e aspirantes à autocratas africanos desfilam em frente ao intrépido jornalista enquanto este esquiva-se e manda uma única mensagem: foquem no Zimbábue.

“Zimbábue” não passa de um inimigo metafórico para fortalecer uma tentativa de revisão triunfalista da “civilização ocidental”.

A “História alternativa” de Narloch pode melhor ser entendida como uma “alternativa à história”. Qualquer tentativa de “revisão histórica” sem evidência é ficção, devendo ser vendida como tal ou no máximo como uma “história incorreta”.

(*) Erick da Silva é historiador.


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