Opinião
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10 de julho de 2017
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03:10

A zona cinzenta do Escola sem Partido: Valter Nagelstein e o ensino do Holocausto (por Fernando Nicolazzi)

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Sul 21
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A zona cinzenta do Escola sem Partido:  Valter Nagelstein e o ensino do Holocausto (por Fernando Nicolazzi)
A zona cinzenta do Escola sem Partido: Valter Nagelstein e o ensino do Holocausto (por Fernando Nicolazzi)

Não é fácil nem agradável examinar esse abismo de maldade, mas eu penso que se deva fazê-lo, porque o que foi possível perpetrar ontem poderá ser novamente tentado amanhã, poderá envolver a nós mesmos ou a nossos filhos” (Primo Levi).

Ramiro Furquim/Sul21

Primo Levi, químico italiano que sobreviveu a Auschwitz, chamou de “zona cinzenta” uma situação bastante complexa que marcava algumas das formas de sobrevivência dentro dos campos de extermínio construídos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Tratava-se de um espaço impreciso, físico mas também simbólico, que tornava ambígua e ambivalente a separação entre vítimas e algozes, criando uma indecifrável proximidade entre o opressor e aquele que, de uma forma ou de outra, colaborava com a opressão. Para Levi, ela “possui uma estrutura interna incrivelmente complicada e abriga em si o suficiente para confundir nossa necessidade de julgar” (Os afogados e os sobreviventes, 1986).

O caso-limite dessa situação, como sugeriu o autor, foi a existência e o funcionamento dos chamados Sonderkommandos, “esquadrões especiais” formados predominantemente por prisioneiros judeus, cinicamente recrutados pelos oficiais da SS, aos quais competia de forma compulsória o gerenciamento prático do extermínio, organizando a fila daqueles que seriam mortos nas câmaras de gás, recolhendo primeiro seus pertences, depois seus corpos já sem vida, transportando os cadáveres para os fornos crematórios e, por fim, eliminando as cinzas da morte. Todo esse processo cruel de impor à vítima uma cumplicidade inescapável com seu algoz mostra o limite a que se pode chegar a torpeza humana, e foi retratado de forma intensa e impetuosa no filme Filho de Saul (2015), do cineasta húngaro László Nemes.

Dentro dessa “zona cinzenta”, os nazistas tentaram elidir a fronteira moral entre aquele que sofre o crime e aquele que o comete. Para Levi, este foi “o delito mais demoníaco do nacional-socialismo” e aponta para a impertinência de qualquer tipo de julgamento em relação a tais indivíduos: “acredito que ninguém esteja autorizado a julgá-los, nem quem conheceu a experiência do Lager (campo de concentração), nem muito menos quem não a conheceu”.

Eis, portanto, um dos fatos mais nefastos dentro da nefasta história do Holocausto, história que os professores e professoras da rede municipal de ensino de Porto Alegre têm a necessidade de ensinar, entre outras razões, por conta da Lei 10.965/2010, que prevê a obrigatoriedade do “ensino sobre Holocausto do povo judeu”. A lei é de autoria do vereador Valter Nagelstein (PMDB/RS), o mesmo que protocolou o PLL 124/2016, versão local da ideologia do Escola sem Partido, que está atualmente em tramitação na Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Este Projeto de Lei prevê a “imparcialidade política e ideológica na condução do ensino e na prática do magistério”, preconizando aos docentes “a abstenção da emissão de opiniões de cunho pessoal que possam induzir ou angariar simpatia a determinada corrente político-partidária-ideológica”.

O que cabe aqui ponderar é como conciliar uma coisa com outra, isto é, o ensino do Holocausto do povo judeu no conteúdo programático da história com essa concepção, equivocada em suas premissas epistemológicas e pedagógicas, de uma educação desprovida de qualquer dimensão política e ideológica (o que não significa, nunca é demais repetir, defender proselitismo partidário nas escolas). Ora, a própria Lei 10.965 não está ela mesma assentada em uma compreensão política e ideológica sobre a história, implicando em uma tomada de posição contra as formas de extirpação dos inimigos perpetradas pelos nazistas?

Mas as consequências do projeto defendido pelo correligionário do ex-deputado Eduardo Cunha são ainda mais perigosas. Pois, se caberá aos professores e professoras de história simplesmente “passar um conteúdo”, atendo-se imparcialmente aos fatos efetivamente ocorridos e verificáveis, qual deveria ser sua postura em relação a experiências de tão grandes proporções éticas e sociais? Imaginemos, por exemplo, a afirmação diante de uma turma de história de que judeus atuaram diretamente na morte de judeus durante o Holocausto. Considerada fria e imparcialmente, ela é comprovável com base em testemunhos históricos, como o de Primo Levi, e estaria plenamente de acordo tanto com a lei sobre o ensino do Holocausto, quanto com o Projeto de Lei do Escola sem Partido.

Seria preciso, porém, colocarmos uma pergunta mais importante: tal afirmação estaria igualmente de acordo com os valores sociais e éticos que esperamos ser discutidos na escola, valores que devem funcionar como garantias contra toda e qualquer forma de preconceito social e de violência? Não seria necessário, por parte do docente, um claro posicionamento diante deste tipo de fato, ou seja, uma posição que teria ela própria uma dimensão política e ideológica, sem com isso se tornar um discurso meramente partidário? A formação humana voltada para o bem público e para a justiça social não depende disso?

O PLL 124, portanto, falha em definir claramente o que ele propõe, criando brechas para situações perigosas. Em outras palavras, o tipo vago e impreciso de “imparcialidade política e ideológica” defendido por Nagelstein parece obrigar que os docentes se abstenham de qualquer tipo de posicionamento diante daquele tipo de afirmação, deixando margem para que, porventura, a vítima se transforme em culpada no breve tempo de uma aula. Assim, essa “zona cinzenta” aberta pelo Escola sem Partido acaba por se equivaler ao caminho mais curto para a abstenção ética, permitindo espaço para que posições autoritárias tomem lugar e que situações horríveis do passado, esses “abismos da maldade”, acabem por ser naturalizadas ali mesmo onde devem ser objeto de crítica, ou seja, na escola.

Obviamente, essa ponderação diz respeito aqui ao ensino da história do Holocausto, mas poderia ser colocada para outros tantos temas sensíveis de nossa sociedade que demandam uma sólida formação ética, como a história da violência contra as mulheres, a história da escravidão, a história do racismo, da homofobia, das exclusões sociais e assim por diante. Eis porque o projeto Escola sem Partido deve ser recusado e refutado por qualquer sociedade que se pretenda democrática e inclusiva.

Creio que Primo Levi definiu bem essas questões, ao dizer que “cada época tem seu fascismo: seus sinais premonitórios são notados onde quer que a concentração de poder negue ao cidadão a possibilidade e a capacidade de expressar e realizar sua vontade. A isso se chega de muitos modos, não necessariamente com terror da intimidação policial, mas também negando ou distorcendo informações, corrompendo a justiça, paralisando a educação, divulgando de muitas maneiras sutis a saudade de um mundo no qual a ordem reinava soberana e a segurança dos poucos privilegiados se baseava no trabalho forçado e no silêncio forçado da maioria” (Um passado que acreditávamos não mais voltar, 1974).

Por tais razões, não causa surpresa alguma que o mesmo vereador seja o autor dos dois projetos de lei mencionados. Sabemos que a ideologia Escola sem Partido adentrou as esferas dos poderes legislativos por solicitação da família Bolsonaro no Rio de Janeiro. Das formas mais variadas e condenáveis possíveis, inclusive em uma associação hebraica, os membros dessa família manifestaram seu ódio social e seus preconceitos raciais em relação àqueles ou àquelas que simplesmente vivem ou pensam de formas diferentes das deles.

Com tom não tão distante disso, Valter Nagelstein já afirmou publicamente sua intenção com o PLL 124: “extirpar” o que ele chama de “doutrinadores do ensino” que, no seu tortuoso raciocínio, seriam os responsáveis pela “derrocada da nossa educação”. O ensino da história, quando feito sem censuras ou mordaças, mostra muito bem outras situações em que se tentou, por meio de leis autoritárias e medidas de exceção, extirpar indivíduos considerados culpados pelos males de uma nação. O Holocausto foi uma delas.

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Fernando Nicolazzi, Professor do Departamento de História da UFRGS.

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