Opinião
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28 de janeiro de 2017
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14:26

Educação social e emocional: as perguntas que não fazemos às nossas crianças (por José Ovidio Copstein Waldemar e Gabriela Guimarães)

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Sul 21
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Educação social e emocional: as perguntas que não fazemos às nossas crianças (por José Ovidio Copstein Waldemar e Gabriela Guimarães)
Educação social e emocional: as perguntas que não fazemos às nossas crianças (por José Ovidio Copstein Waldemar e Gabriela Guimarães)
“Um bom currículo escolar é uma condição necessária mas não suficiente para a formação de uma criança” . (Foto: Marcello Casal Jr / ABr )

 José Ovidio Copstein Waldemar e Gabriela Guimarães

Imagine a seguinte cena: uma professora entra na sala de aula do quinto ano do ensino fundamental em uma escola pública e pergunta aos seus alunos: o que faz vocês se sentirem bem? E se sentirem mal? Alguém já ensinou vocês a como procurar se sentir bem? As perguntas pegam todas as crianças de surpresa. Elas nem sonhavam que esse tema pudesse ser “matéria de aula”. Questionadas, elas pensam no assunto e começam a falar. O que as faz se sentirem mal? Quando gritam com elas, quando os pais não dão atenção, quando os pais se ausentam, quando alguém goza da cara delas ou as agride de alguma forma…E o que as faz se sentirem bem? Quando são escutadas, recebem algum elogio, atenção, quando não brigam em casa…O que esse tipo de experimento pode ensinar aos educadores e em que medida ele pode ajudar na formação das crianças?

Há cerca de dez anos, uma equipe de profissionais do Instituto da Família de Porto Alegre (Infapa), uma escola de psicoterapia e clínica social, vem desenvolvendo um projeto de educação social e emocional junto a crianças de escolas da rede pública, na capital gaúcha. Esse projeto, baseado em trabalho voluntário até aqui, mobilizou 25 jovens psicólogos que dedicaram quatro horas semanais ao programa Sente, nome atual do projeto. Mais de 600 crianças já passaram por esse programa, com resultados muito positivos e animadores.

Uma pesquisa acadêmica publicada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) mostrou que 64 alunos da quinta série, que participaram de até 12 sessões do programa, tiveram uma melhora significativa em várias dimensões de saúde mental e qualidade de vida, quando comparadas com um grupo de controle de 68 outros alunos que não passaram pelo mesmo programa. Essa pesquisa foi publicada em março de 2016 na prestigiada revista Psychology and Neuroscience (http://psycnet.apa.org/journals/pne/9/1/79/).

Um projeto similar realizado em 2010 nos Estados Unidos com mais de 270 mil estudantes, de mais de 270 escolas, também mostrou resultados positivos. Os alunos, além de desenvolver uma melhor relação consigo próprios e com a escola, apresentaram melhores habilidades emocionais e sociais e um aumento de 11 pontos percentuais no desempenho escolar. Além disso, diminuiu tensões relacionadas ao estresse e à depressão, reduzindo também problemas escolares como indisciplina, agressividade e práticas de bullying.

A metodologia que anima esse programa foi inspirada no trabalho do psicólogo Daniel Goleman que, em 1996, publicou o livro “Inteligência Emocional”. Goleman e um grupo de educadores fundaram nos Estados Unidos uma organização chamada CASEL com o objetivo de promover o que chamaram de Social Emotional Learning, ou Educação Social e Emocional, em português. Em que consiste esse método, basicamente? A ideia central é que um bom currículo escolar é uma condição necessária mas não suficiente para a formação de uma criança. Ela precisa também se conhecer, refletir sobre as suas próprias emoções, como lidar com elas e como se relacionar com as emoções e sentimentos de outras pessoas. Em outras palavras, busca colocar em prática a máxima “trata os outros como gostarias de ser tratado”.

Seis professores do programa Sente, cada um com mais de quatro anos de experiência, estão já treinando   professores na aplicação do programa.

Nas aulas, ao longo de dez a vinte encontros semanais, são utilizadas vivências, conversas e jogos com o objetivo de ensinar os alunos a reconhecer e administrar as próprias emoções, aprender a se acalmar e a ter paciência ao lidar com situações adversas.

O projeto faz parte hoje de uma intervenção maior coordenada pela UBS Santa Cecília do Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina e apoiado pelo Departamento de Psiquiatria da Infância e Adolescência da UFRGS, chamado “Programa Viver Melhor na Escola”. Esse, dentro da Estratégia de Medicina de Família e Comunidade, oferece às escolas da área da UBS Santa Cecília várias atividades e consultorias, conforme as necessidades das escolas e os recursos disponíveis da UFRGS e da comunidade, criando uma rede de apoio e alternativas para o encaminhamento dos problemas trazidos tanto pela escola e pela comunidade.

A maioria dos mais de 600 alunos que já passaram pelo programa em Porto Alegre vieram de bairros da periferia da cidade. Cerca de 15% deles vivia em albergues, oriundos de famílias desestruturadas que não tinham condições sociais e emocionais para mantê-los em casa. Dos que moravam em casa, era frequente a mãe ser a chefe de família enquanto muitos pais estavam presos ou apresentavam ficha criminal. As escolas sugeriram que os alunos do quinto ano fossem o alvo prioritário da intervenção, pois este é o último ano em que os alunos têm um único professor e os professores do sexto ano queixam-se das muitas dificuldades de adaptação dos alunos ao sexto ano com os vários novos professores. A escola tinha a expectativa que a intervenção acalmaria os estudantes, o que, de fato, acabou acontecendo.

Aprender a reconhecer e a falar sobre os próprios sentimentos é, geralmente, o ponto de partida do programa. Os alunos são convidados a conversar sobre isso. Uma das turmas decidiu conversar sobre os conflitos familiares que viviam. Cada um escreveu um bilhete com algo que os incomodava na família. Para evitar constrangimentos e manter o anonimato, cada um lia o relato de outro colega. Depois, seguia-se uma conversa em uma grande roda sobre o que fazer para lidar com as situações levantadas. Os casos mais debatidos envolviam brigas entre irmãos e entre os pais. Outro temas frequentes foram os sentimentos de exclusão e inferioridade e a questão dos apelidos.

Em outra classe, a presença de uma psicóloga e professora de Yoga possibilitou introduzir vivências de integração corpo-mente, fazendo com que as crianças aprendessem a localizar no próprio corpo a manifestação das emoções. Outra prática utilizada envolve exercícios de respiração como técnica para acalmar e estabilizar as emoções. Em um relato posterior, um jovem contou que teve um desentendimento sério com um colega durante um jogo de futebol e que, ambos, se lembraram de fazer o exercício da respiração, o que evitou que partissem para a agressão física ou trocassem insultos mais graves.

Na mesma linha, os alunos participaram de práticas de diálogo colaborativo, de dinâmica de grupo e de comunicação não violenta, incentivando-os a escutar o outro com atenção plena, falar um de cada vez, sem ofender, e falar não só de idéias, mas também dos próprios sentimentos. Em alguns casos, o tema dessas conversas pode ser algo bem traumático como a morte de um ex-colega envolvido em uma briga de gangues do tráfico, uma realidade que, infelizmente, virou rotina em Porto Alegre, assim como em tantas outras cidades brasileiras.

Em um desses casos, a turma da escola na qual o aluno em questão estudava foi convidada a conversar sobre o caso, relatar os últimos contatos com ele e o que tinham sentido com a morte dele. Um aluno disse à professora que tinha se sentido aliviado com a morte do colega, pois ele o agredia verbal e fisicamente. “Achei que fez por merecer”, afirmou. Uma colega, por outro lado, contou que ela se sentiu ajudada por ele várias vezes, mas admitiu que ele também podia ser muito grosso. Um terceiro aluno disse que era vizinho do colega morto e relatou a grande tristeza da família com a perda do filho. Após esses e outros relatos, o aluno que havia dito inicialmente que tinha se sentido aliviado com a morte pediu para falar e disse que estava arrependido. Ele trocou o “achei que fez por merecer” por “ele só precisava aprender uma lição”.

No momento em que a violência física, verbal, emocional e simbólica invade nossos centros urbanos, esse tipo de prática mostra-se fundamental não só como uma condição de possibilidade de uma real aprendizagem na escola, mas também como um elemento necessário para romper com o macabro pacto de silêncio e angústia que cerca muitas vezes nossas crianças e adolescentes. Não falar sobre o que elas sentem diante dessa realidade implica alimentar essa cultura de violência e aumentar as possibilidades de sofrimento. Neste contexto, ao contrário do que alguns podem pensar, a educação social e emocional não é um acessório, mas uma prática fundamental para o presente e o futuro desses jovens.

(*) José Ovidio Copstein Waldemar é psiquiatra de crianças e adolescentes e coordena junto com a psicóloga Gabriela Guimarães o Projeto de Inteligência Emocional nas escolas do Infapa. Mais informações sobre o Projeto nas Escolas em www.infapa.com.br/projeto-sente e sobre o curso para professores e psicólogos em www.facebook.com/search/top/?q=programa%20sente .


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