Opinião
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1 de dezembro de 2016
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02:10

Uma ideia de Brasil (por Fernando Horta)

Por
Sul 21
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Muito já se disse e escreveu a respeito de como o nacionalismo é – antes de qualquer coisa – uma ideia. Apenas uma ideia. Para piorar a situação, Eric Hobsbawm e Benedict Anderson convincentemente mostraram que esta ideia é desprovida de sentido sendo uma “caixa vazia” na qual os governos e grupos políticos colocam o que bem entenderem dentro. O nacionalismo foi usado pela Alemanha nazista, por exemplo, para unir o povo a favor da guerra e da superioridade ariana. A mesma ideia foi usada pela resistência francesa evocando imagens de Joana D’Arc no campo de batalha do século XX e pela França fascista de Vichy!

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O mesmo nacionalismo inspirou ingleses unidos à “liberdade” e soviéticos unido à “transformação do mundo”.

O que se pode ver é que a ideia de um nacionalismo pode se unir tanto ao autoritarismo alemão, quando à resistência francesa sem diferença lógica. Pode se unir sem qualquer problema ao capitalismo americano ou ao socialismo soviético, ao apartheid sul africano ou à luta cubana contra Batista. O nacionalismo é, pois, uma ideia-coringa que não tem nada de positivo ou concreto em si e depende dos valores a ela associados. No Brasil atual, por exemplo, a direita proto-fascista cobre-se de verde e amarelo falando em um “Brasil” que só existe em suas cabeças, ao mesmo tempo que apoia entrega de patrimônio nacional aos estrangeiros e medidas de destruição da indústria e emprego nacional. Os juízes invocam um “Brasil soberano” para defenderem suas questionáveis prerrogativas e sua intocabilidade, enquanto Temer fala no “Novo Brasil” para encobrir geddéis, padilhas e jucás. Na mesma batida, Lula corre o Brasil falando em “salvar o Brasil” através da reconstrução de um pacto social e “nacional”.

Como se pode ver, são muitos “brasis” para uma palavra tão pequena.

Na realidade o que acontece é que cada um destes grupos têm a sua ideia de Brasil e que, não raro, é completamente diferente da ideia de outro grupo. Por vezes até opostas. Cada uma das noções de “Brasil” envolve valores diferentes, objetivos distintos e até mesmo uma ideia diferente sobre quem é ou não, afinal, brasileiro. A direita se esforça por mostrar que quem usa vermelho não é brasileiro, quem defende causas como o feminismo e os direitos de populações trans, por exemplo, também não é. Tudo é reduzido à esta ideia vazia, ao pertencimento ou não. A esquerda há muito cultiva a ideia dos “entreguistas”, pessoas que não seriam brasileiras por estarem “entregando” patrimônio nacional ou permitindo que o país e seus trabalhadores sejam explorados pelo “capital internacional”. No fundo, é a mesma tática. Dizer quem é ou não brasileiro, quem tem direito ou não de ser.

Nada do que foi dito aqui é novo. Qualquer um que tenha um ano de um bom curso na área de humanas sabe desta situação toda. Só canta a altos pulmões hinos e sacraliza cores e panos quem desconhece totalmente o que é o nacionalismo. Para a direita, por exemplo, o nacionalismo é … existe, portanto, consolidado em símbolos, cores, hinos e uma história fantasiosa de heróis e liberdade. Para a esquerda, o nacionalismo é uma relação que só se consolida quando perguntado “nacionalismo para quê e para quem”. O verde e amarelo pode ser totalmente antinacional se usado para apoiar medidas políticas que prejudicam concidadãos (real ou formalmente) e o vermelho pode ser totalmente patriótico se significar um ideal coletivo de igualdade e crescimento.

Pessoalmente, acho a segunda ideia muito mais rica em sentido e adequada historicamente. Já muito cantei hinos e sacralizei bandeiras, mas quando você se dá conta de que uma significativa parte dos que se dizem “nacionalistas” são antidemocráticos (atual e historicamente), são contrários aos direitos legítimos de cidadãos tão brasileiros quanto eles (na minha percepção), você se dá conta de quão mesquinha é tal ideia. Historicamente, povos que prosperaram com algum sucesso civilizacional foram os que incluíram e não excluíram pessoas. Todos os que viram como mais importante as semelhanças do que as diferenças entre os seres humanos foram os que obtiveram melhores condições de vida.

De novo, não estou sendo novo. Aqui também há muito material escrito e muitos estudos. O problema é que entramos num momento no Brasil onde não está mais em jogo QUAL ideia de Brasil prevalecerá, mas se teremos ALGUMA ideia de Brasil, por mínima que seja. Não estamos dando o devido cuidado à esta questão. Quando juízes, ministros e promotores rasgam a constituição, quando o executivo passa medidas claramente sectárias que prejudicam visivelmente uma parcela da população em detrimento de outra e quando o legislativo resolve tornar ainda mais pétreos seus direitos e prerrogativas QUALQUER ideia de Brasil se torna impossível. Os laços que nos unem simplesmente passam a desaparecer.

Tenho um grande amigo que disse que o Brasil não é um país, é apenas um lugar. Um lugar como a “polinésia”, “Antártida” ou os “Aparados da Serra”. Você define geograficamente onde é, mas nada mais consegue dizer, porque o “lugar” não guarda identidade ou tradição. O Brasil está assim. É um lugar, um conjunto de fatores geográficos, climáticos e biológicos que alguém, sem nenhum senso lógico, resolveu dar um nome: Brasil. As desigualdades que antes eram reais agora se tornaram reais e formais, sendo ratificadas em lei e chanceladas pelos grupos favorecidos. Tornadas perenes por 20 anos, no mínimo. Aos que se revoltam contra isto cabe a alcunha de “vândalos” e muita borracha das forças repressivas. Certamente, “quem protesta não é brasileiro”. E a lógica da exclusão se repete.

Alguns de nós ainda têm uma ideia vaga de Brasil, mas ela está se tornando apagada e difusa … se já era sem sentido, está sendo esquecida.

.oOo.

Fernando Horta é professor, historiador, doutorando na UnB.

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