Opinião
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4 de dezembro de 2016
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02:00

Economia política e falácias da agenda brasileira de ajustes (por Mirko Pose)

Por
Sul 21
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ponte-para-o-futuroQual o fundamento último que baseia as medidas do governo Temer?

Têm-se usado várias expressões paradigmáticas para justificar a agenda política que está sendo implantada no Brasil. Na maioria das vezes, essas frases prontas mascaram o problema, transformando-o em algo pretensamente de melhor entendimento, mas distanciam-se de um debate honesto sobre os temas propostos. Sua função é empurrar as discussões em uma direção, de modo que as soluções apresentadas se mostram as únicas saídas possíveis.

A ideia mais forte que o governo tampão de Temer tem tentado colocar é de que “a constituição não cabe no orçamento”. Os direitos sociais garantidos na carta magna de 88 gerariam perda de uma eficiência econômica única e teoricamente existente (seja lá como se entenda essa eficiência, ou como se defina sua perda), o que, combinado com a má gestão dos governos do PT, seria a causa primordial da crise econômica por qual passa o país.

A solução então seria entregar a maior parte das obrigações do Estado para a iniciativa privada, inclusive estrangeira. Para isso são divisadas privatizações, transferências de ativos, concessões, parcerias, fusões e aquisições, atração de investimento externo, e todos os outros eufemismos possíveis para o mesmo movimento. No fundo, é uma proposta de mercantilização de serviços e direitos hoje considerados públicos: passa-se de uma lógica de beneficiário e agente de uma garantia democrática para uma de consumidor e prestador de uma relação mercantil.

A concentração momentânea de riqueza – pois obviamente, sem a obrigatoriedade de qualquer contrapartida, ou política social compensatória, apenas alguns grandes empresários sairiam ganhando – seria compensada, no longo prazo, pela retomada do crescimento sustentado, pois desobrigaria o governo de certos gastos “ineficientes”, geraria a retomada da confiança do setor privado, e proporcionaria um efeito cascata, com o aumento do investimento, produtividade e emprego. Sobre isso se apoiam as falácias do “remédio amargo, mas necessário”, da “trajetória insustentável dos gastos públicos” e de que a “recuperação econômica depende da retomada da confiança”, todas pronunciadas por membros do atual governo.

Não apenas em declarações oficiais, mas esse tipo de argumentação é reverberado na mídia tradicional, nas redes sociais, e finalmente em discussões cotidianas, tornando-se lugar comum do debate público sobre a situação econômica. Assim, cita-se um pretenso boom de consumo desenfreado, especialmente das classes mais baixas, sem responsabilidade ou contrapartida – do qual o programa Bolsa Família seria o exemplo máximo; uma carga tributária muito alta e sem retorno em termos de serviços públicos; encargos trabalhistas indevidamente altos (“custa muito caro manter um trabalhador no Brasil”); um desequilíbrio estrutural entre despesas e receitas do governo, gerando uma gastança generalizada nos últimos anos (“o governo é como sua família, se estiver endividado precisa cortar gastos”), entre outros.

Ademais de uma resposta excessivamente técnica, tais falas tautológicas – que já apresentam sua solução no próprio enunciado – são, e estão sendo, rebatidas por qualquer debate mais amplo e levado a sério. Além disso, esses discursos ignoram as experiências históricas do desenvolvimento de economias periféricas – inclusive a brasileira, no período desenvolvimentista e no ciclo recente do início dos anos 2000 – onde o Estado sempre desempenhou papel fundamental na promoção do crescimento econômico.

Assim, desconsideram-se todos os dados sobre a eficácia do programa Bolsa Família, tanto acerca dos indicadores sociais dos beneficiários quanto do encadeamento da inclusão dessa parte da população como demanda sobre a produção e o investimento; do caráter desigual e regressivo da estrutura tributária brasileira; do impacto negativo na distribuição de renda com um rebaixamento salarial proporcionado pelo fim do “salário indireto”; dos efeitos positivos que o gasto fiscal tem sobre o conjunto econômico; da baixa correlação entre qualquer índice de confiança do setor privado e a efetivação de investimentos (vide a recente e escandalosa reportagem do jornal Valor Econômico (i); e de pesquisas econométricas que mostram a inexistência do efeito “cascata”, mas exatamente o contrário.

Essas, inclusive, seriam algumas alternativas a serem discutidas no lugar do teto de gastos proposto, na forma da PEC 55 que tramita no Senado. Ao invés de apoiar-se em tais falácias e soluções pré-prontas, um debate sério sobre essas questões tem de levar em conta que o investimento público geralmente lidera e incentiva o investimento privado, que o consumo subsidiado e com transferências diretas induz novos investimentos, e que é a desconcentração da renda que gera maior crescimento – sem falar na proposição mau caráter de que um governo é igual a uma família, sendo que obviamente uma família não imprime a própria moeda, não recolhe impostos compulsórios nem controla os juros de parte de sua própria dívida (ii) . Tais temas inclusive têm sido reconhecidos por organismos internacionais como o FMI, mostrando o anacronismo de tal agenda (iii) .

Um plano de governo contendo tais propostas dificilmente sairia vencedor em um debate amplo. Mesmo os setores da sociedade que apoiaram a derrubada da presidenta mostram se reticentes em aceitar o conjunto completo de medidas que tal visão implica implementar. Entretanto, essa é a plataforma de Temer e seus aliados, claramente esboçada em entrevistas, documentos, declarações, no próprio texto das propostas legislativas.

Por exemplo, no documento “Uma ponte para o futuro” (iv) , divulgado pelo PMDB enquanto ainda participava do governo Dilma (substituindo, portanto, o plano de governo vencedor da última eleição, encabeçado pela chapa Dilma-Temer), diz-se que “Nosso desajuste fiscal chegou a um ponto crítico. Sua solução será muito dura para o conjunto da população, terá que conter medidas de emergência, mas principalmente reformas estruturais. ” (p. 5), mas propõe a continuidade das “desoneração das exportações e dos investimentos” (p. 19) para os empresários. Mais adiante, argumenta que “A carga tributária brasileira é muito alta” (p. 6), comparando-a com Alemanha, EUA, Inglaterra e Coreia do Sul – o único país periférico citado é o México, que tem uma carga tributária em relação ao PIB MENOR que o Brasil. Queremos ser México, em termos de salário, distribuição de renda, saneamento, segurança, transporte, educação e saúde pública?

No mesmo texto, as propostas continuam: “Para isso é necessário em primeiro lugar acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação” (p. 9); “Outro elemento para o novo orçamento tem que ser o fim de todas as indexações, seja para salários, benefícios previdenciários e tudo o mais. […] Com o fim dos reajustes automáticos o Parlamento arbitrará, em nome da sociedade, os diversos reajustes conforme as condições gerais da economia e das finanças públicas. ” (p. 10); “transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo” (p. 18); “na área trabalhista, permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais, salvo quanto aos direitos básicos” (p. 19). O teor geral é o mesmo dos trechos destacados aqui.

Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em 18/04/2016v , Roberto Brandt (v) – ex-ministro da Previdência de FHC, um dos elaboradores da “Ponte para o futuro” e da vindoura proposta do governo de reforma da previdência – diz claramente que “esse documento não foi feito para enfrentar o voto popular. Com um programa desses não se vai para uma eleição”. Quando interpelado se as medidas seriam impopulares, responde que “Claro. O conjunto da sociedade não tem obrigação de compreender essas questões herméticas de orçamento, Previdência, de relações Banco Central e Tesouro Nacional. Não tem noção do que seja a trajetória da dívida. E as pessoas querem mais. Elas não querem menos. Se perguntar os que elas esperam do Estado brasileiro, vão dizer que querem mais”. E finaliza com “Vai ser preciso ser rápido no Congresso. Dar um tranco. E veja bem: um governo breve, de 2 anos e meio, que não vai aspirar um futuro longo a não ser o reconhecimento da história. […] E, veja bem, este governo não estava preparado para sair agora. Vai desalojar muitas pessoas, e a maioria não têm lugar no mercado de trabalho. Esse pessoal vai fazer um barulho muito grande. Se não tiver uma energia sobrenatural, uma força para dialogar e convencer o Congresso, não sei se vamos muito longe. Vai ser preciso agir muito rápido. E sem mandato da sociedade. Vai ter de ser meio na marra.”

Assim, para implementar tal programa, seria preciso uma situação excepcional. Um governo tampão, curto, sem preocupação com reeleição – lembremos que Temer é ficha suja e inelegível, e importantes nomes do governo estão envolvidos em escândalos, como Geddel, Jucá e Serra – com uma ampla maioria dificilmente reversível no Congresso, apoio do Judiciário e respaldo de ao menos uma parte da população (como ficou claro no áudio vazado de Romero Jucá) (vi). A impopularidade, erros na gestão macroeconômica e a conjuntura internacional tornam o momento ideal para articular a derrubada de Dilma. Basta notar que, ao dirigir-se a jornalistas em evento em (vii) .

Certamente, não se trata de um grupo com inteligência sobre-humana, capaz de articular e implantar tudo conforme sua vontade. A tomada do governo exigiu a conjunção de vários setores, nem sempre com visão e objetivos idênticos. Chegar ao mais alto nível de poder do país uniu; já os caminhos para implantar um projeto consensual mínimo podem dividir. Inclusive, esse pode ser um fator de ainda maior desestabilização: com a transferência de ativos e obrigações estatais à iniciativa privada, muitos atores que hoje estão participando da plataforma do governo podem entregar-se a uma lógica de rapinagem, num estilo “pegue tudo o que puder o quanto antes”. Essa parece ter sido a tônica das crises institucionais recentes.

A proposição de medidas, que tratam de temas polêmicos e com efeitos duradouros, sem debate público amplo, com perspectiva de aprovação rápida, não é por acaso, então. Não se tratam apenas de questões econômicas, mas sim de retrógradas reformas estruturais do Estado, da relação entre os poderes e desses com a sociedade, que estão em jogo, disfarçadas de discussões técnicas, sem o devido debate e prestação de contas perante a sociedade (em relação à PEC dos gastos, vale lembrar que houve reajuste para o Judiciário, mesmo alguns juízes ganhando acima do teto constitucional). Podemos elencar aí a medida provisória de reforma do ensino médio, a desarticulação do financiamento público de longo prazo via BNDES, a entrega de ativos estratégicos – com possíveis receitas futuras vinculadas a eles, como no caso do pré-sal, o fim ou diminuição do envolvimento público em certas áreas (fusões e extinções de pastas como o MCTI, MINC, Igualdade e Direitos Humanos, etc), a “reestruturação” do Banco do Brasil, deixando cidades sem agências para prestigiar o lucro dos acionistas, etc.

Na pauta do dia, o teto de gastos em relação à inflação anterior significa o congelamento do orçamento disponível em termos reais. Acirra a disputa entre as pastas do Executivo por uma fatia minguante, e entre União, estados e municípios. Desse modo, reorganiza as relações entre o conjunto desses entes políticos, pautada pelos fundamentos que guiam a atual gestão – como já está acontecendo, com um teto informal para os gastos estaduais. Considerando que o PIB volte a crescer, isso significa uma parcela cada vez menor do gasto público em relação ao PIB. Ou seja, uma disputa maior por um montante menor. Isso pode reforçar a relação entre interesse público e ganho privado, o poder das emendas parlamentares, acentuar o papel dos grupos de pressão dentro da sociedade com mais poder de incidir diretamente sobre os três poderes, e outros mecanismos problemáticos que historicamente serviram para pautar a agenda pública no país.

Esse é o rol de iniciativas com o intuito de diminuir as obrigações do Estado brasileiro para propiciar a retomada do crescimento. Depende, em grande medida, de que a iniciativa privada aceite gerir esses ativos, de um modo que seja satisfatório ao conjunto da sociedade. Como se mostrou, esse ponto não é de modo algum dado, nem é o único caminho possível para sair da crise, como querem fazer acreditar. A perspectiva que se vislumbra é de um ajuste longo, com desempenho pífio da economia ou mesmo estagnação, e retrocessos na provisão de bens e serviços públicos. Ao mesmo tempo, o movimento de tomada voraz do que o Estado pretende livrar-se pode aumentar as turbulências políticas, inclusive dentro do próprio governo. Tudo isso, baseado numa perspectiva macroeconômica e social moralista em que o governo deve comportar-se como um “pai de família”.

.oOo.

(i) http://www.valor.com.br/brasil/4775327/sem-endosso-da-realidade-economia-se-descola-daexpectativa

(ii) http://www.excedente.org/blog/macroeconomia-a-falacia-do-pai-de-familia-e-a-pec-241/

(iii) http://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2016/06/ostry.htm

(iv) http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf

(v) http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,vai-ser-preciso-dar-um-tranco-no-congresso–diz-exministro-de-fhc,10000026727

(vi) http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1774018-em-dialogos-gravados-juca-fala-em-pactopara-deter-avanco-da-lava-jato.shtml

(vii) https://theintercept.com/2016/09/22/michel-temer-diz-que-impeachment-aconteceu-porque-dilmarejeitou-ponte-para-o-futuro/

.oOo.

Mirko Pose é Bacharel em Relações Internacionais pela UFRGS e mestrando em Economia Política Internacional pela UFRJ. O autor agradece ao professor Pedro Paulo Zahluth Bastos, por palestra proferida, de onde boa parte das ideias contidas aqui foram inspiradas, e ao Centro Acadêmico Stuart Angel (CASA) do IE/UFRJ, por propiciar um espaço de debates onde uma versão preliminar do texto foi apresentada. As opiniões contidas são de inteira responsabilidade do autor.

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