Opinião
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9 de maio de 2016
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00:17

Sobre o Filho de Saul, a nossa Antígona‏ (por Katarina Peixoto)

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Sul 21
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Sobre o Filho de Saul, a nossa Antígona‏ (por Katarina Peixoto)
Sobre o Filho de Saul, a nossa Antígona‏ (por Katarina Peixoto)
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O Filho de Saul é sobre essa propriedade humana de cultivar a memória, pagando o preço e recebendo a dádiva da história. (Foto: Divulgação)

Katarina Peixoto (*)

A despedida de um ente, quer dizer, de um membro do nosso mundo, não é prerrogativa dos humanos. Elefantes têm ritos fúnebres, quando não cativos. Dizem os estudiosos que os elefantes fazem ritos fúnebres porque são animais com memória gigantesca, em relação a outros mamíferos. É possível que somente os judeus, como povo, tenham uma memória, em relação à humanidade, tão elevada e autorizada como é a dos elefantes, em relação ao demais mamíferos quadrúpedes. O historiador Simon Schama diz que o que define o judeu é ser uma história. Portanto, a memória parece precisar de mais do que o sentimento de estar junto, de ser um membro, de um grupo. Elefantes têm memória, mas não fazem história. O Filho de Saul é sobre essa propriedade humana de cultivar a memória, pagando o preço e recebendo a dádiva da história. A travessia do mar vermelho e o cálculo geracional no deserto, antes da chegada à liberdade, essa terra prometida tão humana, atende à exigência de separação entre memória e carne.

Esse cálculo faz de nós algo mais que elefantes. Algo mais: elefantes não construíram campos de concentração, não são racistas, não são democratas nem totalitários. Algo mais: os sobreviventes podem portar a metáfora e a história como propriedades suas, intrínsecas, como um jeito de olhar refletido e uma decisão, humana por excelência: a de decidir como se vai morrer. O Filho de Saul é um filme sobre essa decisão, que também é a decisão de Antígona. E, assim como a personagem de Sófocles, Saul não está preocupado mais com o passado, nem mesmo com o futuro. Ambos sabem que a decisão frente a morte é uma decisão pela existência. Parece razoável imaginar que elefantes não pensam na peculiaridade do predicado existencial, o qual consiste, exatamente, em não ser um predicado, mas um quantificador, algo que se mede antes e além do que é medido. Algum biólogo sabido há de descobrir a função de comunicação da vida em comum, de alguma noção de mundo e pertencimento, entre os elefantes, para velarem pelos seus mortos. Mas eles não precisarão nunca de um profeta para vincular a vida de quem se foi à existência de todos, refletidamente, como história.

Em Antígona, a luta pelo funeral ritualizado do irmão é uma luta peculiar pela sobrevivência. Hegel tomou o fracasso de Antígona como exemplo do que não é a luta pelo reconhecimento, como se ela estivesse lutando por um legado, por um passado, por uma tradição. Hegel não levava a existência a sério, senão como quantificada na máquina da história da razão na história, esse canto dos cisnes do desespero normalizador, alemão, algum outro alemão sabido deve ter dito. Nem Antígona, nem Saul, lutam pelo reconhecimento, nem pelo passado. Não lutam por tradição alguma, nem pela comunicabilidade do pertencimento. Eles lutam e se sacrificam é pela existência.

Numa das sessões de premiações do filme, alguém disse que o holocausto é uma história sem fim, que a gente nunca terá visto tudo. Não faltam retóricos exuberantes a desejarem enxergar holocaustos e genocídios em toda parte, como se precisassem anular a excepcionalidade bestial dessa mácula contra a humanidade. Ambas as perspectivas estão erradas e certas: sim, nunca poderemos ver tudo, porque foi inimaginável, além do que conseguimos imaginar. E não, nunca acabou, mas não porque esteja em toda parte, e sim porque existiu e, sob vários aspectos, ainda existe, como memória e como história. E é preciso que assim seja. Uma amiga cujos antepassados pereceram na Romênia e na Polônia disse que o preço de não repetir é contar.

Contar. Pois sim, há um cálculo. O cálculo de Saul Aüslander, Saul da “Nossa Terra” ou da “Terra Estrangeira”, a depender da língua, é o que nos é arrancado, da história ainda não contada, de Auschwitz. Nunca uma fotografia conseguiu transmitir o odor de azedume e morte, de sangue e ausência, como neste filme. A bestialidade, essa característica tão humana, as expressões racistas mais crueis e menos ofensivas, fisicamente, andam juntas, nos crematórios, nos departamentos, no silêncio, nas orações, na percepção ausentada, pelo desfoque, do trabalho escravo, do abuso, da aniquilação. “Nós já estamos mortos”, lá pelas tantas diz o personagem, contra os rebeldes que tentam um levante no campo.

Se já estamos mortos, por que o cadáver do filho precisa, tão desesperadamente, de um funeral religioso e assistimos a uma caça por um rabino, entre crematórios de Auschwitz? Ficamos sabendo que não era um religioso, o personagem. Que o filho, aquele cadáver de um menino, poderia até não ser seu, mesmo. Por que um morto velaria por um cadáver? Por que um morto, não religioso, arriscaria tudo o que já não tinha, para garantir um funeral religioso a um cadáver que, na realidade – da morte, que seja -, poderia até mesmo não ser seu filho?

Qual o cálculo e que ajuste é esse, que faz Saul? Há uma travessia onde se dá o funeral dos mortos, pelos mortos e para os mortos. Mas o filme não acaba aí. O Filho de Saul não é uma fábula sobre elefantes, nem um elogio da memória, uma defesa da religião ou da tradição. Assim como Antígona, Saul luta, sacrifica-se, pela existência. Esse é o sentido de seu sorriso, liberto, finalmente conciliado com a morte, quando a história se torna possível. Contar, a única esperança de existir.

Parece e é absurdo. É sobre nós, os oprimidos, esmagados e que já estão mortos, cujos mundos ruíram ou estão para ruir. É sobre nós, os aniquilados, destroçados, destruídos, que trabalham no que não podem suportar, senão como morte. É sobre nós, que depositamos as últimas fichas na imaginação dos profetas e no conhecimento imaginativo. É sobre nós, que respeitamos o conhecimento, como condição para a existência, esse quantificador bizarro, sempre temporal e fora do tempo. Não é sobre Deus, nem sobre religião, nem sobre o passado. Mas sim, é sobre o preço a pagar, pela não repetição: contar, calcular, medir, para existir. De Auschwitz saiu a nossa Antígona.

(*) Mestre e doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)


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