Opinião
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2 de abril de 2016
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10:01

O futuro da cidade desde agora (por Jorge Barcellos)

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Sul 21
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O futuro da cidade desde agora (por Jorge Barcellos)
O futuro da cidade desde agora (por Jorge Barcellos)

Porto AlegrePorto Alegre completou 244 anos. Desde que os colonos açorianos fundaram a cidade, o porto-alegrense se define por aquilo que seus antepassados viveram e não apenas por aquilo que eles deixaram, o espaço urbano. Essa ideia de alma da cidade, o sentimento de que para ser feliz na capital é preciso assumir a herança, a tradição, as perdas, as esperanças, os erros, os acertos e as vitórias deste povo é, segundo Adauto Novaes, em “O futuro não é mais o que era”(SESC, 2015) o que se perde com a aceleração da história, quando os acontecimentos se sucedem sem que se possa refletir sobre eles.

É só olhar como pensavam nossos grandes memorialistas. No ano passado, comemorou-se o centenário do escritor e vereador Ary Veiga Sanhudo, um dos grandes construtores da memória afetiva da cidade. Sanhudo foi o primeiro a propor a manutenção dos nomes antigos dos logradouros da capital. Em sua obra “Porto Alegre, crônicas de minha cidade”, Sanhudo reuniu em dois volumes extensos seus artigos publicados no Jornal Folha da Tarde que registravam as transformações na paisagem da capital e os estilos e condições de vida de seus habitantes mais antigos. O registro das ações dos grupos urbanos, a descrição do trajeto da transformação da cidade, do passado idealizado rural e colonial ao tempo progressista do processo de urbanização que produziu a canalização dos arroios, a abertura de avenidas, a higienização e a modernização do espaço público, tudo foi anotado pelo texto do autor.

Como vereador da cidade, Sanhudo trouxe para o parlamento duas preocupações: a primeira, com os bairros, onde valorizava sua vitalidade e que sua Lei dos Bairros procurou preservar e a segunda, com seu projeto de lei que visava preservar os nomes tradicionais – Rua da Praia, Praça do Mercado –, o chamado Projeto da Saudade, que constituiu o primeiro mapa afetivo da capital. A alma da cidade, que Sanhudo procurou preservar, é nada mais do que a memória da sociabilidade popular, das praças e das festas religiosas, verdadeira luta entre uma sociabilidade antiga, que luta por se preservar, e a civilização dos costumes modernos, que vai se impondo ano após ano. Estamos nos anos 40 e era assim a cidade que Sanhudo imaginava preservar para o futuro, que nos encontramos hoje. Nada mais diverso.

Que cidade queremos para o futuro? É impossível criar uma imagem do futuro sem a lembrança do passado e sem perceber o presente de maneira critica “para ver o presente, precisamos, pois, recorrer as lembranças do passado e imaginar o futuro. Ver é rever e prever”, completa Novaes. Para os primeiros porto-alegrenses, o curso da história era imprevisível e incontrolado, daí recorrerem a religião para dar uma ordem em seu universo. Para nós, os últimos, o curso da história está em nossas mãos e deve ser tomado por cada cidadão. Por isto, a pergunta de Novaes para projetar nosso futuro tem importância: como vivemos hoje?

No campo da política, vivemos de maneira contraditória. Elegemos nossos representantes locais a cada quatro anos, mas esquecemos em quem votamos na eleição passada. Não participamos da política local, mas queremos soluções da Prefeitura para os problemas locais. Experiências contraditórias não oferecem um legado para o futuro: não é a sensação que temos quando vemos os conflitos políticos recentes entre esquerda e direita ocuparem as ruas que revelam que somos incapazes esclarecer nossos argumentos a esquerda ou à direita, de que somos incapazes de reconhecer a evolução política da sociedade brasileira dos últimos 40 anos? “O passado não esclarece mais o futuro”, afirma Hannah Arendt. Quer dizer, no turbilhão da política dos dias atuais, podemos acreditar que vivemos uma sociedade local em crise porque a nação encontra-se convulsionada, mas não podemos deixar de olhar para o passado, de que ele é que deu condições de construir nosso futuro. Não é assim quando, ao contrário do sentimento de clivagem politica, reconhecemos a pura vitalidade da política local com seus enumeráveis atores, eventos, reuniões e visitas que fazem parte da atividade política hoje mais do que no passado? Diz Eduourd Gaed, citado por Novaes “o futuro é o tempo do possível, do poder em estado puro”.

Somos iguais em possiblidades de invenções políticas para o futuro. Não existe a direita e a esquerda somente porque a política é a dimensão que escapa a ordem da certeza absoluta, cientifica, justamente o que limita o espirito. O que distingue, na acepção de Novaes, política de ciência é, que enquanto a segunda nos diz que não podemos mudar o futuro e nenhuma ação conta – o esforço da ciência é pela abolição do acaso – a primeira nos diz do poder da criação quando chama o cidadão a fazer algo para mudar o que acontecerá. Não foi assim no episódio da Legalidade que tomou a capital nos anos 60? Não foi assim anos antes, quando as manifestações operárias ocuparam as ruas da capital?

Refletir sobre o futuro da política da capital é neste sentido, deixar espaço a criação, ir a política do espirito, buscar esclarecer os mitos, as “coisas vagas”, entendendo aí os ideais políticos e utopias “Não há política sem mitos”, diz Novaes citando Valery: a estrutura social é fundada sobre a crença: não são crenças que opõem os porto-alegrenses que no passado dividiram-se entre o Partido Liberal e o Partido Conservador? Mas também não foi a confiança que fez os porto-alegrenses reelegessem José Montaury ou os prefeitos do PT?

Pensar o futuro da política local exige que entenda-se o mundo político como um mundo mítico, o que significa que sua organização não tem apenas bases nas leis da política, mas tem razão na expressão de forças, exercício que quer recuperar o papel humano da política. Três exposições do acervo do Memorial da Câmara Municipal, abertas para visitação no Campus do Vale da UFRGS, ilustram esses aspectos míticos. A exposição Cidade Maldita reconstitui os aspectos da vida de Porto Alegre a partir do pensamento da historiadora Sandra Pesavento. Ela resgata aspectos das características da vida e da cultura das classes populares da capital, suas zonas de boemia, prostituição e moradia. Através da sua reconstituição podemos ver os limites da pobreza e da marginalização de uma camada social. A forma como são reconstituídos seus estilos de vida pelos jornais e pelas classes dominantes revela que a essas populações são associadas a ideia de decadência da cidade, uma ideia que tinha força no século XIX e conquistara a imaginação de redatores de jornais e políticos. O futuro da cidade do passado passava pelas reformas de suas amplas avenidas, da construção de novos viadutos e praças. Este também é o mote da exposição Planos Diretores de Porto Alegre que narra a forma como a administração local previu o futuro da cidade na implementação destas reformas. A descrição que faz do papel do Plano Geral de Melhoramentos revela a visão dos administradores locais do futuro da capital a partir de uma visão reformista e excludente da sociedade. Finalmente, a exposição “Paisagens Urbanas” trata da representação ideal da classe dominante local, de seu espaço, de sua geografia afetiva, do registro do movimento em direção à modernidade da capital através da pintura feita em Porto Alegre. Sempre trata-se do futuro e sua representação e por isto compõem parte da metafísica do futuro da capital.

O que isto significa? Segundo Jean Pierre Dupuy, trata-se de uma forma transcendente de pensar o futuro. Para desenvolver esta definição, o filósofo parte dos novos profetas da atualidade. Para Dupuy, a profecia não desapareceu do mundo moderno, ela assumiu um sentido técnico diferente e por todo o lado vemos profetas que tomam a ciência e a política como lugar para fazer emergir vozes autorizadas que dizem o que será nosso futuro. Da previsão do tempo ao resultado eleitoral, estamos cercados de agentes que preveem o futuro: se não podemos compreender a vida sem olhar o passado, também só podemos vive-la projetando-a no futuro. Para Dupuy, a política assume um papel importante porque ela segue menos a razão e mais a “lógica das forças”, o que leva a retornar a questão inicial: o que é feito da alma da cidade? Se fossemos apenas razão, como afirma Novaes, a partir de Valery, o espirito tornar-se-ia impossível, impossível porque… supérfluo.

É como no caso do exemplo de Masdar, a ecovila de Abu Dhabi situada nos Emirados Árabes Unidos concebida em 2008 para ser concluída em 2020: a primeira cidade sem emissões de C02, sem desperdício e sem carros, a capital do desenvolvimento sustentável, a cidade…perfeita. O que Porto Alegre fez nessa direção? Ciclovias, corredores de ônibus, discute os rumos do seu Cais como já discutiu o destino do Morro Santa Teresa. Temos sistemas de orientação de rua funcionando com energia solar mas nada se compara a eletricidade de uma cidade inteira planejada para existir com energia solar. Não avançamos em outros aspectos em direção a cidade ideal como a proposta de Masdar porque outras coisas ocupam nosso pensamento, o medo a violência, o desejo de sobrevivência.

Por isto a filosofia ensina que o futuro nasce da nossa capacidade política em se relacionar com nossos medos: entre Masdar do temor da poluição e do aquecimento climático e Porto Alegre do temor à violência, resta pouco para nossos sonhos políticos. O futuro da cidade passa pela valorização da política porque quando todos deixam de lado seus medos individuais e concebem e debatem temas comuns, o que desejam compartilhar para as novas gerações, mas perto estamos de construir a cidade que almejamos. Épocas de desencanto político são ruins para pensar a cidade que queremos porque perdemos a esperança de construir um futuro.

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Jorge Barcellos é Doutor em Educação.

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