Opinião
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26 de janeiro de 2016
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09:01

Investimentos públicos e lucros privados, o exemplo da indústria farmacêutica (por Tarson Nuñez)

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Sul 21
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As relações do mercado corporativo com a pesquisa científica são uma parte relativamente obscura da economia. Via de regra, o senso comum estabelece que é legítimo que as empresas dos setores intensivos em tecnologia lucrem com seus inventos, produtos e patentes, uma vez que para desenvolvê-los tiveram que investir altas somas. Seria, portanto, justo que este esforço em termos de investimento em pesquisa seja retribuído na forma de lucro das empresas. Um exemplo evidente desta realidade é a indústria farmacêutica, que desenvolve e coloca à venda novas drogas em um mercado que envolve bilhões de dólares no mundo inteiro.

Mas a realidade é bem mais complexa que este esquema simplista, e um exemplo muito eloquente disso foi apresentado recentemente por Jeffrey Sachs, em um artigo no Huffington Post. O economista norte-americano, que dificilmente pode ser caracterizado como um esquerdista, se mostra escandalizado por um exemplo recente no qual um medicamento desenvolvido para o combate à hepatite C se revelou uma verdadeira mina de ouro para a empresa que o patenteou. Os lucros obtidos não seriam em princípio um problema, não fosse o fato de que as pesquisas que levaram ao desenvolvimento do remédio tenham sido financiadas pelo próprio governo americano, que depois pagou pela utilização do medicamento somas muito mais altas do que o que seria razoável, dados os custos de produção.

Este é o caso do sofosbuvir, vendido sob a marca Sovaldi, pela companhia farmacêutica Gilead Sciences. Este medicamento, que se revelou extremamente eficiente no combate ao vírus da hepatite C, pode significar a salvação da vida de milhares de pessoas. Em dezembro de 2013, a Food and Drug Administration (FDA) aprovou o uso do Sovaldi, e de outra fórmula similar baseada no mesmo produto sofosbuvir. A Gilead estabeleceu o preço de US$ 84.000 para um tratamento de 12 semanas, que significa um preço de US$ 1.000 por pílula.

De acordo com estudos da Universidade de Liverpool, o custo real de produção do Sovaldi para este tratamento de 12 semanas ficaria entre US$ 68 e US$ 136. De fato, um genérico do medicamento tem sido comercializado na Índia a um custo de US$ 300 pelo mesmo tratamento, uma vez que aquele país se recusou a aceitar a patente da Gilead no mercado indiano. A diferença de preços entre o mesmo produto nos dois países é, portanto, de 1 para 1.000! Como é possível tamanha diferença?

A Gilead pode cobrar US$ 84.000 por um tratamento que custa US$ 300 em função do fato de que a empresa dispõe da patente da droga nos EUA até 2028. Assim, o sistema de saúde público norte-americano, como os consumidores norte-americanos que não são cobertos pelo sistema, é forçado a pagar mais de 80 mil dólares por um tratamento única e exclusivamente por causa do monopólio de produção de que dispõe a empresa farmacêutica. No seu primeiro ano de comercialização, em 2014, as vendas dos produtos baseados nos sofosbuvir chegaram a US$ 12,4 bilhões no mercado americano.

Este lucro poderia ser considerado legítimo, uma vez que supostamente a empresa teve que bancar os altos custos em termos de pesquisa e desenvolvimento do produto. Esta é a explicação normal que justifica em geral os altos lucros da indústria farmacêutica. No entanto, a história do desenvolvimento do Sovaldi mostra que nem tudo funciona conforme as cartilhas da economia convencional. Na verdade, este produto foi desenvolvido por uma equipe em uma universidade norte-americana, em uma pesquisa financiada por recursos públicos, e comprada pela Gilead, que cumpriu apenas o papel de comercializadora do medicamento.

Tudo começou na Universidade de Emory, onde uma equipe liderada pelo professor de bioquímica Raymond Schinazi, financiada pelo governo americano através do National Institute of Health, desenvolveu as pesquisas que levaram ao medicamento. O professor Schinazi criou então, em 2004, uma empresa privada, a Pharmasset, para viabilizar a colocação da droga no mercado. Em 2007, a Pharmasset levantou através de uma oferta pública de ações (IPO) US$ 45 milhões que, juntamente com outros recursos, permitiram o patenteamento e os testes para o lançamento da droga no mercado. De acordo com os dados que a Pharmasset repassou as autoridades do governo, os investimentos totais em pesquisa e desenvolvimento da droga por parte da empresa totalizaram US$ 62,4 milhões até 2011. Em janeiro de 2012, de olho no sofosbuvir, a Gilead pagou US$ 11,2 bilhões para comprar a Pharmasset. O professor Schinazi recebeu US$ 440 milhões pelo negócio.

No total, os recursos investidos na pesquisa e desenvolvimento da droga, somados aos custos dos processos de testagem clínica e autorização governamental para o uso, são estimados em torno de US$ 300 milhões, desembolsados no decorrer de quase uma década. Esse investimento retornou em poucas semanas de vendas da droga no decorrer de 2014. Segundo Sachs, se houvesse um sistema racional de preços no mercado farmacêutico, seria razoável que os investidores privados recebessem uma remuneração por desenvolver um medicamento bem sucedido, talvez em torno de 5 a 10 vezes os investimentos realizados na pesquisa, considerando o horizonte de tempo dispendido e as altas incertezas que envolvem a produção de medicamentos. No entanto, considerando o preço de US$ 84.000 estabelecido para o tratamento, esta remuneração fica em torno de 40 vezes ou mais. Por que isso acontece?

As conexões políticas e o poder econômico das grandes corporações farmacêuticas, assim como a legislação de propriedade das patentes, tem a capacidade de inflar artificialmente os preços gerando lucros estratosféricos, que têm pouca relação com os custos de desenvolvimento do produto. Segundo Sachs, se houvesse um sistema racional de preços, a Gilead poderia ter pago US$ 1 bilhão, ao invés dos US$ 11,2 bilhões, pelos direitos do Sofosbuvir, e o professor Schinazi poderia ter embolsado US$ 40 milhões, ao invés de US$ 440 milhões, mas o monopólio decorrente da legislação de patentes, o poder político e de lobby das companhias farmacêuticas têm capacidade de inflar artificialmente os preços. O que faz com que, ao final, os contribuintes americanos, assim como os pacientes privados, terminem por gastar quase US$ 10 bilhões a mais para a utilização da droga.

A Gilead sozinha gastou, de acordo com o seu próprio website, mais de US$ 15 milhões em atividades de lobby desde 2001. Destes, mais de US$ 5 milhões foram gastos em 2013, ano da aprovação do medicamento pela FDA, e em 2014, o primeiro ano de venda do Sovaldi. Este poder político, somado ao monopólio da patente, permitiu à companhia estabelecer os preços artificialmente inflados que são pagos pelo serviço de saúde americano. Assim, um medicamento que custou menos de US$ 300 milhões para ser produzido termina por gerar mais de US$ 12 bilhões em vendas em menos de um ano.

Todo este processo mostra como a investigação científica financiada com dinheiro público pode facilmente a ser transformada em lucros privados exorbitantes, que são pagos pelos contribuintes e pelos consumidores. Para além da racionalidade econômica stritu-sensu, temos aí em jogo o poder político de lobby das grandes empresas e a conivência dos governos com este poder, a custa da saúde dos cidadãos. Este exemplo norte-americano é apenas um entre muitos nos mais diversos setores da economia. No capitalismo, a ciência se torna mais um mecanismo a serviço do lucro, que muitas vezes tem como ponto de partida o investimento público e como ponto de chegada o benefício privado.

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Tarson Núñez é mestre em Ciência Política pela UFRGS.

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