Opinião
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24 de dezembro de 2015
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09:12

Quando Porto Alegre deixou de ser nossa (por Alberto Kopittke Winogron)

Por
Sul 21
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Foi aprovado na última sessão do ano, quase que sem repercussão, um dos projetos mais graves da história de Porto Alegre.

De uma só vez a gestão Melo/Fortunati criou uma Empresa que poderá dispor de todos os imóveis, terrenos, ações das nossas empresas públicas e créditos da cidade para aplicação integral no mercado financeiro, sem nenhum limite, sem nenhum tipo de controle social.

Em regime de urgência, passando de modo acelerado pelas comissões da Câmara, e sem ter tido qualquer audiência pública, o Projeto de Lei que criou a Empresa de Gestão de Ativos do Município de Porto Alegre (Investe POA), criou uma super empresa capaz de emitir de forma autônoma títulos de dívida municipal.

Em garantia para esses títulos, a empresa está autorizada a usar todos os terrenos e imóveis que a cidade é proprietária, como o Araújo Viana, o Mercado Público, o Gasômetro, além do capital de todas as Empresas Públicas da cidade. Até mesmo os recursos futuros do Fundo de Participação dos Municípios e créditos que a cidade tenha por receber poderão ser “penhorados” como garantia para esses títulos. Num ato de absoluta irresponsabilidade fiscal que poderá fazer a dívida pública da cidade disparar.

Mas isso não é o pior. O projeto ainda autoriza que o fundo formado por esses recursos seja totalmente investido em qualquer Fundo de Investimento que seu Conselho de Administração (o qual será definido pelo Conselho de acionistas da empresa, e não pela Prefeitura) decida.

Na prática, todo o patrimônio da cidade e boa parte da sua receita poderão estar em mãos de algum fundo de investimento privado, escolhido de forma totalmente autônoma pelos gestores da nova empresa. Caso esse Fundo venha a quebrar, ou então, a confiança nos títulos da cidade diminua, e a cidade não tenha mais condições de remunerar os seus credores, Porto Alegre poderá, da noite para o dia, perder todos os bens que estiverem em garantia. Experiência aliás bem conhecida pela Argentina em 2001 e pela Grécia mais recentemente.

O experimento ultraliberal já vem sendo feito em algumas cidades brasileiras como Belo Horizonte e Recife, que criaram as mesmas empresas nos últimos anos e já estão sendo fortemente questionadas no Tribunal de Contas da União, por ferir diversos dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal e por fraudar as possibilidades de controle orçamentário. Em Belo Horizonte, onde a empresa também foi criada com um capital inicial pequeno, hoje já foram emitidos mais de R$ 230 milhões em títulos, boa parte transferidos para fundos de investimento privados, comprometendo o patrimônio da cidade.

Contudo, o projeto de Porto Alegre é ainda mais liberal que estas experiências, nem alguns dos parâmetro ou limites de gestão que as outras cidades possuem.

De uma tacada só, a Câmara de Porto Alegre abriu mão de poderes que possuía desde 1773, como o poder de decidir sobre a disponibilidade dos bens da cidade, ou de autorizar os financiamentos contratados pela Prefeitura. Tudo agora transferido para a mão dos famosos “técnicos economistas”, que ninguém sabe quem são e que jamais terão que prestar contas do seu trabalho para a sociedade, muitos dos quais milagrosamente depois de aplicar esses experimentos se tornam milionários e sócios de grandes bancos e fundos, como o RS e o Brasil já viram diversas vezes.

Além do mais, a empresa resultará em pesados custos para a cidade apenas para ser gerida. E o pior: feito tão às pressas, o projeto não trouxe nenhum tipo de estimativa de custos (o que é obrigatório), remetendo a montagem de toda a sua estrutura administrativa para o futuro Estatuto Social da malfadada empresa, em mais um cheque em branco inédito.

Mas abrindo mão da reflexão “ideológica” e atendo-se apenas ao debate “técnico”, como dizem os noticiários econômicos: é totalmente questionável a própria função da empresa para arrecadar recursos para a cidade. A qualidade dos papéis emitidos pela tal empresa será avaliada por uma das famosas agências de risco (a um custo de milhares de reais). Num momento em que o Brasil perdeu o grau de investimento e o Rio Grande do Sul enfrenta sua pior crise, os papéis de Porto Alegre terão uma péssima avaliação de risco. Com isso, para conseguir que alguém queira comprar os seus títulos, a cidade terá que pagar uma taxa de juros que hoje estará próximo de 20% ao ano! O que é incompreensível, pois qualquer outra linha de financiamento internacional como o Banco Mundial, a Comissão Andina de Fomento ou as linhas nacionais como a Caixa ou o BNDES oferecem financiamentos que não chegam a 10% ao ano.

Formulado por consultorias financeiras, o projeto é mais uma das experiências mórbidas neoliberais no qual a irresponsabilidade de produzir papéis podres, que tem o patrimônio da cidade como garantia, resulta na fortuna de alguns “consultores” e invariavelmente numa tragédia real para cidades, estados e nações.

Nem mesmo as propostas feitas pela oposição, como a criação de um Conselho de Acompanhamento que seria formado por 2 membros do Conselho Regional de Economia, 2 membros do Orçamento Participativo e 2 membros indicados pela Prefeitura, ou a exclusão dos terrenos reservados para habitação de interesse social das garantias, ou que os 3 gestores da Empresa fossem indicados e possam ser demitidos pela Prefeitura (pelo projeto absurdamente aprovado, os 3 membros do Conselho de Administração são indicados pela Assembleia de Acionistas), foram aceitas pela maioria dos vereadores.

Simplesmente a Câmara criou na noite de 21 de dezembro uma “Prefeitura que não precisa ser eleita”, como tem sido chamada a empresa gêmea de Belo Horizonte. O famoso sonho de um Banco Central autônomo, onde a economia dos países não está mais sob comando da política se realizou plenamente, justamente na cidade que um dia já foi o símbolo mundial da contestação ao  modelo de um mundo cada vez mais desigual comandado por especuladores e rentistas.

Mello e Fortunatti criaram na calada da noite, nas vésperas do Natal, sem qualquer debate com a sociedade, um triste e perigoso presente para Porto Alegre, que mais lembra aquele gigantesco cavalo que os troianos levaram para dentro dos seus muros achando que fosse um presente dos deuses, lá do Olimpo, em Porto Alegre dos deuses do mercado.

Um projeto que, ao contrário do que diz a campanha de marketing da atual gestão “Nossa Porto Alegre”, será lembrado pelas futuras gerações como o dia em que Porto Alegre deixou de ser nossa.

.oOo.

Alberto Kopittke Winogron, 34 anos, é pesquisador em segurança pública e Vereador (PT) em Porto Alegre.

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