Opinião
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25 de junho de 2015
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10:50

Entre deuses e drones: os rumos do aborto em 2015 (por Letícia Zenevich e Mariana Chies Santiago Santos)

Por
Sul 21
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O direito ao aborto seguro é uma questão que alcança milhares de mulheres ao redor do mundo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, 43 milhões de abortos são realizados anualmente ao redor do planeta. Ocorre que destes, 21 milhões são feitos de forma insegura. Os números assustam ainda mais: 41 mil mulheres morrem todos os anos na tentativa de findar uma gravidez indesejada.

Apesar de ser crime previsto no Código Penal, são realizados, no Brasil, 1 milhão de abortos todos os anos. Uma a cada cinco mulheres brasileiras realiza o procedimento , que é, de acordo com o Ministério da Saúde, a quinta causa de morte materna. Em recente pesquisa realizada em todo o território nacional, concluiu-se que 66% das mulheres brasileiras que abortam são católicas, 25% são protestantes ou evangélicas, 81% delas têm filhos, 64% são casadas e 84% delas tem entre 25 e 39 anos. Ou seja, a mulher que aborta no Brasil é virtualmente toda mulher: de todas as religiões, em várias faixas etárias.

Em muitos lugares do mundo, como no Brasil, praticar aborto é crime e, em realizando esse tipo de procedimento as mulheres podem virar rés em um processo penal e, mais, serem encarceradas, como é o famoso caso de El Salvador: entre os anos de 1999 e 2011, 17 mulheres foram condenadas a mais de 40 anos de prisão por abortos espontâneos, a maioria com acusações de homicídio grave. Isso apenas comprova o que muitos já sabem: proibir o aborto não salva crianças, apenas mata e criminaliza mulheres.

Nos anos 90, a experiência como médica da ONG Greenpeace e as realidades às quais o barco dessa organização a levou, fizeram Rebecca Gomberts fundar a ONG Women on Waves. Essa organização partiu do pressuposto de direito internacional do mar o qual dita que, em águas internacionais, a lei que rege o barco é a lei da bandeira (no caso holandesa) -, que permitia o aborto em alto-mar. Essas viagens eram realizadas a convite de organizações locais que queriam colocar o aborto na agenda do dia. De fato, o barco atraía a atenção da mídia e mobilizava governos. O site da Women on Waves passou também a divulgar a informação sobre o procedimento. Em Portugal, antes da descriminalização do aborto, navios de guerra cercaram o barco da organização, que chegou a processar o Estado português na Corte Europeia de Direitos Humanos, saindo como vencedora do processo.

Agora a Women on Waves vai sair do alto-mar para alçar vôos mais altos. No dia 27 de junho, um drone voará pela primeira vez carregando medicamentos para aborto medicinal entre Frankfurt der Oder, na Alemannha, e Slubice, na Polônia. A campanha é uma parceria entre a ONG holandesa por direitos reprodutivos, Women on Waves, a Cocia Basia, uma organização com base em Berlim para ajudar mulheres polonesas a acessar o aborto seguro e a Fundação Feminteka, de Varsóvia, além do coletivo informal Porozumienie kobiet 8 marca.

Esse projeto visa a ressaltar as diferentes realidades das mulheres polonesas para acesso ao aborto seguro, comparado a outras mulheres na Europa. De fato, em quase todos os países europeus, o aborto é legal. Somente na Polônia, na Irlanda e em Malta ele é ilegal, e portanto o direito das mulheres ainda é violado.

Se no mar a metáfora da soberania era fortemente vinculada à campanha – isto é, as mulheres precisavam sair da soberania do Estado para, em alto-mar, reencontrar a sua, a mensagem dos drones é a de paradoxos. O alcance dos drones utilizados é de, no máximo, 100 metros. No entanto, há, entre esses cem metros, um verdadeiro abismo. De um lado da fronteira, mulheres necessitando um aborto simplesmente utilizam o sistema público de saúde. Alguns passos, metros depois, a mesma questão de saúde é endemonizada, é vista como um crime e atira mulheres na insegurança de procedimentos inadequados e obriga-as a arriscarem as próprias vidas realizando um procedimento o qual, a cem metros dali, é um dos procedimentos médicos mais seguros que há.

O drone não percorre longos caminhos, mas mostra os resultados a que caminhos diferentes levaram duas opções justapostas por ele: um aborto seguro e disponível versus a sua criminalização. Na Alemanha, registram-se alguns dos índices mais baixos de aborto no mundo (conjuntamente com Holanda e Bélgica). São cerca de 99.700 abortos por ano, entre uma população de 80 milhões de habitantes. Dez vezes menos que no Brasil, como só pode acontecer em países onde há acesso ao aborto seguro.

Na Polônia, a realidade é outra. Os números oficiais apontam risíveis 744 abortos por ano entre uma população de 38 milhões de habitantes. Se, no entanto, a taxa de abortos na Polônia for, no mínimo, tão baixa quanto a da Alemanha, existem no país cerca de meio milhão de abortos realizados clandestinamente (aproximadamente 480.000).

O drone, então, é pensado para exacerbar a diferença entre um e outro. De um lado, o aborto seguro é tão acessível que pode ser carregado por drones. Do outro, é tão inacessível e clandestino que precisa cair do céu para ocorrer.
O debate que se impõe é sobre em qual lado do percurso do drone o Brasil deve estar. No entanto, enquanto a discussão sobre a criminalização do aborto continua, as mulheres continuam morrendo por deuses, isto é, pelo mal-uso da religião no espaço público. E agora elas serão salvas por drones. A máquina planejada para matar, salva. O deus planejado para salvar, mata.

E não, as mulheres, como esse projeto mostra, não restarão impassivas nas teias dessa discussão. Com agência, criatividade e subversão, medicamentos para aborto surgirão do céu, em um milagre para fazer crer até os mais céticos: mulheres trabalhando juntas e em solidariedade umas com as outras atravessam qualquer fronteira.

.oOo.

Letícia Zenevich, 25, advogada e mestranda em Direitos Humanos pela Sciences Po – Paris.
Mariana Chies Santiago Santos, 28, advogada e doutoranda em Sociologia pela UFRGS.

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