Opinião
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15 de abril de 2015
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11:02

Eduardo Galeano. A morte de um profeta ateu (por Jacques Távora Alfonsin)

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Eduardo Galeano. A morte de um profeta ateu (por Jacques Távora Alfonsin)
Eduardo Galeano. A morte de um profeta ateu (por Jacques Távora Alfonsin)

Morreu Eduardo Galeano. A homenagem prestada aos mortos como Galeano, sempre fica tateando palavras as mais adequadas para recordar uma vida querida, que as/os amigas/os não gostariam tivesse fim. Galeano era ateu e, com certeza, após a sua curta e aborrecida experiência infantil, como coroinha, quando abandonou a religião católica, como ele mesmo conta, pode estar comprovando agora se tinha ou não razão sobre sua falta de fé em Deus.

Escritor, perseguido político em mais de um país, durante as ditaduras latino-americanas do século passado, a sua pena não tinha pena do capital nem dos países que abriam e ainda abrem as veias da América Latina, cúmplice daqueles regimes de violência.  Frequentador assíduo da Feira do Livro e do Forum Social Mundial em Porto Alegre, vizinha da sua Montevideo, sabia dosar literatura com crítica política nos dois eventos, em textos muito vivos ora de humor, ora de ironia e até de sarcasmo.

Ninguém passa incólume de impressão e emoção sobre a autenticidade e o vigor dos libelos “proféticos” desse ateu. Em coletânea de pequenos estudos críticos do Fórum Social Mundial (“Reflexões sobre o consumo responsável”, São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2008) publicou “O império do consumo”, abrindo a sua reflexão com um parágrafo muito oportuno para quem confunde a liberdade com a liberdade do mercado:

“O sistema fala em nome de todos, dirige a todos suas imperiosas ordens de consumo, entre todos espalha a febre compradora; mas não tem jeito: para quase todo o  mundo esta ventura começa e termina na telinha da TV. A maioria, que contrai dívidas para ter coisas, termina tendo apenas dívidas para pagar suas dívidas que geram novas dívidas, e acaba consumindo fantasias que, as vezes, materializa cometendo delitos. O direitos ao desperdício, privilégio de poucos, afirma ser a liberdade de todos.” (…) “Como diz um velho provérbio turco: aquele que bebe a conta, fica bêbado em dobro.”

Em “Bocas do tempo” ( Porto Alegre, L&PM, 2004), revela toda a impotência da lei para erradicar a injustiça social, num pequeno conto, certamente inspirado em fato ocorrido em favela de Montevideo. Pelo ouvido de uma criança, a resposta de um advogado à mãe ameaçada de desapossamento do direito de morar no seu barraco, é possível sentir a tragédia das multidões de sem teto da América Latina e do mundo  que, por “bocas do tempo” da economia e da lei, são excluídas até de um espaço miserável para viver:

“Aula de direito.” “Os pobres de tudo estão  formando fila. A lei acorda cedo, e hoje o doutor atende a partir da primeira hora. O advogado vê que na fila está esperando uma anciã com um cacho de crianças e um bebê nos braços. Quando chega a sua vez, ela mostra seus papéis. As crianças não são seus netos: aquela mulher tem trinta anos e nove filhos. Vem pedir ajuda. Ela havia levantado um barraco de lata e madeira  em algum lugar das fraldas do Morro de Montevideo. Achava que era terra de ninguém, mas era de alguém. E agora vão expulsá-la pois chegou essa coisa que chamam de lançamento. O advogado escuta. Examina os papéis que ela trouxe. Balança a cabeça, demora a falar. Engole saliva e diz, olhando para o chão: – Lamento muito minha senhora, mas… não há nada que se possa fazer. Quando ergue o olhar, vê que a filha mais velha, uma menina com ar de espanto, está tapando as orelhas com as mãos.”

Que aula! Vale por um tratado. Deveria ser objeto de estudo e debate aprofundado em todas as faculdades de direito do mundo, tão interessadas em garantir o direito de propriedade que não hesitam, em nome dele, a reduzirem todo o mundo e toda a terra a esse direito, mesmo quando ele se locupleta ilicitamente de tanto tempo e tanto espaço que não sobra nem tempo nem espaço para quem não é proprietário.

Aí se empodera, de forma absoluta, outra “heresia” condenada pelo “profeta” Galeano, sempre que a verdade é falsificada em favor de outra realidade: :

“A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la.”

Uma lei ou um direito, incapaz de disciplinar a economia e domar o mercado, erradicando a pobreza e a miséria, é tão morta, como certa é a ressurreição desse profeta ateu capaz de revelar isso, como realidade contrária à vontade do Deus com o qual ele deve estar se divertindo agora. Se o “Verbo se fez carne”, como se lê no evangelho de São João, vejam as/os nossas/os leitoras/es se o verbo desse profeta não continua vivo e carne, mesmo depois da sua morte. Em “O livro dos abraços” (Porto Alegre: L&PM, 2008) ele conta:

“A uva e o vinho.

Um homem dos vinhedos falou, em agonia, junto aos ouvidos de Marcela. Antes de morrer, revelou a ela o segredo:

A uva, sussurrou – é feita de vinho.

Marcela Pérez-silva me contou isso, e eu pensei: se a uva é feita de vinho, talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é.”

Vai em paz  Eduardo Galeano. Tuas palavras provam que tu continuas vivo.

.oOo.

Jacques Távora Alfonsin é Procurador do Estado aposentado, Mestre em Direito pela Unisinos, advogado e assessor jurídico de movimentos populares.

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