Opinião
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24 de abril de 2015
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12:08

A corrupção nossa de cada dia (por Ademir Furtado)

Por
Sul 21
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No final de 2014 vivi uma experiência bem significativa. Peguei um ônibus, quando a passagem ainda era R$ 2,95. Larguei três reais na mesa do cobrador e esperei a liberação da roleta. Mas para minha surpresa, o funcionário me devolveu a moeda de 1 real, embolsou a nota de dois, piscou o olho, e falou baixinho, para eu ficar por ali e depois descer pela porta da frente. De início, não entendi direito. Olhei para o motorista, ele, concentrado na condução do veículo, parecia não ter noção do que se passava. Desfeita minha dúvida sobre a intenção do cobrador, eu entreguei novamente a moeda, e disse convicto “Não”. Ele liberou a roleta sem nenhuma alteração de fisionomia, nada que demonstrasse constrangimento. Acomodei-me no primeiro banco vago e fiquei atento ao movimento do rapaz. E ao contrário da minha expectativa, vários passageiros cederam ao propósito fraudulento.

Em uma ocasião dessas, é inevitável que a gente pense na corrupção que corrói o país. Mais que isso, nesse discurso moralista que atribui os males da nação apenas ao mau caráter dos políticos. Não sei o que me deixou mais indignado, se uma proposta de suborno, ou se a naturalidade com que outras pessoas aceitaram a oferta. Porque uma reflexão se faz necessária. Se um indivíduo se deixa corromper na frente do público por apenas 1 real, o que ela não faria se dispusesse de orçamentos do dinheiro público e operasse na privacidade de um gabinete?

É difícil carregar na consciência a ideia de que a corrupção é uma marca do caráter nacional. Seria cansativo fazer uma lista de todas as situações cotidianas em que a norma é o desvio da legalidade. Parece que no Brasil, comportamento condenável é apenas a apropriação indevida dos milhões de reais nas licitações públicas. Esse ponto de vista coloca a corrupção num espaço bem distante de nós, lá onde só os outros estão. Assim, podemos dormir tranquilos, pois são os estranhos os culpados de cavar a fossa ética na qual fomos jogados.

Mas, quando a gente embarca num ônibus e vê um fato desses, não há como manter o mesmo ângulo de visão. E a mente começa a repassar circunstâncias corriqueiras que poderiam muito bem integrar o repertório dos protestos dos defensores da moral. Apenas para citar algumas práticas ao alcance das pessoas comuns, vale lembrar o hábito de deixar o carro em estacionamento gratuito em estabelecimento comercial, mesmo por quem não está fazendo compras; a já normal utilização da vaga para deficientes por quem só sofre de limitação de caráter. São atitudes que denunciam a complexa relação entre público e privado e mostram como o brasileiro se apropria do primeiro como uma extensão do segundo.

Tratando-se de desvios éticos para vantagens econômicas a preferida dos brasileiros é a alteração de valores de despesas para declaração de importo de renda. Essa tem a cândida justificativa de que sonegação não é corrupção, é legítima defesa, slogan usado nas últimas manifestações de rua Brasil afora,

Essas são estratégias que o brasileiro usa conforme seu poder de barganha. E quando se observa condutas como essa do cobrador de ônibus no dia-a-dia da sociedade, fica-se com a triste certeza de que esse estado de coisas não vai mudar tão cedo. Melhor mesmo é colocar a culpa nos políticos e alimentar a ingênua crença de que na próxima eleição vamos dar um basta nisso tudo.

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Ademir Furtado é escritor, autor do romance “Se eu olhar para trás” (Dublinense, 2011).

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