Opinião
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13 de dezembro de 2014
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07:00

Quem é fascista? De onde vem? Como vem? (por Paulo Ghiraldelli)

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Sul 21
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Quem é fascista? De onde vem? Como vem? (por Paulo Ghiraldelli)
Quem é fascista? De onde vem? Como vem? (por Paulo Ghiraldelli)

Quem é fascista?

“A direita defende os ricos e a esquerda defende os pobres”. Não há nenhum julgamento de valor nessa frase. Ela é uma verdade histórica. Direita e esquerda eram posições espaciais na Assembleia francesa nos tempos revolucionários, e a denominação vem daí. O juízo de valor que se acoplou à frase é posterior. Uma vez que o mundo moderno se fez assim pela vitória da moral burguesa do trabalho sobre a moral do ócio dos antigos abastados, e à medida que Jesus já havia dito que era mais fácil o camelo passar pelo buraco da agulha que o rico entrar no Céu, a frase acima ganhou um juízo de valor.

Todavia, entre frases assim e frases políticas com consequências mais dramáticas há um fosso. Ou seja, entre teses simples e destinos existe a prática. Na vida política o que ocorreu foi que entre ricos e pobres surgiram outras verdades. A ideia de reconhecidos e satisfeitos e não reconhecidos e insatisfeitos nunca deixou de existir. Ela deveria ser espelhada na divisão entre ricos e pobres. Mas não foi exatamente o que ocorreu. Os processos revolucionários de 1776, 1789 e 1917, para citar três grandes marcas em três grandes nações, Estados Unidos, França e Rússia, mostraram que havia entre o estudo da economia e da política uma outra necessidade, o estudo da psicologia social e política.

Os fenômenos revolucionários comandados pela chamada “burguesia” e, depois, pelo chamado “proletariado” mostraram um estranho movimento que desde Caim e Abel estava anunciado: a inveja provinda da não satisfação, a não satisfação provinda do não reconhecimento. Não à toa Hegel dedicou um dos seus mais célebres escritos ao reconhecimento, no trecho tido como a “dialética do senhor e do servo”. A verdade é que nos processos revolucionários contou mais, muitas vezes, não o simples ódio, mas o desejo de tomar do outro o que Locke havia dito que não podia ser tomado: propriedade, entendida aí também como propriedade ao pensamento livre também, a consciência, e propriedade do corpo. Por isso os filósofos às vezes culpam Rousseau por tudo isso.

Rousseau foi quem disse que a propriedade é algo de quem cerca a terra e, então, cria males, cria a propriedade como um ato ilegítimo. Daí para diante, tudo que se faz é tentar ou tirar a propriedade que é vista como ilegítima na mão de quem ela está ou então cobrar impostos altos de quem a possui. Os movimentos de esquerda e de direita podem então deixar ricos e pobres de lado, e ficar apenas com insatisfeitos e não reconhecidos. Podem usar essa força motriz. Podem tomar o estado e direcionar expropriações e taxações. A vingança no horizonte é luz do melhor mel na boca dos perdedores que esperam o vingador para lhes dar o gozo que acham que merecem.

Daí a semelhança entre a figura de Stalin e de Hitler. Ambos vieram de fracassos diante de intelectuais sofisticados, de gente que podia ter as melhores mulheres e até mesmo exibir homossexualismo, de pessoas que sabiam apreciar a modernidade e a urbanidade e, enfim, de gente que havia optado pela revolução sem ter passado necessidade e sem ter de implorar reconhecimento. O ódio mortal à esquerda liberal, que podia ler e comer caviar. Isso os fazia possessos! Hitler e Stalin se olhavam nos olhos e sabiam bem que a Guerra se travaria entre eles ali mesmo, no campo da velha Europa, e que tudo dependeria de evitarem a entrada na Guerra dos liberais, ou seja, dos amigos dos ingleses, a América. Falharam nisso. E perderam. Um perdeu no braço, ou outro demorou mais, mas ruiu sozinho perante burocracia, KGB e filas.

Eles se olhavam nos olhos e se compreendiam porque ambos fomentaram o que havia de pior neles mesmos e isso é o que havia de pior em seus povos: o culto do desprezo. Não à toa Hitler chamou seu movimento de “nacional socialismo”. O socialismo em sua pátria era um movimento de intelectuais e cosmopolitas, de fundo marxista – um marxista de quem havia lido antes de tudo os clássicos. Os homens da social democracia marxista europeia eram homens cultos.  O movimento de Hitler, então, queria apenas a vingança embutida no peito do socialista de ocasião, ou seja, o desejo de arrancar a propriedade e talvez a vida do dito privilegiado. A ideia básica era pedir dinheiro para os grandes empresários de modo a protegê-los da “ameaça do comunismo”, tira-los do jugo dos banqueiros judeus que cobravam juros do parque industrial alemão, polos de igual diante dos empresários das “potencias imperialistas” que bloqueavam a entrada da Alemanha no mercado e no neocolonialismo. Os que não cedessem seriam expropriados ou então administrados por “quadros do partido”, já chamado “nazista”.  Foi assim que a coisa vingou.

Capital e estado, bem requalificados, foram casados e o sacerdote da união foi o próprio Papa da nova era, Hitler. Ele, aliás, deu a fórmula para Mussolini, Franco, Salazar e, depois, para tantos outros como os Pinochets da vida. Os padrinhos? Ah sim, um exército armado de vingadores de todo tipo. Os oficiais da velha guarda? Ora, esses prussianos tinham honra, brio e honestidade, e foram assassinados e trocados por gente da SS. Hitler rapidamente mudou toda configuração do estado. A censura e a perseguição fizeram o resto, nas fábricas e nas universidades. Os assassinatos de oposicionistas, então chamados de “comunistas” ou simplesmente tidos como “impuros” por não virem do mito “da raça de super homens”, passaram a ser frequentes. Depois, o cheiro dos judeus no forno veio até a não incomodar as cidades, pois durante muito tempo a letargia da guerra fez todo nariz não sentir mais nada.

Não foi nenhum teórico do nazismo que pensou nisso tudo como possível. Foi um teórico do socialismo. Foi Marx quem viu que essa barbárie poderia ocorrer. Só que ele não pensou no nazismo, inexistente na época dele, uma época em que o inimigo parecia ser a doutrina liberal. Ele pensou no próprio socialismo. Ele falou em “comunismo de inveja”. Ou seja, ele alertou para forças horríveis entre os insatisfeitos, as forças que poderiam fazer do comunismo não algo esperançoso, mas apenas um movimento de revide, o surgir de um Rousseau-Frankstein, que muitos acham que é o único Rousseau possível. Nietzsche, Freud e os filósofos de Frankfurt apenas complementaram a tarefa de Marx, de ver a possibilidade do monstro. Quando o nazismo foi derrotado, então os estudos sobre quem eram os nazistas e qual personalidade dava margem para aceitar a ideias fascistas praguejaram as prateleiras das livrarias. De 1945 para cá não fazemos outra coisa senão isso: ver nas utopias do trabalho – liberalismo, socialismo e fascismo – onde está o germe de não reconhecimento que pode brotar fazendo-nos herdeiros de Deus-Caim-Abel.

Olhar o facebook dos que aderem ao fascismo, aos que brigam fanaticamente em favor de parlamentares de extrema direita, basta para entendermos muito dessa história toda. Observando os fanáticos, note-se o tipo de fanatismo: pensam que o melhor regime é aquele que põe os ricos no paredão ou que tripudia sobre intelectuais e professores ou que menospreza a arte aparentemente incompreensível ou que idolatra a mulher-mãe em detrimento de outros tipos ou que fomenta a homofobia ou que é visivelmente racista e xenófobo. Encontram-se semelhanças entre gente que aparentemente estão em polos opostos. Fracasso sexual estampado no rosto (ou disfarce que só denuncia isso mesmo), emprego ruim ou não emprego, escola ruim ou não escola: eis aí a escória da mundo, os rejeitados, o medíocres. São os insatisfeitos. Às vezes ricos, mas na maioria, classe media imbecilizada. Capacidade cognitiva? Baixa. É o prato com todos os alimentos do nazismo ou do “comunismo de inveja”. Filmes como Uma outra história americanaO leitorA fita branca e Uma mulher contra Hitler dão todos esses ingredientes para saber como que se pode gerar o nazismo. Dão os ingredientes que Deus usou para não reconhecer Abel, e sim Caim, e gerar a inveja, o ódio, a morte.

Uma sociedade liberal democrática mensura sua sobrevivência na capacidade de gerar possibilidades de reconhecimento para todos. Deve diminuir a inveja social. John Rawls sabia disso. Nozick também, e achava que a solução de Rawls iria só piorar. Não sabemos o certo, estamos nessa encruzilhada, talvez pensando que essa dupla alternativa é pobre. Mas sabemos que a vitamina do nazismo está ali sim, no perfil de cada fracassado que podemos notar no facebook. Eles mesmos abrem o jogo.

O comunismo morreu, mas o nazismo não. Porque ele se alimenta de um traço do comunismo, o “comunismo de inveja”, denunciado por Marx. Todas as vezes que o ódio a um grupo ou a uma pessoa reconhecida, feliz e, principalmente, culta, é aberto, cuidado, Hitler e Stalin estão conversando no Inferno.

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Paulo Ghiraldelli é filósofo.

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