Opinião
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17 de dezembro de 2014
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10:32

A legítima defesa da História (por Ademir Furtado)

Por
Sul 21
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A Comissão Nacional da Verdade concluiu os trabalhos com algumas sugestões de medidas a serem tomadas, com o objetivo de recuperar a dignidade da história do Brasil. A mais importante delas, como não podia deixar de ser, é a revisão da lei da Anistia, que, aliás, foi decretada sem efeito pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tortura, estupro, desaparecimentos forçados são crimes contra a humanidade, portanto imprescritíveis e imperdoáveis. Discussões jurídicas à parte, esse é o nó que amarra a teia de argumentos nessa discussão e impede que se puxe o fio da meada e se coloque as coisas numa perspectiva histórica. Mas os entraves não são jurídicos. O maior obstáculo para um passo importante nesse sentido é falta de vontade política. Os motivos reais são fáceis de imaginar. Muita gente colaborou com os carrascos da ditadura, ou pela cumplicidade ou pela omissão, e agora não suportariam mexer nas cascas de uma ferida que, todos sabem, ainda não cicatrizou.

Não é de se estranhar, portanto, que os inimigos da revisão histórica se apeguem a argumentos tão frágeis quanto suas consciências. O primeiro deles é de que a Lei nº 6.683 de 1979, que beneficiou também os torturadores, foi um pacto para a redemocratização do país. O primeiro equívoco. A inclusão dos agentes da repressão no indulto foi uma imposição do regime militar para conceder o perdão aos presos políticos, esses sim, condenados sem nenhum tribunal legítimo.

Outra falha na argumentação é a de que um julgamento dos envolvidos nos crimes da ditadura teria que atingir os militantes que reagiram com violência no combate ao regime imposto pelos militares. Em qualquer país civilizado do mundo, com um mínimo de aparato legal e institucional, existe o dispositivo da legítima defesa. Se um indivíduo sofre uma agressão que lhe coloca a vida em risco, ele pode reagir, inclusive com violência, para salvar a própria vida. E o que tínhamos no Brasil de 1964? Havia problemas de ordem social, que reclamavam soluções drásticas, mas havia também um presidente legitimamente eleito para administrá-los. E os militares, seguindo uma tradição histórica de autoritarismo, não souberam participar como coadjuvantes na busca dessas soluções. Alucinados pela velha crença de que problemas sociais se resolvem com polícia, assaltaram o poder e saíram prendendo e matando qualquer um que lhes opusesse resistência. Armados de um discurso anticomunista da Guerra Fria, passaram a ver subversão onde havia apenas clamor por direitos sociais. E puseram em marcha uma máquina de prisões ilegais, torturas e assassinatos. .

Diante desse quadro, a ação revolucionária dos guerrilheiros surgiu como um resultado natural contra o regime de desmandos implantado no país. Não há um único registro histórico de guerrilhas urbanas em território brasileiro no período anterior ao golpe de 1964. Portanto, supostas vítimas da ação dos guerrilheiros não podem ser computadas como crime dos militantes de esquerda, e sim como consequência da ação do próprio regime.

Mas o erro mais grosseiro na interpretação da realidade é o de que, com o golpe, os militares salvaram o Brasil da ameaça comunista. Esse disparate seria apenas um motivo de chacota se não fosse repetido ainda hoje por gente com poder de formar opinião. Não há um único historiador sério, sociólogo consciente, ou mesmo político honesto que tenha coragem de compactuar tamanho desconhecimento histórico. Nunca houve na história do Brasil o menor perigo ou ameaça de implantação de um regime comunista. A tentativa de recorrer à paranoia anticomunista, no entanto, não foi inaugurada em 1964. Durante o período de Getúlio Vargas, alguns fanfarrões tentaram assustar a classe média com toscos disfarces de comunistas. Tudo desmascarado pela história. Mas, no Brasil, a história real conta muito pouco. O que acaba prevalecendo são sempre as versões que manipulam as fantasias coletivas. Hoje, quando um dos deputados mais votados no Congresso Nacional é um declarado defensor da volta dos militares ao poder, a verdade precisa muito mais do que uma comissão para se firmar, precisa resgatar o valor da dignidade humana, que só se consegue na perspectiva da dimensão histórica de uma sociedade. É na verdade da história que se conquista a história da verdade.

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Ademir Furtado é escritor, autor do romance “Se eu olhar para trás” (Dublinense, 2011).

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