Opinião
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15 de abril de 2014
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09:42

O maior poeta do mundo e sua poesia de menor grandeza (por Denise Freitas)

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Sul 21
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O maior poeta do mundo e sua poesia de menor grandeza (por Denise Freitas)
O maior poeta do mundo e sua poesia de menor grandeza (por Denise Freitas)

Inicio por um suspiro, um “Ah…” revestido de tédio e ao lado do qual se estendem umas observações sobre a mania de querer-se grande, de avolumar-se, de ter-se em tão imensa medida a ponto de o despropósito imediatamente anunciar a esparrela. Para elaborar essas observações, desloco de seu contexto original a provocação de um pensador alemão e passo a complementar-lhe de maneira um pouco distinta: o anão colocado sobre os ombros do gigante[2] nem sempre será mais alto que o gigante por si só, talvez possa parecer mais alto a alguns observadores, ou ocorrerá somente que o próprio anão sustente a crença em sua estatura elevada; de qualquer maneira, trata-se apenas de aparência, no primeiro caso, ou de simulação, no segundo. É evidente que trato aqui – à semelhança de Herder, a quem furtei a imagem – de uma atrofia figurativa. Sirvo-me da alegoria como alusão à insistência de alguns escritores pequenos em parecer enormes, sempre a expensas de ombros amigos e de mais altura.

Embora seja um grupo copioso, esse dos pretensos gigantes, faço referência a apenas um deles: Luiz de Miranda, autor de Salve Portugal, e com inúmeros títulos tão inexpressivos quanto esse. Já no início da leitura salta aos olhos a quantidade e a natureza descabidamente enaltecedora dos comentários com os quais foram abarrotadas as abas de capa do livro. Esses comentários, embora assinados, em sua maioria, por nomes reconhecidos no contexto literário, manifestam elogios tão estonteantes a ponto de logo levantarem suspeitas, indicam excesso de cavalheirismo ou de amizade. Num ensaio dedicado a Théophile Gautier, Baudelaire define a admiração como o sentimento mais embaraçoso por ele conhecido. [3] Se é possível a confirmação de tal desconserto diante do encantamento justificável por – ou coerente com – um dado qualquer da realidade, o que dizer das demonstrações inspiradas por sabe-se lá quais princípios da fantasia, tendo-se em vista a completa impossibilidade de coerência entre os despropósitos pronunciados em nome dessa admiração e a materialidade daquilo a que se referem? Pareceria improvável encontrar nomes como o de Moacyr Scliar subscrevendo afirmações como “Luiz de Miranda, ápice da poesia brasileira”, e isso, simplesmente porque seus poemas não são capazes de configurar nenhuma elevação.

Contudo, em Salve Portugal, há sempre mais espaço para a grandiloquência do autor. Em outra estratégia de destaque cada seção do livro, dividido em doze cantos, é iniciada por quartetos ou tercetos de Luís de Camões, algo como um certificado de garantia sugerindo aos leitores a natureza fabulosa do conteúdo. Além disso – e não se trata somente do uso de palavras pomposas, pois não cabe às palavras por si só, mas às articulações entre elas, aos seus ecos e sombras, os resultados forjados no poema –, o arranjo com que Luiz de Miranda engendra sua composição de imagens empoladas colabora para a demonstração de fatuidade: “Os navios de Cabral/ perderam-se e acharam-se/ puro vento da Poesia que alumbra/ o portal do novo dia” [4], “O turvor nos fecha os poros,/ por isso choramos,/ lágrimas que vão à terra,/ onde tudo termina/ e a nada ilumina/ no sentimento gris,/ mas renascemos no verso/ a extrema-unção final/ e isto são Velas de Portugal.” [5], “e o poema fulge/ onde vive a insolvência/ da arte,/ e parte de mim/ que arde/ no breu da noite,/ e nos salvamos todos,/ sobre o manto de estrelas/ que desce do céu.” [6]

Mais do que configurar uns versos ruins, o resultado dessas operações evidencia soluções onde é possível perceber o aspecto patético das pretensões estratosféricas do autor sem, no entanto, ter-se deslocado um centímetro sequer acima do nível do mar. Talvez, desse gosto pelo hiperbólico surja a insanidade tantas vezes repetida por Luiz de Miranda (e replicada por alguns de seus confrades) ao identificar-se como “o maior poeta do mundo”. Mesmo levando-se em conta que a mania de nomear-se sempre a mais seja uma prática bastante cultivada entre os rio-grandenses-do-sul, e que muitas vezes leve-os a crer que tudo nesta santa terra – e não carece mais nada, nenhum outro atributo a não ser o de pesar sobre ela – seja o melhor, o mais isso ou aquilo já levado a efeito, não é possível alguém manifestar sobre si a barbaridade de tal epíteto.

Como se não bastasse sua tolice, a título de acompanhamento à pretensão em ocupar um lugar de tamanho relevo, Luiz de Miranda expõe – e nisso pretende um argumento legítimo – o fato de suas publicações perfazerem uma soma de quatro mil e não sei quantas páginas, contra duas mil e qualquer coisa de Pablo Neruda ou as mirradas setecentas, que em suas apresentações ele atribui à totalidade da obra de Ezra Pound. Não sabe, ou finge não saber, que duas ou três páginas deste último são suficientes para superar a frágil altitude conquistada em face de números sem valor e significado algum. Equiparar-se a Ezra Pound, nome impresso com especial vigor na história da literatura universal, ou, o que é pior, pretender-se superior a ele na comparação, sem qualquer outro elemento de análise a não ser a quantidade de páginas publicadas torna necessária a recordação de uma das impressões de Baudelaire ao afirmar que da “esquisitice humana pode-se esperar tudo, até a equidade”. [7] A imparcialidade pretendida numa avaliação somente dedicada ao volume da publicação, à sua quantidade, só parecerá válida a quem muito se engane com relação aos significados da produção artística. Elegendo a quantidade de páginas publicadas como fator representante de sua suposta grandeza Luiz de Miranda comporta-se como um parvenu, ostentando de maneira vulgar uma fortuna com a qual lamentavelmente não há sequer razão em contar; capitaliza sua figura com fundos desprovidos de liquidez, seu papel-moeda – as páginas que tanto contabiliza – não possui valor real para a literatura.

Tal ausência de valor acrescenta-se, ainda, à maneira como o autor constrói sua linguagem. Um poema, através da articulação de signos, cria imagens, cria formas por meio da plasticidade das representações e dos significados que atribuímos à realidade e com os quais a apreendemos. As imagens concebidas em Salve Portugal são previsíveis, desgastadas e, sobretudo, ineficientes porque nos conduzem por um mundo inequívoco, justamente num contexto onde a desconfiança é que deveria estar sempre presente, que é o contexto da poesia em sua relação com a linguagem. Da imagética cansativa e sem vigor praticada por Luiz de Miranda, seleciono outras passagens: “e tudo muda e resplandece/ a noite amanhece” [8], “metade é solidão,/ outra metade é saudade/ que se retesa/ em rios de rima” [9], “neste céu/ que nos cobre/ de santo vento,/ vindo de longe/ falando saudade” [10], “O vinho rebenta/ em todos os momentos/ da carne,/ ela tenta resistir/ e é aí que cai/ sobre a cama,/ se esparrama/ em ais de amor./ (…) o amor,/ dom da vida”. [11]

Em O mito de Sísifo, Albert Camus sustenta que “todas as grandes ações e todos os grandes pensamentos têm um início irrisório” e complementa em seguida: “as grandes obras nascem muitas vezes na esquina de uma rua” [12] uma possibilidade de dar seguimento a essa assertiva é supor que em algum momento essas grandes ações abandonem a condição irrisória, os traços desse nascimento miserável, para então figurar num lugar de destaque. Na contramão do princípio estabelecido por Camus está a expectativa nutrida por Luiz de Miranda a respeito dele mesmo; por antever um universo oposto, há muito tempo, concebe que qualquer coisa que escreva esteja garantida pela grandiosidade poética, sem perceber sua incapacidade para atingir frações mínimas das dimensões visualizadas.

Por fim, o livro não passa de um álbum de retratos, mas completamente mal executado e inconciliável com o que se espera de uma obra literária de qualidade. Nos textos encontra-se, à maneira do que poderia fazer qualquer colecionista, a reunião de impressões e opiniões de um viajante em seu itinerário, entretanto uma reunião assim não basta para a configuração de bons poemas. Essas sentenças que encontramos no livro abrigam-se na condição de mera opinião pessoal, e se logram aventurar-se no que é alheio o fazem somente por cursos muito rasos, se há algo universal na obra de Luiz de Miranda, trata-se apenas de um senso vulgar, corrente porque sem dificuldades, sem desafios ao pensamento e porque satisfeito com o caráter incorruptível das repetições sem reflexão alguma.

 


[1] Denise Freitas nasceu em Rio Grande (RS). Escritora e professora; autora de Misturando Memórias (2007), Mares inversos (2010); está entre os autores que compõem a Antologia poética: Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, 2011) e Coletânea de poesia gaúcha contemporânea (Assembleia Legislativa do RS, 2013); possui publicações em diversas revistas, dentre as quais, Revista Sibila, Germina Literatura, Musa Rara, Artistas Gaúchos, Revista Modo de Usar.

Escreve o blog: www.sisifosemperdas.blogspot.com

[2] HERDER, J. G. Poesía y Lenguaje. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 1950. p.: 73. Segue transcrito o trecho mencionado, em sua tradução para o espanhol: “El enano colocado sobre los hombros del gigante ¿no es siempre más alto que el gigante por sí solo?

[3] BAUDELAIRE, Charles. Poesia e Prosa: volume único. Org. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p.: 573

[4] MIRANDA, Luiz de. Salve Portugal. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.p.: 85

[5] Id. ibid. p.: 12

[6] Id. ibid. p.: 38

[7] BAUDELAIRE, Charles. Op. cit. p.: 576

[8] MIRANDA, Luiz de. Op. cit. p.: 11

[9] Ib. ibid. p.: 14

[10] Ib. ibid. p.: 21

[11] Ib. ibid. p.: 25

[12] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo – ensaio sobre o absurdo. Lisboa: Edição Livros do Brasil, s/d. p.: 24

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