Opinião
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9 de setembro de 2010
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09:00

Semana da Pátria e eleições

Por
Sul 21
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Pe. Alfredo J. Gonçalves *

A Semana da Pátria, em ano de eleições, adquire sempre um tom mais estridente. Os candidatos de faro aguçado reconhecem nas comemorações do Dia da Independência terreno fértil para semear discórdias, acusações e promessas. A verdade é que a independência política, de 1822, não trouxe a independência desta em relação às forças econômicas que atuam na sociedade capitalista, de filosofia liberal ou neoliberal. Não podemos esquecer que a conquista da cultura democrática na Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos, no decorrer dos séculos XVIII e XIX, é contemporânea da consolidação do sistema capitalista de produção. Daí seus avanços e recuos, onde o sufrágio universal joga tanto a favor de uma efetiva prática democrática quanto a favor dos chamados “césares modernos” (Peter Gay), que manipulam as massas em favor de seus interesses, como é o caso de Bismark na Prússia, ou Napoleão na França, para não falar de Theodore Roosevelt nos Estados Unidos.

Em seu exaustivo estudo sobre “A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud” , o historiador Peter Gay salienta que “a despeito de todas as controvérsias envenenadas, e de todos os esforços decididos de manipular ou frustrar a expressão do dissenso, a era vitoriana foi a encarnação da era da política”. Citando Alexis de Tocqueville, o analista insistia em que a “‘tendência democrática’ que ele estava estudando era irresistível em todos os lugares”. Mas o mesmo Tocqueville, em meados do século XIX, não se esquecia de alertar para a “tirania da maioria”. Numa palavra, a democracia é um dos maiores ganhos da vida pública moderna, mas não deixa de trazer embutidos alguns riscos. Riscos nocivos especialmente quando tal sistema de governo é manipulado pela força do Estado ou pela força do Capital, forças ambas avançando em geral de mãos dadas numa cumplicidade promíscua.

Um olhar crítico para as democracias modernas ocidentais, e em particular para a trajetória política brasileira, expõe dois perigos muito presentes nos dias atuais. O primeiro se refere a um sistema democrático controlado pelo poder das leis de mercado, o que equivale a dizer controlado pelas oligarquias rurais, urbanas, financeiras ou simplesmente burguesas. Leis férreas e prepotentes que desconhecem a ética e, direta ou indiretamente, pagam os votos e a consciência dos eleitores como se paga qualquer outra mercadoria. O vírus da corrupção corrói os ideais democráticos fundamentados na “arte de buscar o bem comum”.

Os donos do dinheiro, da terra e da renda se convertem facilmente em “donos do poder” (Raymundo Faoro). Neste caso a democracia navega nas ondas superficiais da política, incapaz de mergulhar nas correntes profundas e subterrâneas da economia. Somente se elege quem tem dinheiro e influência para pagar a conta do marketing e expor sua imagem e idéias na mídia. Eleito, o candidato abre caminho para novas fontes de renda, e o círculo vicioso se fecha. Riqueza gera poder, e este multiplica a riqueza. Novos setores das elites usam os eleitores como massa de manobra. A conclusão é que embora a democracia tenha nascido como um governo do povo pelo povo e para o povo pode transformar-se num “governo de poucos por poucos e para poucos”, voltando a uma expressão de Peter Gay. Engendram-se novas oligarquias com base em corporativismos acadêmicos, religiosos ou sindicais, só para citar alguns exemplos. Verifica-se uma clara discrepância entre o discurso e a prática: enquanto as palavras falam de democracia, as ações fortalecem a camaradagem oligárquica.

O segundo risco é o de traçar uma linha divisória entre o bem e o mal, os “nossos” e os “deles”. Ao invés de uma verdadeira consciência política, com partidos maduros contribuindo para o bem comum, instala-se a política de heróis e vilões, reminiscência nefasta da era medieval. O meu partido e o meu candidato é o único que tem a verdade; do outro lado estão os traidores, os inimigos da pátria, os que vão implantar a barbárie. Fazer política equivale, então, a um jogo de paixões e de acusações. Em lugar de apresentar programas, procura-se desqualificar o adversário. Como se o certo e o errado tivesse fronteiras tão nítidas! Como se os “bons” estivessem todos do nosso lado, e os “maus” do lado oposto.

Na verdade, teoricamente, ambas as partes estão interessadas na construção da justiça, do direito e da paz. Partidos não são necessariamente facções, mas podem ser meios que ajudem a pavimentar o caminho da democracia. Mas o discurso da dicotomia taxativa estabelece um dualismo que acaba favorecendo a guerra cinematográfica e espetacular entre “mocinhos” e “bandidos”. Trata-se de uma leitura simples e simplista de um fenômeno que, no fundo, apresenta uma série de matizes e nuances extremamente complexa. O bem e o mal, como o joio e o trigo, nascem e crescem juntos. A fronteira entre um e outro passa por dentro de cada partido, de cada nação, de cada cultura e, no limite, de cada coração humano.

Infelizmente, em pleno século XXI, as campanhas eleitorais ainda são marcadas pela paranóia do medo, da acusação infundada e da condenação pura e simples dos adversários. Criminalizam-se as intenções e palavras dos outros candidatos para condená-los ao ostracismo e à execração, enquanto “o programa do nosso candidato” é idealizado e maquiado pelo poder e a magia da publicidade. A ação pública vista por esse ângulo de inimizades surdas ou conflitos abertos, e não por uma disputa sadia e saudável de posições diferentes e opostas, mas igualmente legítimas, em geral facilmente o linchamento político dos candidatos. Eliminar a oposição é eliminar a própria prática política. Cria-se o pensamento único, imperialista, o caminho mais curto para a tirania.

O certo é que, muitas vezes, a insegurança de quem domina o poder costuma criar fantasmas, tanto mais perigosos quanto maior o medo de perder os títulos e os privilégios. Depois, passa a persegui-los como se fossem inimigos reais do povo e da democracia. Desta forma desenvolve-se um discurso que, ao mesmo tempo, esconde a própria fraqueza e desautoriza as propostas do adversário. Estamos longe de uma autêntica cultura política.

* Assessor das Pastorais Sociais
Publicado originalmente em Adital – Notícias da América Latina e do Caribe


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