Opinião
|
21 de setembro de 2010
|
09:00

Religião e Política no Brasil atual

Por
Sul 21
[email protected]

Por Idelber Avelar, publicado orginalmente na Revista Fórum

Entre as grandes tarefas que a esquerda enfrentará na avaliação do legado do lulismo, uma das mais complexas será o entendimento real, sem clichês ou preconceitos, de qual tem sido o papel do neoevangelismo lulista, que floresceu justamente no governo do Partido de Trabalhadores fundado, em parte, por militantes católicos.

O assunto que me ocupa hoje é complexo, multifacetado, cheio de nuances. O papel que a religião tem cumprido nesta campanha eleitoral ainda não foi bem analisado, provavelmente não o será por um bom tempo e o máximo que este post pretende é levantar algumas indagações iniciais. Como sabe quem lê o Biscoito, sou ateu convicto e participante de movimentos em defesa do estado laico. Não acredito que religiões devam ser “respeitadas”, se por “respeito” entende-se o comum neste caso, ou seja, a blindagem delas a questionamento, crítica, paródia ou ridicularização. Entendo-as como ideias sujeitas à apropriação, como quaisquer outras. Isso é diferente de não respeitar as pessoas religiosas como interlocutores adultos e maduros ou mesmo como eventuais parceiros de alianças políticas. Afinal de contas, o maior presidente da história do Brasil é um firme crente em Deus, e isso não o impediu de ir muito mais longe que o sociólogo ateu no reconhecimento dos direitos dos casais homossexuais.

Discordo frontalmente dos amigos ateus que repetem uma rasa cantilena sobre a suposta equivalência entre Record e Globo como dois males idênticos e intercambiáveis. Essa cantilena é fruto da confusão mais característica das análises de uma certa classe média (e rara, diga-se, entre o povo pobre): a confusão entre moral e política. Se querem me dizer que Record e Globo se equivalem moralmente, eu posso considerar a propositiva como digna de elucubração. Se o que estamos discutindo é política, como suponho ser o caso aqui, eu digo a esses amigos ateus: no em dia em que a TV Record ajudar a patrocinar um golpe de Estado contra um governo legítimo, ocultar e beneficiar-se do assassinato de centenas e da tortura de milhares de brasileiros, editar criminosamente um debate presidencial para influir na eleição e esconder o maior acidente aéreo da história brasileira para exibir fotos ilegalmente obtidas das mãos de um delegado, de novo com puros objetivos eleitorais, aí eu discuto essa suposta equivalência no terreno da política. Se alguém vir o jornalismo da Record tratar o MST como um bando de criminosos, que é como ele é retratado na Globo, por favor me avise. O próprio MST já percebeu que ele é tratado de outra forma por lá.

Não há como se tratar do papel da religião na campanha eleitoral de 2010 sem falar da figura de Marina Silva. Aqui, é importante diferenciar entre a crítica legítima a posições que Marina pode ter assumido por causa de convicções religiosas, e o ataque puro e simples ao fato de ela ser evangélica, que é coisa que nenhuma coalizão política brasileira está em condições de fazer sem cair na incoerência — com a exceção clássica, o PSTU. Critiquei Marina quando ela ainda estava no PT por se recusar a prestar apoio à Frente Parlamentar pela Cidadania LGBT, que contava com nove senadores do partido, mas não com ela. Nesta campanha eleitoral, no entanto, com a exceção de uma menção a “mostrar os dois lados” na escola (entendendo-se “dois lados” como criacionismo e evolucionismo), eu não tenho qualquer crítica a declarações ou posições de Marina advindas de seu evangelismo. Pelo contrário, achei que as respostas aos temas polêmicos na sabatina do Globo foram excelentes, especialmente a parte sobre saber científico versus saber narrativo. Tenho várias críticas a Marina, mas elas não passam por aí.

Entre as mistificações desta campanha, algumas precisarão ser dirimidas com pesquisa estatística e sociológica séria. Por exemplo, seria interessante saber quais são os índices de intenção de voto a cada candidato dentro de cada religião. Não tenho dados sobre isso, mas suponho que eles seriam surpreendentes para muitos. Pelo que tudo indica, os índices de Marina entre evangélicos não são superiores aos que ela atinge na população em geral. Também na base de puros indícios, suspeito que as intenções de voto em Dilma nas comunidades religiosas não são significativamente inferiores às que ela possui em toda a pólis. Apesar da histeria de alguns pastores e padres, e da rasa análise de alguns ateus de classe média, não há qualquer indicação de que a religião tenha polarizado intenções de voto nesta eleição, pelo menos não da forma como costuma fazer, por exemplo, nos Estados Unidos, onde ela é quase uma marca identitária na cédula.

Entre as grandes tarefas que a esquerda enfrentará na avaliação do legado do lulismo, uma das mais complexas será o entendimento real, sem clichês ou preconceitos, de qual tem sido o papel do neoevangelismo lulista, que floresceu justamente no governo do Partido de Trabalhadores fundado, em parte, por militantes católicos. Confesso que tenho me assombrado com a incapacidade de alguns camaradas de compreenderem sem pré-conceitos (ou seja, antes de avaliar empiricamente os dados da realidade) qual é política se constrói e se articula na aliança insólita entre o lulismo e um naco significativo da comunidade evangélica—esta é somente uma entre várias outras insólitas alianças que são características do lulismo.

Praticamente nenhum desses camaradas demonstrou saber algo, por exemplo, sobre o papel do evangelismo na defesa a Lula nos difíceis idos de 2005, quando da cisão do PL que deu ao PRB sua forma atual. Celebrar os ganhos do lulismo quando Lula conta com 85% de aprovação é fácil; um pouquinho mais difícil é rever análises rasas à luz do genuíno estudo da história recente. Sou ateu convicto, mas começo a perceber, nos sistemáticos ataques à comunidade evangélica, uma mistura de classismo, desespero global e antilulismo de vísceras. Esses ataques, curiosamente, não se estendem ao catolicismo, que não fica atrás de igreja evangélica nenhuma em termos de preconceito, homofobia, misoginia e obscurantismo. Entender a aliança política que sustenta o lulismo nas comunidades evangélicas exige um outro olhar. Conte-se comigo na luta pelo estado laico. Conte-se comigo na luta pelos direitos dos ateus. Conte-se comigo para o eventual sarrinho a mistificações religiosas. Mas não vou misturar análise e militância política com ataques seletivos, dirigidos somente a uma comunidade religiosa, justamente aquela que, entre os mais pobres, é aliada do movimento que tem transformado o modo como os brasileiros entendem a cidadania.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora