Opinião
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17 de maio de 2010
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18:21

O POP O PAPOU

Por
Sul 21
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Quem ou o quê matou Michael Jackson?

“Michael Jackson morreu: seu passado era negro”, dizia o e-mail engraçadinho. Na televisão, um narrador descrevia as roupas dos convidados “vips”. Os que chegavam para a cerimônia fúnebre ao vivo. – Teve até lágrimas de verdade, alguém falou.

Na com-unidade do Orkut, algumas pessoas discutiam a diferença da trinca Elvis-Lennon-Jackson para com os mortais comuns: “eles pairam acima, são ícones do pop”, alguém postou (embora ninguém soubesse explicar direito o que a palavra ícone quer dizer).

Na Internet, nos jornais, nas revistas, artistas das mais variadas espécies e tribos choravam a perda como se fosse de um parente próximo. Doze pessoas se suicidaram, alguém me disse. Não viram mais sentido em permanecer no planeta sem a presença do autor do “moonwalk”

Impressionante. Fazia muito tempo que eu não via nada parecido. Comoção mundial. O caçula dos Jacksons realmente imprimiu o seu nome na calçada da fama. E no coração de muita gente.

Mas para mim, que sou uma criatura híbrida: metade psicólogo e metade ex-pop-star, a comoção me interessa num nível simbólico. Quando alguém consegue “pairar acima”, virar um ícone cultural, sua vida já não está mais sendo vivida num nível pessoal. O cidadão já não é mais dono do seu próprio nariz (no caso do Michael, literalmente). Virou domínio público. Iconificou-se. Tipo esse Jesus Cristo louro e de olhos azuis que se vê por aí. Tipo Beatles, tipo aquelas Marylins amarelas do Andy Warhol, e aquele cara gordo rindo na caixa da Aveia Quaker.

Será por isso que o cidadão Édson Arantes do Nascimento sempre se refere ao Pelé na terceira pessoa? Como se fosse realmente outra pessoa? Será que foi isso que Mark Chapman lembrou ao John antes de puxar o gatilho, e entrar para a história como o cara que matou John Lennon? Será que foi isso que matou Michael Jackson?

O pop não poupa ninguém, lembram? “O Papa levou um tiro à queima-roupa”. “Quem sai com a bunda na Caras, não sai com a cara na Bundas” , dizia um velho sábio. “Eh, oho, vida de gado”, diz outro velho sábio, parafraseando um gênio, O escritor inglês Aldous Huxley, que na década de trinta do século passado anteviu uma civilização de pessoas anestesiadas e “felizes”, vivendo uma vida de consumo programado e fugindo de qualquer espécie de sofrimento ou dor através de processos de condicionamento mental, Medicina high-tech-anti-envelhecimento, e da droga perfeita: o “Soma”. Na cena final do ainda contundente “Admirável Mundo Novo”, uma multidão “anestesiada e feliz” se atira avidamente em busca de emoções e sensações sobre um “selvagem”, que nada mais é, do que alguém diferente, alguém que ainda tem a coragem de sentir e viver a vida como ela é, com tudo o que ela tem.

Mas a verdade é que estamos cada vez mais parecidos com a multidão anestesiada e feliz de Huxley. Cada vez mais reduzidos a caras e bundas. Cada vez mais parecidos com uma massa cinzenta e disforme. Uma massa.  Como os nossos carros, todos com a mesma cara e todos cinza-metálicos. Uma massa de consumidores coisificados, como nos lembram Guy Debord na sociedade do espetáculo, Giles Lipovetsky na era do vazio, e Zygmunt Bauman na pós-modernidade líquida. Uma massa cinzenta de consumidores despersonalizados.

E sobre nossas cabeças, pairam flutuando os ícones do pop. A “casa dos artistas”. O Olympo pós-moderno. Nossos deuses de plástico com suas vidas conturbadas, gerando fotos escandalosas, fofocas para alimentar a voracidade veloz dos blogs e entretenimento real-time-on-line para nos salvar do tédio que o Rivotril não cura.

Quem ou o quê matou Michael Jackson? Essa pergunta ainda vai render muito ibope para muita gente, mas a verdadeira pergunta, na minha opinião , não é essa. Pra mim, a pergunta é: como ele aguentou tanto tempo? Como o seu corpo suportou tanta química para lutar contra a natureza e contra o tempo? Como seu coração suportou tanto anestésico para fugir da realidade e sustentar a ilusão da “Terra do Nunca”?

Não pensem que eu faço uma crítica moralista ou coisa que o valha. Não tenho moral para isso. Também pertenço à massa cinzenta. Quem está fora dela? Michael Jackson e a sua morte me interessam enquanto fenômeno sócio-cultural, enquanto símbolo. Não tenho nada contra a sua pessoa, e desejo, sinceramente, que ele possa ter um pouco de paz finalmente.

Mas o que a sua existência e o seu final melancólico simbolizam? O que estão sinalizando? Coincidentemente, uma das maiores revistas do país exibia como matéria de capa, uma semana depois do adeus ao deus do pop, uma reportagem imensa sobre as maravilhas da Medicina-high-tech-antí-envelhecimento.

Comprovando a genialidade de Huxley, nossa civilização caminha passo a passo na direção de cumprir sua assombrosa profecia.

Michael Jackson é o nosso mártir. Nosso herói que morreu de overdose de anestesia, lutando contra o tempo e contra a realidade. Ele se foi, mas nós que ficamos, conseguiremos concretizar o seu sonho. Nós realizaremos “Neverland”, a terra do nunca, onde nunca se cresce e nunca se sofre. Nós construiremos, em seu nome, o “Abilolado Mundo Novo”, onde nunca precisamos envelhecer. Onde nunca precisamos entrar no mundo adulto, com suas contradições e sombras. A terra do nunca, onde nunca precisamos entrar em contato com a dor, a culpa, as consequências dos nossos atos.

Nós construiremos o paraíso na terra, onde seremos sempre belos e jovens. Como Dorian Gray. Seremos sempre menininhos e menininhas ingênuos, realizando todos os nossos desejos e vivendo livremente a nossa sexualidade, sem nunca nos envolver emocionalmente de verdade com ninguém. Menininhos e menininhas comendo eternamente a cobertura de chocolate do bolo. Só a cobertura de chocolate. Todos serão de todos, e ninguém será de ninguém. Nossos filhos serão filhos da proveta. Finalmente aposentaremos Freud e nos libertaremos de todas as amarras mentais e emocionais que ainda nos prendem ao passado sombrio. “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós!” Michael se foi. Mas sua morte não foi em vão.

Aldous Huxley só errou uma coisa: essa nova era que se inaugura pra a humanidade, essa nova era de “paz e felicidade” sem limites e sem dor, não será contada a partir de Ford. O marco zero será o martírio do deus do pop. Senhores e senhoras: estamos no ano I D.M.J.

Texto de Carlos Maltz, psícólogo e fundador da banda Engenheiros do Hawai.


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