Geral
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4 de junho de 2012
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03:41

“Moradores de rua”, lei das contravenções penais, manicômios e cidadania regulada

Por
Sul 21
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Foram detidos e enquadrados criminalmente por “vadiagem” 52 “moradores de rua” em Franca, no interior de São Paulo, de acordo com informações divulgadas pela Agência Brasil e publicadas pelo Sul21, na última quarta feira (30/05). Ação da Procuradoria Pública daquele município, por meio da interposição de um pedido de habeas corpus coletivo, impediu que as detenções e enquadramentos tivessem prosseguimento e fez com que o caso tivesse destaque na mídia.
Vem de muitos anos a prática de deter e de criminalizar os “vadios” e os “moradores de rua” no Brasil. Cidades que desejam manter a “limpeza” de suas ruas se utilizam da polícia ou de agentes públicos para, amparados na Lei das Contravenções Penais, recolher à delegacia ou a abrigos municipais indivíduos que vivem em seus parques, jardins, calçadas, pontes e viadutos. Em muitas destas cidades, depois de recolhidos, os “moradores de rua” são obrigados a se banharem, ganham roupas limpas, alimentos e uma passagem de ônibus ou de trem para “suas cidades de origem” ou simplesmente para alguma localidade longe dali.
Data de 1941, portanto do período da ditadura varguista do Estado Novo (1937 a 1945), a Lei das Contravenções Penais, que no artigo 59 do seu capítulo VII, denominado Das Contravenções Relativas à Polícia de Costumes, prevê pena de prisão simples de quinze dias a três meses no caso de “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”.
Discriminatória, pois não criminaliza a ociosidade, mas a falta de renda para que o indivíduo se mantenha na condição de não trabalho, a Lei das Contravenções Penais vai ao requinte de determinar, no seu parágrafo único, que “A aquisição superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena”.
É com base nesta lei que se detém os “vadios” e os “moradores de rua” até hoje no Brasil. É também com base nesta lei que a polícia exige dos negros, dos pardos e de todos que aparentem pertencer às classes populares que portem e apresentem, em plena via pública e sempre que abordados, suas “carteiras de trabalho”. Trabalhar com “carteira assinada” foi e é condição para a cidadania regulada, tal como definida pelo cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, para os que aparentam não têm “renda que lhes assegure meios bastantes de subsistência” ou que tenham ares de “prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”.
Uma exigência que até bem pouco tempo a maioria da população brasileira não tinha como cumprir, posto que mais de 50% da População Economicamente Ativa (PEA) do país se encontrava fora do mercado de trabalho formal, ou seja, aquele que tem “carteira assinada”. Segundo estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), foi somente ao longo do ano de 2009 que a parcela formalmente ocupada da população brasileira ultrapassou a parcela não formalizada. Ainda hoje, no entanto, em algumas regiões e em muitos municípios, a parcela informalmente ocupada continua sendo superior à formal.
Além da questão da ocupação formal ou informal, a questão da população em situação de rua, como são conceitualmente definidos os chamados “moradores de rua”, merece consideração. Muitos, senão a imensa maioria (como comprovam diferentes pesquisas já realizadas no país), desses indivíduos são portadores de transtornos mentais, em diferentes graus. Desde 2001, quando, por força da Reforma Psiquiátrica e da aprovação da Lei nº 10.216, se passou a desativar os manicômios no país, sem que se tenham criado, paralelamente, as condições necessárias para que os doentes pudessem ser acolhidos por suas famílias, amparados em suas carências materiais e assistidos em suas necessidades médicas em hospitais comuns, tem aumentado sistematicamente a população em situação de rua no Brasil.
Atendendo aos reclamos de muitos moradores com residência fixa e ocupação formal (que reclamam dos transtornos causados pelos “moradores de rua”, que se alojam sob marquises e pontes, quando não se estendem em calçadas e praças, banham-se em chafarizes e defecam nas vias públicas, além de pedir esmolas nas sinaleiras de trânsito), muitos prefeitos municipais e muitas autoridades públicas têm se empenhado em “limpar” suas cidades. Impotentes para prover a assistência necessária aos “moradores de rua”, eles optam pela solução mais fácil e mais rápida.
Têm razão de reclamar os moradores fixos, assim como têm o direito de circular e se instalar nos espaços públicos aqueles que sofrem de distúrbios mentais e não têm recebido a assistência médica, psicológica e material a que têm direito e que o Estado e os agentes públicos têm o dever de lhes ofertar.
Sem que se retorne à situação de reclusão forçada e às práticas de desrespeito aos direitos humanos, que existiram durante séculos, é preciso que se corrijam as distorções provocadas pela adoção parcial da lei antimanicomial em vigor. É preciso que sejam criados leitos em número suficiente nos hospitais públicos regulares e instalados centros de tratamento e convívio para o acolhimento dos pacientes sem família e/ou em situações especiais. Será minimizada, com isto, parte dos problemas causados pelos e para a população em situação de rua no país.
Outra parte dos problemas será minimizada com a atualização da Lei das Contravenções Penais brasileira, extinguindo-se o seu caráter elitista. É preciso que seja revogado o artigo 59 desta lei, para que não se dê amparo legal para práticas de desrespeito e truculência como as que foram cometidas em Franca na última semana e que, na verdade, ocorrem em milhares de cidades brasileiras e são, quase sempre, ignoradas pela grande mídia.


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