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21 de novembro de 2011
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05:59

A Comissão da Verdade e os riscos do jeitinho e da conciliação

Por
Sul 21
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O jeitinho e a conciliação política são marcar nacionais e, com certeza, expressão dos mesmos vícios e da mesma tradição histórica de dominação e opressão. Talvez em nenhum outro país do mundo se tenha tão aprofundado e disseminado o hábito de contornar as regras, de dobrar os regulamentos, de ajeitar as coisas. No Brasil sempre se encontram meios de se realizar mudanças deixando tudo como sempre esteve. É a célebre frase do príncipe de Lampedusa, no romance O Leopardo: “mudar, para que tudo continue como antes”. Esta é a máxima dos conservadores e esta é a filosofia dos que oprimem, mas que, no Brasil, foi incorporada pelos oprimidos, quase que como uma filosofia de vida.

Ainda que Lampedusa fosse italiano, nem na Itália e na Sicilia, berço da máfia, onde morava, o jeitinho e a conciliação tornaram-se características distintivas nacionais tão fortes como o são no Brasil. Na Itália, para se tomar apenas um exemplo, fascistas e comunistas se enfrentaram e Mussolini, o Duce, foi enforcado, com sua amante, pela multidão enfurecida, após a retomada do país pelas forças aliadas na II Guerra Mundial.

No Brasil, as mudanças de sistema e de regime político têm ocorrido sempre por meio de conciliação. São, sempre, quase que continuações do que existia antes, nunca uma mudança radical. Foi assim com a Independência, promulgada por um príncipe português a conselho do pai, rei da metrópole colonialista. Pedro I fez-se rei no Brasil e, com a morte do pai, abdicou em favor de seu filho, Pedro de Alcântara, rumado para Portugal, onde reinou como Pedro III. Em troca do reconhecimento de sua independência, o Brasil pagou a dívida portuguesa com a Inglaterra e tudo se ajeitou, com um acordo que conciliou a todos.

Foi assim com a República, promulgada por militares sem a participação do povo, uma excrescência, pois é quase uma contradição a existência de uma república sem a atuação popular. República vem da expressão latina res publica, que quer dizer coisa do povo. Pedro de Alcântara (Pedro II) foi deposto e, para evitar derramamento de sangue, foi exilado junto com sua família. Imediatamente, todos os antigos monarquistas, inclusive os políticos, viraram republicanos e todos e reconciliaram.

Tem sido assim ao final de cada uma das muitas ditaduras que têm assolado o país, com as forças vitoriosas evitando, sempre, o conflito. O padrão é o da transição transada. Nunca da transição rompida, da quebra, da ruptura com o passado. É sempre o acordo entre o novo e o velho, entre as novas e vitoriosas elites dominantes e as velhas elites, nunca totalmente derrotadas e que, por isso, mantêm poder suficiente para continuar exercendo ao menos parte de seu antigo domínio.

Getúlio Vargas, que fez a revolução de 1930 contra as oligarquias regionais, nomeou interventores para cada província, mas teve que governar em acordo com as elites depostas. Como forma de neutralizar os antigos donos do poder, Getúlio fortaleceu setores mais fracos das antigas oligarquias regionais, nomeando seus integrantes para serem os novos interventores. Durante o Estado Novo (1937-1945), Getúlio e sua polícia política se empenharam mais em desarticular as forças populares que começavam surgir do que em enfraquecer os velhos poderosos.

Depois de derrubado por militares, Getúlio se auto-exilou em São Borja (RS), de onde saiu, anos depois, para se eleger e exercer a presidência da República até seu suicídio, em 1954. Ainda que as pressões políticas tenham sido muitas e violentas, a ponto de o presidente por fim à sua própria vida para se livrar delas, não foram punidos os excessos cometidos pelas forças de repressão política durante os anos do Estado Novo nem foram condenados os que caluniaram o presidente eleito e o levaram ao gesto extremo. Como se verifica, ao fim, deu-se um jeitinho e todos se reconciliaram.

As diversas tentativas de golpes militares ocorridas ao longo dos anos 1950 e 1960 foram todas anistiadas. Começou com a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubistchek, no final de 1955, passou pelas revoltas de Jacareacanga e Aragarças, em 1956, e culminou com a tentativa de impedir a posse de João Goulart, depois da renúncia de Jânio Quadro em 1961. A falta de punições levou ao golpe de 1º primeiro de abril, a chamada Revolução de 1964.

Durante 20 anos a história mudou. Entre 1964 e 1984, os antigos anistiados deixaram o jeitinho e a conciliação de lado. Prenderam, bateram e cassaram os mandatos políticos de quantos se insurgiram contra seus abusos e autoritarismo. Principalmente os jovens foram presos e perseguidos, já que são eles os que, sempre e em todo o mundo, se revoltam mais fácil e rapidamente contra o arbítrio e a falta de liberdade. Muitos, fossem estudantes ou trabalhadores, passaram a viver na clandestinidade, para conseguir se opor à ditadura. Alguns, em bom número, entenderam que o melhor método para combater a ditadura seria por meio da ação armada. Dentre os que assim agiram, a grande maioria foi dizimada. Milhares saíram do país, outros foram mortos, depois de torturados, quando não se tornaram “desaparecidos”, um eufemismo para se referir àqueles cujos corpos jamais foram encontrados.

Ao final do período, quando as forças de sustentação da ditadura já se encontravam debilitadas, mas ainda não extintas, respondendo às pressões e anseios da sociedade civil que se reorganizava, os que detinham o poder promulgaram uma anistia aos presos e exilados políticos. Além de anular os possíveis crimes que estes pudessem ter cometido, os detentores do poder se auto-anistiaram preventivamente. Enquadraram os torturadores e assassinos a mando do Estado ditatorial como praticantes de “crime conexo de sangue” e os perdoaram.  O velho jeitinho e a velha conciliação de elites, tão nossos conhecidos.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal considerou que a Lei da Anistia brasileira foi produto de um “entendimento nacional” e, por este motivo, entendeu que ela não pode ser revista. Esdrúxulo “entendimento” este, imposto pelo poder ditatorial que dominava o Congresso Nacional e que impunha sua vontade sobre todos os brasileiros. Mais um jeitinho e uma conciliação de elites, agora referendada pela suprema corte do país.

Na última sexta-feira (18), a presidenta Dilma Rousseff sancionou as leis que criaram a Comissão da Verdade, que deverá pesquisar os crimes da ditadura, e que derruba o sigilo sobre documentos oficiais. Talvez seja tarde, no entanto, para se esclarecer a verdade sobre os crimes da ditadura. A comissão terá poderes limitados e grande parte dos documentos que deveriam ser pesquisados deve já ter sido destruída. Mesmo assim, os antigos donos do poder não desistem de tentar obstruir os trabalhos e a revelação dos crimes cometidos. Na própria cerimônia de assinatura destas duas leis, a filha de Rubens Paiva, um ex-deputado federal morto pela repressão militar, foi impedida de discursar. Se ela fizesse uso da palavra, um militar também teria que fazê-lo. Para evitar confrontos, a presidenta, a contra gosto, acabou cedendo.

Vítima, ela própria, dos abusos da repressão política da ditadura, Dilma Rousseff viu-se na necessidade de engolir este sapo imposto pelos militares. Prova de que os que exerceram o arbítrio ainda contam com apoio forte na sociedade brasileira. José Sarney, ex-presidente da República e atual presidente do Senado, não compareceu ao ato de assinatura da sanção das leis. Collor de Melo, outro ex-presidente da República e atualmente senador, também não compareceu. Ambos se empenharam em dificultar a aprovação destas duas leis, principalmente da que termina com o sigilo sobre os documentos oficiais do governo.

Para que a Comissão da Verdade não se torne uma mera formalidade e não acabe por referendar a prática do jeitinho e da conciliação de elites (temerosas de que mudanças efetivas ocorram no país) é hora de a sociedade civil se mobilizar. É hora de exigir que a Comissão da Verdade investigue de fato e que seus achados sejam amplamente divulgados. Se não se pode julgar os assassinos e torturadores, ao menos que eles sejam denunciados para que suas ações possam ser repudiadas por todos.


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