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18 de novembro de 2012
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11:54

Retrato de um francês num rancho de santa-fé

Por
Sul 21
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Geraldo Hasse
Especial para o Sul21

Compra-se o último livro de Luiz Antônio de Assis Brasil imaginando que será o melhor de toda sua obra constituída por uma dúzia de romances mais ou menos consagrados pela crítica e pelo público. Afinal, desde 2006 estava prometida a biografia romanceada do naturalista francês Aimé Bonpland  (1773-1858), que viveu décadas entre os índios do Sul da América.

Lançado no início de outubro de 2012  pela L&PM, Figura na Sombra tem 264 páginas e custa R$ 39,90. O preço poderia ser provavelmente mais acessível se o livro não viesse no tipo Times 12/14 valorizado pela entrelinha larga, o que produz uma mancha clara, bastante convidativa. Além disso, os capítulos curtíssimos são entremeados por espaços em branco que certamente ajudam na travessia do volume. São muito atraentes a capa de Marco Cena e a contracapa de Anelise Scherer.

Animado, o leitor encara o prólogo. O autor começa falando de uma tarde luminosa pós-chuva no pampa. Em meia página, está descrito o ambiente. Tudo pronto para o aparecimento dos primeiros dois personagens, o que acontece no quinto parágrafo: “Os dois homens conversam no maior dos três ranchos cobertos por telhados de santa-fé e unidos num conjunto improvável que, visto do alto, formaria a letra K.”

“Cobertos por telhados de santa-fé” seria um pleonasmo?  Nem tanto, talvez apenas um cochilo de verão que passará em branco. Encafifado, o leitor se pergunta se, no lugar do revisor, ousaria questionar o maior romancista do Rio Grande sobre o detalhe. Não, claro que não. Isso não são cochilos, são coisas do estilo, pensa. Mas segue matutando. Já que telhados, por definição, são constituídos geralmente por telhas de barro cozido, não seria melhor suprimir a palavra “telhados”, ficando apenas “cobertos por capim santa-fé” ou, simplesmente, por “cobertos por santa-fé”?  Se Figura na Sombra for publicado na Europa, o editor certamente adirá uma nota de rodapé explicando que santa-fé é um capim típico do pampa ainda hoje usado para cobrir casas e galpões.

Reanimado por um mate, o leitor vira a folha e logo tropeça em três parágrafos curtos e definitivos. A saber:

“Mas tudo ali é passado.”

“No pampa, todos os cômodos de uma casa são passado.”

“No pampa, tudo é passado.”

Pausa para tomar fôlego. Que pasa, muchacho? Serão boutades à moda Assis Blasé?

A cena de abertura do livro ocorre em 1858 no interior de Corrientes, no pampa argentino, e envolve o naturalista francês Aimé Bonpland (dono do rancho de barro descrito acima) e o médico alemão Robert Christian Avé-Lallemant. A partir dos três parágrafos sobre o caráter passadista do pampa, o leitor fica atento para descobrir e compreender por que no pampa tudo é passado. Quer dizer atrasado? Anacrônico? Tradicionalista?

Ou o autor quererá dizer talvez que o presente é o cerrado e o futuro a amazônia? E onde fica o pantanal nessa história? E a mata atlântica? E a caatinga? E o sistema costeiro sulino onde o autor vive e criou A Prole do Corvo, Cães de Província, Concerto Campestre e alguns dos melhores romances contemporâneos ambientados no pampa brasileiro?

É um mistério a ser desvendado futuramente. Por enquanto, fica a hipótese de que o autor tem uma bronca com o pampa ou com seus representantes, excessivamente mergulhados em costumes tradicionalistas, mas a crítica não é explícita — amoita-se, e bem, na literatura.

Bastam mais alguns parágrafos e, pronto, Figura na Sombra embala na história fascinante do sábio que virou Amado Bonpland ao radicar-se por 40 anos na região missioneira sul-americana, depois de anos viajando com o botânico Alexander von Humboldt e outro tanto cuidando do herbário da imperatriz Josefina, mulher de Napoleão, na pós-Revolução Francesa. .

O livro se arrasta ao descrever as andanças e descobertas botânicas de Bonpland e Humboldt, mas ganha vida a partir da página 107, quando Assis Brasil esquece o alemão cu-de-ferro e joga luz sobre o francês que acaba por trocar a corte parisiense pela vida entre os índios guaranis.

Não é uma história original, pois no Brasil há diversos personagens – como Caramuru, no século XVI – que se esbaldaram no primitivismo, mas nesse caso não restam dúvidas de que Assis Brasil dissecou bem, e com grande economia de palavras, a biografia de um dos maiores cientistas da primeira metade do século XIX, quando quase tudo estava para ser nomeado e/ou descoberto.Bonpland é uma figura extraordinária.

Numa nota final, o autor registra o lançamento em 2010 do livro A Life in Shadow (Uma Vida na Sombra), “extraordinária obra acadêmica” do geógrafo americano Stephen Bell, que focaliza  as andanças de Bonpland na América do Sul. Não fica claro se a coincidência dos títulos e enfoques apressou ou retardou a publicação do romance brasileiro, que levou sete anos e meio para ficar pronto.


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