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30 de novembro de 2012
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22:52

“Não no meu nome”: grupos LGBTQ criticam políticas sexuais de Israel

Por
Sul 21
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A busca por um movimento LGBTQ que também se posicione contra opressões como o regime sionista foi a pauta do debate | Foto: Bernardo Ribeiro/Sul21

Natália Otto

A atividade autogestionada “Discursos sexuais no projeto sionista: políticas queer e liberação”, que ocorreu nesta sexta-feira (30) à tarde na Casa de Cultura Mário Quintana, trouxe ativistas do movimento LGBTQ da Palestina e acadêmicos dos Estados Unidos para falar sobre a complexidade das experiências vividas pelos queers palestinos.

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Para eles, sua luta não é apenas pela liberação de sua sexualidade e identidade, e sim pela libertação de todo o povo palestino. Conflitos entre a identidade étnica e sexual, bem como com o movimento gay israelense e estadunidense, foram abordados pelo grupo no Fórum Social Mundial Palestina Livre.

De vítimas para “traidores ocidentais”: a história dos LGBTQs na Palestina

A primeira palestrante, Haneen Maikey, do coletivo “alQaws: Pela Diversidade Sexual e de Gênero na Sociedade Palestina”, compartilhou um pouco da história do movimento e dos estereótipos atribuídos a comunidade LGBTQ ao longo dos anos na Palestina. Ela contou que, durante a Primeira Intifada, nos anos 80, palestinos de comportamento não normativo, como homossexuais, pessoas que faziam sexo fora do casamento ou usavam drogas, era alvos de investigações pela inteligência israelense devido ao caráter subversivo de suas ações.

Já no período dos Acordos de Oslo, no início dos anos 90, ocorreram dois fatos simultaneamente: o movimento LGBTQ israelense já ganhava algum reconhecimento, inclusive com a vitória do fim da lei anti-sodomia, ao mesmo tempo em que a OLP era reconhecida pela comunidade internacional como órgão palestino – passível, assim, de se responsabilizada pelos abusos de direitos humanos ocorridos na região, inclusive contra a comunidade queer palestina.

“Começou a se criar a noção de que a sociedade palestina não era progressista”, explicou Haneen. “Assim, surgiu a ideia de que os palestinos LGBTQ são ocidentalizados, que acreditamos em algo que só existe no Ocidente. E que apenas o Ocidente se preocupa com as questões da sexualidade”, lamentou a ativista. “Essa é mais uma camada de estereótipo contra a qual precisamos lutar”.

Durante a Segunda Intifada e a guerra do Líbano, nos anos 2000, outros dois acontecimentos marcaram o ativismo LGBTQ na região: o movimento gay israelense ganhou mais reconhecimento e aprofundou seus laços com o estado de Israel, ao pedir pelo reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo e pelo direito de lutar no exército – “o mesmo exército que faz a ocupação na Palestina”, lembrou Haneen. Ao mesmo tempo, os movimentos LGBTQ palestinos começaram a se organizar politicamente.

Haneen Maikey: “É minha responsabilidade, como queer, dizer que não serei usada, que não deixarei os sionistas usarem minha sexualidade de maneira que reforce o sionismo”| Foto: Bernardo Ribeiro/Sul21

A máscara rosa: para ativistas, Israel usa direitos gays como manobra política

Para Haneen, o uso da sexualidade como forma de manobra política no conflito foi crescendo ao longo dos anos, até culminar na prática chamada de “pinkwashing”. “É o uso cínico dos direitos gays pelo governo israelense ou outros órgãos sionistas de direita para desviar a atenção dos crimes de guerra cometido por eles”, explicou Haneen. “Assim, Israel se promove como um país progressista, que apóia a causa LGBTQ, e, ao mesmo tempo, mostra os palestino como homofóbicos”.

De acordo com a ativista, essa política segue uma lógica de colonização: a desumanização do povo palestino e a noção de que Israel é único país democrático no Oriente Médio, ao lado de vizinhos ditatoriais e bárbaros. “É por isso que, como um grupo de palestinos queers, não trabalhamos com grupos israelenses que são favoráveis ao sionismo”, declarou. “Há quem ache que todos devemos nos apoiar, mas eu não vou ficar do lado de quem abusa do meu povo e queima vilarejos”.

“Todo esse abuso da nossa sexualidade nos obriga a perder tempo destruindo essas imagens de vítimas e de ocidentalizados, tempo em que poderíamos estar trabalhando em questões que levem à nossa liberação e a do nosso povo”, lamentou Haneen.

A essência da causa de Haneen é mostrar que as políticas sexuais estão levando o movimento LGBTQ palestino à uma regressão e têm reforçado as estruturas de poder que ele vem tentando desconstruir. “É minha responsabilidade, como queer, dizer que não serei usada, que não deixarei os sionistas usarem minha sexualidade de maneira que reforce o sionismo”, afirmou. “Os israelenses do movimento gay me chamam de separatista e dizem que ergui uma parede de apartheid entre nós”, contou ela. “Não é nada disso. Só estou me separando do meu opressor. Se você não é contra o regime sionista, não é meu aliado”.

Acadêmico queer questiona demandas LGBTQ como casamento e direito de alistamento

O acadêmico estadunidense Dean Spade, da Universidade de Direito de Seattle, iniciou sua fala contextualizando a situação do pinkwashing israelense em relação a seu maior aliado, os Estados Unidos. De acordo com ele, grupos LGBTQs israelenses vão aos EUA promover as políticas de Israel, onde casais do mesmo sexo podem casar e homossexuais podem entrar no exército. “Casamento e exército: essas são as políticas progressistas de esquerda de hoje”, ironizou Spade.

Para ele, existe uma dicotomia da qual é difícil fugir: “Ou você é a favor do casamento e do direito de entrar no exército, ou você é homofóbico. É como se não houvesse outra possibilidade”, afirmou. Ele contou que as duas políticas têm sido alvo de críticas no movimento queer e no movimento feminista. “Porque estamos buscando ‘reconhecimento’ de um estado que é opressor?”, provocou.

“Acho que não preciso me ater muito sobre os problemas de querer se juntar ao exército”, brincou Spade. “Todos sabemos as atrocidades cometidas pelos militares dos EUA no Iraque e pelos soldados israelenses na Palestina”. Para ele, a suposta conquista dos gays e lésbicas de poder se alistar no exército não é satisfatória.

Spade logo rumou para um tópico mais polêmico: o casamento. “O casamento é forma de controle racial e limpeza étnica. É um sistema que reforça as normas familiares, declara quais sexualidades são boas e desejáveis e distribui propriedade e direitos”, explicou. Para ele, essas são “violências organizadas” que se reproduzem até hoje.

“Porque estamos buscando reconhecimento de um estado que é opressor?”, provocou Dean Spade | Foto: Bernardo Ribeiro/Sul21

Spade afirmou que, nos Estados Unidos, o casamento é um sistema de distribuição de necessidades básicas como documentos de cidadania e seguro de saúde. “Isso prende as pessoas na estrutura da família – que, para muitas pessoas, é uma instituição repleta de violência, principalmente violência de gênero”, explicou o acadêmico.

Ele ainda afirmou que há diversos movimentos feministas anti-racismo que criticam a instituição do casamento, por esta ser uma das bases da cultura escravocrata e do colonialismo. “É através do casamento que se decide quem terá e não terá propriedade”, argumentou ele. Spade lembrou das leis instituídas após a proibição do apartheid no sul dos Estados Unidos, que tiravam direitos de filhos nascidos fora de casamentos. “A conexão entre casamento e racismo é muito próxima”, declarou.

Citando um exemplo mais recente dessa conexão, Spade apontou o fato de que palestinos casados com israelenses não recebem cidadania para residir em Israel. “Qualquer judeu que quiser ir para Israel ganha cidadania, qualquer pessoa que casar com um judeu israelense também. Essa política é a pura perpetuação da limpeza étnica, uma maneira de controlar a demografia e o movimento dos palestinos”, afirmou.

Para Spade, a comunidade LGBTQ vive um momento complicado. “Estão todos dizendo que queremos casamento e entrar no exército. Mas nós, queers e trans, estamos pedindo o fim da ocupação, da pobreza, da violência contra os imigrantes”, declarou. “O (presidente dos Estados Unidos) Obama é visto como um cara legal, progressivo e de esquerda porque é a favor do casamento gay e dos homossexuais no exército. Mas, ao mesmo tempo, ele apoia Israel e outros regimes ditatoriais. Como você pode encobrir isso com questões como o casamento?”, questionou.

Spade disse que ouve ativistas LGBTQ que não pensam como ele dizer que questões como a ocupação israelense e o casamento gay são separadas, ou que o casamento e o direito a servir no exército não são tudo, mas são um passo na direção certa. “Não são. É um passo na direção errada”, afirmou, categórico. “É racismo feito em nosso nome”.

Gina Dent: “Precisamos encontrar uma linguagem que esteja aberta à pluralidade de nossas experiências”| Foto: Bernardo Ribeiro/Sul21

Acadêmica defende a busca por uma nova linguagem que fuja de sistemas de dominação

A libanesa Lynn Darwish, coordenadora de um grupo libanês de apoio à mulheres queer e transexuais, e a professora da Universidade de Santa Cruz, CA, Gina Dent, complementaram a discussão ao lembrar a importância de pensar a identidade dos LGBTQ palestinos inseridos em seus contextos de gênero, raça e classe.

“Quando fundamos nosso grupo de apoio, tudo o que queríamos era melhor a qualidade de vida das mulheres queers e trans da nossa região”, contou Lynn. “Mas fomos descobrindo que não sabemos o que qualidade de vida significa. As experiências são complexas, e a liberação queer está sempre ligada à luta contra grandes formas de dominação e regulação”, afirmou.

“Acredito que precisamos falar menos sobre direitos e mais sobre como criamos uma linguagem para falar de nossas experiências que esteja fora de um sistema de dominação”, considerou a professora Gina Dent, reforçando o argumento de Dean Spade. “Precisamos encontrar uma linguagem que esteja aberta à pluralidade de nossas experiências”.


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