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11 de setembro de 2012
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09:00

Jorge Montealegre: “Medo se instalou desde o primeiro dia em Santiago”

Por
Sul 21
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A repressão em Santiago. Foto do dia seguinte ao golpe militar.

Por Maurício Brum
Especial para o Sul21

Jorge Montealegre Iturra deveria ser apenas mais um soldado raso a serviço dos generais golpistas em 11 de setembro de 1973. Aos dezenove anos de idade, ainda estava dentro do que seria seu período obrigatório no Exército. Sua sorte mudou dois meses antes do levante militar: em um ambiente já francamente contrário às opiniões de esquerda dentro das Forças Armadas, uma discussão política o afastou do quartel. Na época, ele era militante da Izquierda Cristiana, um pequeno partido desmembrado da oposição que se uniu à coalizão de Salvador Allende com o governo já em andamento. Montealegre, que poderia ter sido um cumpridor de ordens a mando da repressão, acabou se tornando uma vítima desta. Caiu preso em 28 de setembro, passando pelas dependências da Escola Militar de Santiago e pelo Estádio Nacional, convertido em lugar de detenção e tortura de prisioneiros políticos, antes de ser levado ao campo de concentração de Chacabuco, no norte do Chile, onde ficou até o ano seguinte.

Foi no cárcere que Jorge Montealegre começou a escrever poesia. Seu primeiro livro, “Chacabuco” (1975), foi impresso a mimeógrafo já no exílio, em Roma, e serviu como uma das primeiras denúncias das violações de direitos humanos cometidas pelo regime de Augusto Pinochet. Regressou ao Chile em 1979 e nunca deixou de escrever. Para se referir aos autores que, como ele, começaram a publicar durante a ditadura, Montealegre cunhou o termo “Generación N.N.”. Non Nomine (N.N.), “nenhum nome”, era a inscrição que levavam as cruzes dos mortos não identificados nos cemitérios chilenos. Tornou-se também uma maneira de se referir aos escritores que, por razões de segurança, lançaram seus primeiros relatos com pseudônimos ou sem qualquer menção à autoria, o que muitas vezes tornou os textos mais conhecidos que os nomes por trás deles.

Doutor em estudos latino-americanos pela Universidad de Santiago de Chile, Jorge Montealegre escreveu um testemunho sobre o tempo em que esteve detido no Estádio Nacional (“Frazadas del Estadio Nacional”, 2003), além de numerosos livros de poesia. Também publicou estudos sobre o humor gráfico no Chile e a Nueva Canción Chilena, movimento de renovação da música nacional na década de 1960, marcado por intérpretes de esquerda. Aos 58 anos e ainda sem edição brasileira para suas obras, atualmente ele trabalha em um novo livro de memórias, agora sobre Chacabuco, baseado nos originais de 1975, que nunca foram reeditados. Em seu pequeno escritório repleto de livros, revistas e recortes diversos, Jorge Montealegre me recebeu numa fria manhã de inverno, ofereceu um café e concedeu a entrevista a seguir:

Quem era o Jorge Montealegre de 11 de setembro de 1973? Sendo ainda um estudante, que sonhos tinha para depois de sair do colégio, caso não ocorresse o golpe?

Eu estava no último ano do liceu e era um dirigente dos estudantes secundaristas. Pertencia a um partido muito novo e muito pequeno, a Izquierda Cristiana, que era produto de uma divisão do Partido Democrata Cristão (principal partido de oposição a Salvador Allende). Quer dizer, eu não fui allendista no momento das eleições presidenciais. Mas estive no grupo de jovens democrata-cristãos que, depois de fazer campanha por Radomiro Tomic, saiu marchando na mesma noite da vitória de Allende, apoiando Allende de imediato. Isso é histórico, está em muitas crônicas da época essa atitude de jovens que, sem ter sido allendistas, apoiam o processo de imediato. Depois de um tempo vai acontecer a divisão do PDC. Era um partido de centro que se polarizou muito, se direitizando principalmente, forçando a saída dos jovens que já nos chamávamos Izquierda Cristiana. Deste partido eu devo ter sido o fundador mais novo, sem nenhuma importância. Era só um jovem que, como muitos, militava em um partido político, e no liceu todos tomávamos partido, ou pela esquerda ou pela direita. No meu liceu a maioria era de direita, éramos poucos os de esquerda. Nessa época, meu projeto pessoal era estudar cinema na Universidade Católica. Essa era minha ideia profissional. Bom, isso se frustrou em parte, ou se adiou, com a minha prisão política. Era preciso prestar as provas de admissão à universidade e eu estava preso quando tudo aquilo aconteceu. De fato, no momento em que voltei à liberdade eu precisei realizar alguns exames para terminar o colégio. E isso foi uma sorte, foi muito acidental. Porque eu deveria ter repetido o ano no liceu por falta de frequência, em função da prisão. Mas em algum momento eu ingenuamente escrevi desde o campo de concentração de Chacabuco para meu professor-chefe: “Veja, eu não fui às aulas porque estou em uma situação especial…” e nisso lhe pedi material, formulários, para me preparar para a prova de admissão à universidade. E resulta que esse professor teve a boa ideia de incorporar essa carta, que era muito ingênua, como um documento de justificativa que serviu para eu prestar esses exames. Se eu não tivesse enviado essa carta não poderia ter concluído o ensino médio e seria um problema grave.

Estando tão envolvido na política, você deveria já ter uma ideia concreta de que o golpe de Estado não era uma ameaça impalpável, mas algo que poderia de fato ocorrer. Mais ainda depois do Tanquetazo (tentativa frustrada de golpe militar ocorrida em junho de 1973)…

No meu caso, eu tinha um grau de consciência alto nesse plano, porque naquele mesmo ano eu tive que prestar o serviço militar. Me correspondia pela idade, já que eu tinha 18 anos. Então eu estive no Exército no ano do golpe, e felizmente me dispensaram dois meses antes do 11 de setembro. Mas minha geração, em termos militares, a classe dos nascidos em 1954, foi a tropa do golpe. E quando eu estive preso, houve companheiros de quadra e companheiros de dormitório do quartel que acabaram sendo meus guardas e vigilantes. Na época em que estive no regimento prestando o serviço militar, por muito pouco tempo – um par de meses, nada mais –, o clima interno, dos oficiais, era claramente golpista. E evidentemente agressivo com aqueles que manifestávamos uma opinião distinta. De fato, me dispensaram do Exército por uma discussão política. Felizmente. Felizmente me dispensaram antes do golpe. Quem sabe o que teria passado se eu ainda estivesse no regimento. Não sei, não poderia responder isso. Felizmente saí antes, mas com a convicção de que havia uma postura golpista evidente nos militares. E além disso, dentro dos partidos de esquerda nós tínhamos certa informação, uma certa sensibilidade pelo que se passava em outros lugares. Especialmente no Brasil. Sabíamos das torturas no Brasil, de como havia sido a queda de João Goulart. Então havia certa “consciência inconsciente” do que poderia acontecer. Mas apesar disso, eu diria que o processo seguia com certo convencimento, com uma certa esperança de que não ia acontecer nada. É estranho isso, porque intelectualmente era claro que poderia acontecer algo, mas emocionalmente nós não queríamos ver. Tínhamos mitos de que havia militares democráticos, de que as forças do povo e as maiorias resistiriam, etc.

Essa incapacidade de reação ao golpe se discute muito até hoje. Na sua opinião, por que não foi possível uma resposta do povo nas ruas, como chegaram a acreditar que seria visto?

Creio que, em parte, porque nossa tentativa de revolução era uma tentativa democrática, um projeto em que não estava contemplada massivamente uma participação armada. E com isso, não estava contemplada a defesa armada do governo. Em episódios como o Tanquetazo, a defesa foi de apoio massivo, de grandes manifestações, de grandes concentrações em que o governo demonstrava que havia muita gente por trás dele. Mas uma força eleitoral, de pessoas, mas de pessoas desarmadas. Não era uma alternativa do governo defender-se militarmente, a não ser que houvesse uma divisão das Forças Armadas. Porque as promessas de defesa armada que fizeram alguns partidos políticos acabaram sendo promessas demagógicas. Os partidos que mais reivindicavam a possibilidade da luta armada não tinham força suficiente para fazê-lo. Então quando houve o golpe de Estado, a ocupação da cidade pelos militares foi contundente. As pessoas que foram aos lugares definidos para resistir finalmente não se constituíram uma força militar. Constituíam força moral, força eleitoral, força física em termos de pessoas, mas em nenhum caso uma força que pudesse ser comparada com a força militar regular do Exército – que não sofreu divisões, que não se quebrou, que atuou com unanimidade, precisão e selvageria. Que atuou com muita força. Portanto o que se instala no primeiro dia é o medo. Desde o primeiro dia se instala o medo e se sufoca, eu diria, qualquer tipo de possibilidade de resistência armada que pudesse reverter a situação. Houve focos, houve pessoas – mártires, diria eu –, que resistiram e que morreram, mas sem possibilidades de reverter a situação e vencer as forças armadas regulares.

Logo após o golpe, é decretado o toque de recolher por quase dois dias inteiros. Em seu livro, você escreve que, ao sair à rua, se pisava em um país diferente. Quanto havia mudado no cotidiano de Santiago neste dia 13 de setembro em que é possível sair de casa outra vez?

A grande mudança tem a ver com o medo. Com o medo no sentido de que você saía de casa e encontrava um país silencioso, um país cheio de desconfiança em que não se sabia bem com quem conversar e com quem não, a quem telefonar e a quem não. Estava cheio de rumores de casos de infiltrados, em que se descobria que tal pessoa, que era um militante, agora aparecia em uniforme militar, por exemplo, alguém que no dia seguinte ao golpe se viu que era um infiltrado nos partidos de esquerda. Eram dias de renúncia, de mudanças imprevistas nas pessoas e, além disso, imediatamente após o golpe, começou a se realizar uma operação de limpeza da cidade. Partidários do golpe – eles voluntariamente e outros não – saíram apagando os murais pintados por Santiago. Apagando os símbolos políticos, para mudar a cidade nesse sentido. E por outro lado, o cotidiano também se afetou no sentido de que o estigma contra a esquerda se torna de que a esquerda é de certa forma licenciosa: é uma esquerda frouxa, irresponsável, com pessoas sujas. Deste modo, nas ruas, por exemplo – e isso aconteceu comigo –, poderiam te parar para que cortasses a barba, no caso de ter barba. Eu não tinha, era muito jovem, mas tinha cabelo longo. E te ameaçavam cortar o cabelo, ou te cortavam o cabelo na rua, de maneira humilhante. No caso das mulheres, se proibiu o uso de calças e também de minissaias, de maquiagem e de colares nos colégios. Então há uma intervenção não somente na cidade, de mudar o aspecto da cidade como se não tivesse acontecido nada, como se não houvesse história nas paredes, nos muros, mas também se intervém nas pessoas. Quase comicamente, se formam filas em frente às barbearias para cortar o cabelo e a barba. E isso era por um lado uma imposição, uma censura ao corpo, às casas, à cidade, mas também, e isso é o que cala mais fundo, era uma autocensura. Ou seja, a pessoa com barba corta a barba sozinha, sozinha corta o cabelo, sozinha queima os seus livros ou seus discos. Porque era perigoso ter barba, ter discos, ter livros, ter o cabelo longo. Há uma autocensura, uma intervenção no próprio corpo por conta do medo. E esse medo se instala por muitos anos e se instala de imediato. E é muito forte. Note que o que estou contando não tem relação, ainda, com a repressão direta. Nem com a prisão, nem com a tortura, nem com aquilo que realmente aconteceu também. Mas para evitar isso, ou sabendo que já aconteciam e aconteceriam coisas assim, as pessoas optam pela autocensura. E parte da autocensura é a denúncia às participações políticas, que desde então ocorrem desde a clandestinidade. Vão passar muitos anos para que voltem a existir manifestações massivas.

Você mesmo viveu essa autocensura, em especial no que diz respeito ao perigo de ter certos livros. Nesses dias você tentou ler o máximo que foi possível, antes que os militares chegassem. Guardou na memória alguma obra em especial?

Bom, eu estava sozinho em uma casa que não era minha casa. Eu tinha ficado órfão havia alguns anos e vivia com alguns parentes. Na época do golpe estava vivendo com um casal de primos mais velhos que eu, que tinham uma filha, e que aceitaram que eu vivesse com eles para poder estudar e participar da política. Porque eles eram militantes, de outros partidos, mas também eram militantes e funcionários do governo de Allende, no Ministério da Agricultura. E ele, o marido, era um sociólogo, um intelectual que tinha uma tremenda biblioteca, além de muitas revistas e jornais. Éramos grandes consumidores de revistas e jornais e eu sigo sendo até hoje. A casa era como uma biblioteca onde boa parte dos livros eram suspeitos. Havia todos os tipos de livros. Havia livros de direita, claro, jornais de direita, mas também livros de esquerda, livros da Quimantú (editora estatizada no governo Allende), de autores clássicos. E muitos discos, também. No meio desses dias eu recebo a notícia de que meus primos se esconderam em outra parte, nunca soube onde, e que iam se asilar na Embaixada do Peru. E portanto iam sair do país. Mas eles eram os donos da casa, que além disso era uma casa alugada. Então eu fiquei numa casa que não era minha casa, que em algum momento tinha que ser devolvida, porque enquanto estudante eu não podia pagar por ela, já que ficava num bairro elegante. Fiquei sozinho com todos os livros, com todas as revistas, com todos os discos, e vendo que havia algumas coisas que podiam ser perigosas. Livros sobre o exército e a luta armada de Mao Tsé-Tung, por exemplo. Eram livros que os chineses davam. Eles davam tudo o que tu quisesses. Havia umas revistas com cupons em que se podia pedir as obras completas de Mao Tsé-Tung, e te perguntavam se queriam em capa rústica, em plástico ou em couro. Você mandava um cupom e te devolviam por correio, grátis, todos os tomos das obras completas de Mao. E se pedisses aos coreanos as obras de Kim Il-Sung, também chegavam as obras dele. Alguns desses livros estavam em capas de plástico. Eram vermelhos e tinham títulos relacionados à luta armada. Livros que eu não li, mas que davam um medo atroz de pensar o que fariam os militares quando chegassem e encontrassem isso. Porque se tu queimavas um livrinho de Mao com capa plástica, saía uma fumaça negra e espessa como em um incêndio. E era muito lento. E também não se podia jogar no vaso sanitário e dar descarga. Era uma angústia. Eu me pus a revisar os livros que o meu primo tinha, livros de sociologia, e vi que tinha um livro, não me recordo o autor, que se chamava “El Comunismo”, disso me lembro muito bem. Comecei a olhar e ler, e era um livro anticomunista. Havia na casa, também, um livro sobre o cubismo, sobre pintura, e os militares quando chegaram pensaram se tratar de uma obra referente a Cuba! Passei maus bocados por esse livro. lia tudo como se fosse um censor, uma coisa muito louca. Ia lendo pouco a pouco cada coisa, calculando quão perigoso era determinado livro naquela situação. Eu não era um bom leitor de livros, mas já estava me interessando um pouco pela poesia, e me recordo que li livros de León Felipe, e também de Rafael Alberti e de César Vallejo. Mas isso como um leitor que vai revisando os livros. Nunca tive a serenidade para ler. Eram dias em que se pensava em muitas coisas, nos teus amigos, nos teus parentes, e no meu caso eu estava pensando que ia fazer da minha vida: sem trabalho, não sabia se poderia voltar ao liceu ou não – o que aconteceria se eu voltasse? Eu não tinha um trabalho, essa casa não era minha casa, e em algum momento eu tinha que sair dali. Havia muitas dúvidas, muito medo, o que se passaria ao voltar para a vida “normal”, sabendo que você era o inimigo, o “inimigo interno” de que falavam os militares.

E quanto aos discos? Certamente você devia ter material dos intérpretes de esquerda, da Nova Canção Chilena (movimento de renovação da música folclórica iniciado nos anos 60, marcado por intérpretes e letras comprometidas com a política de esquerda), da família Parra, de Víctor Jara…

Sim, e também de Charo Cofré. Lembro que tínhamos discos de Charo Cofré, com canções feitas a partir dos poemas de María de la Luz Uribe, com desenhos de Fernando Krahn. Éramos muito admiradores em casa de nomes como Payo Grondona. Meus primos eram do MAPU (Movimiento de Acción Popular Unitaria, partido desmembrado da democracia cristã para integrar a coligação que elegeu Allende), e o MAPU tinha publicado um disco que se chamava “Se cumple un año ¡¡¡y se cumple!!!”. Era uma espécie de antologia. Aí estava também um disco de Ángel Parra, “Cuando amanece el día”, estava o disco de Payo Grondona sobre o assassinato do general René Schneider (general que defendia a não-intervenção militar, vitimado em um atentado ocorrido às vésperas de a eleição de Allende ser ratificada pelo Congresso, em 1970). Havia canções de Homero Caro, de Fernando Ugarte… de cantores que não eram, por assim dizer, da primeiríssima fila. Que não eram Quilapayún, Inti-Illimani ou Víctor Jara, e que por outro lado não eram comunistas como estes. O próprio movimento da Nova Canção Chilena também se diversificava. Existiam grupos que não eram necessariamente do Partido Comunista nem da gravadora das Juventudes Comunistas, a DICAP (Discoteca del Cantor Popular, que difundia os músicos de esquerda, os quais em geral não tinham espaço nas rádios tradicionais). Na nossa casa, bom, estavam os da DICAP, mas também estavam esses outros, menos famosos.

A Nova Canção acabou sendo um movimento que se relacionou diretamente com o contexto social da época. As músicas que eles cantavam tinham muito que ver com a Reforma Universitária vivida no Chile no fim dos anos 60, com as mobilizações populares, as ocupações de terrenos pelos sem-terras cada vez mais frequentes, a própria vitória de Allende em 1970… é possível dizer que esse desenvolvimento no plano artístico se dá em paralelo com a sequência dos acontecimentos?

Eu acredito que no Chile se vai dando uma evolução da democratização. Uma evolução que está relacionada com um movimento político que vem desde o princípio dos anos 30, muito marcada pelo Partido Radical, por governos de coalização de Frente Popular. Há uma série de governos não conservadores, digamos assim, que de alguma maneira vão ampliando os níveis de participação com preocupação social, diria eu, verdadeira. De alguma maneira isso vai criando condições para o surgimento de uma classe média interessante, potente, forte, e de um movimento operário leitor, e por outro lado também aparece um novo ator social, os “pobladores” (pobladores eram como se chamavam os trabalhadores, em geral saídos do campo, que se estabeleciam nos arrabaldes das grandes cidades, muitas vezes em ocupações de terreno irregulares. Organizavam-se em espécies de favelas chamadas de “poblaciones callampas”). Estes saíam da lógica da classe operária e dos camponeses, fazendo aparecer como ator social importante a figura do vizinho, o movimento de “pobladores”, os acampamentos, as ocupações de terreno, a reivindicação pela moradia. A sociedade chilena, portanto, começa a se tornar complexa. Há uma reivindicação pela universidade para todos e os movimentos de Reforma Universitária ocorrem cedo. É um momento também de protagonismo juvenil. O governo de Eduardo Frei Montalva (democrata-cristão, presidente do Chile entre 1964 e 1970) chega a La Moneda com a consigna da “Revolução em Liberdade”. Isto é, a reivindicação revolucionária, ainda que não totalmente de esquerda, já estava presente. A “Revolução em Liberdade” era um contraponto à revolução marxista, que se alegava que não era em liberdade. Frei Montalva chega à Moneda acompanhado por grande parte da juventude, inclusive sua campanha esteve baseada em um ato que se chamou “A Marcha da Pátria Jovem”, um desfile de jovens que chegavam de distintas partes do Chile. Há um protagonismo juvenil muito grande nessa época entre toda essa gente que se incorpora aos democrata-cristãos, trazendo uma postura progressista: partidários da reforma agrária, da organização popular, do movimento “poblador”, etcétera, somando-se às históricas reivindicações da esquerda, de outros partidos – o Socialista, o Comunista, o MIR (Movimento de Izquierda Revolucionaria, que chegou a defender a luta armada). Era um movimento juvenil de esquerda muito grande que fazia seus também os assuntos que ocorriam no mundo. Assim, ocorrem marchas no Chile contra a Guerra do Vietnã, e há uma empatia com os movimentos europeus. Com efeito, a Reforma e as ocupações das universidades no Chile são anteriores ao maio de 1968. No Chile, começam em 1967.

Em termos artísticos, há movimentos simultâneos que têm a ver com influências da indústria cultural, principalmente norte-americana, e ocorrem reações a isso. Estes são dias de rádio, mais que de televisão, e inicialmente se desenvolve um movimento de novos cantores que se chama “La Nueva Ola”. São cantores chilenos que usam nomes estrangeiros. Então um jovem que se chama Ricardo Toro vai adotar o nome artístico de Buddy Richard, por exemplo. Há vários que usam nomes norte-americanos e que começam a cantar canções internacionais – em castelhano, não em inglês. E aparecem revistas relacionadas e esse movimento de novos cantores. Surgem os ídolos juvenis, os fã-clubes, e há muita movimentação dos jovens nesse sentido. Como uma reação a esses grupos de nomes estrangeiros, aparecem conjuntos vinculados ao folclore, mas que não são necessariamente folclóricos. Esse movimento de “Neofolclore” traz canções novas. Não são canções ancestrais recuperadas do folclore, digamos, camponês. O Neofolclore tem um certo teor nacionalista, um pouco chauvinista, exaltando os heróis pátrios, as Forças Armadas também. Há bastante disso em alguns grupos. São grupos que surgem, mais que do movimento popular, vêm da classe média alta. E são formados em Santiago, não são grupos do campo, do interior. Isso em relação ao Neofolclore. Contemporaneamente a eles, ocorre também uma investigação folclórica verdadeira, interessante, como a feita por Violeta Parra ou por Margot Loyola, além de outras pessoas, que de alguma maneira se vinculam à universidade – onde Violeta Parra tem já um prestígio, é reconhecida como investigadora folclórica. Mas Violeta Parra se suicida no momento em que esse movimento começa a se fortalecer. E sua obra é tomada, é reivindicada, sendo interpretada por alguns integrantes do Neofolclore. O Neofolclore, porém, é visto como comercial e começa a ter uma resposta política. Isso significa, no fim, que alguns grupos desse movimento incorporam em seu conteúdo músicas mais sociais, mais politizadas, menos neutras e menos nacionalistas. Talvez mais folclóricas no sentido de utilizar certos instrumentos que até ali não eram usados.

Então estamos em momentos de Reforma Universitária, de campanha presidencial do governo de Frei, de início de reforma agrária. E de uma nova candidatura de Allende para a Presidência, de uma esquerdização da democracia-cristã e de uma massificação também dos temas sociais e da política, de um nível grande de militância partidária. São editados muitos livros, cada partido tem sua revista com sua tintura ideológica. Nesse contexto, a Universidade Católica promove encontros para discutir a “Nueva Canción Chilena”. Esse nome, que acaba batizando o movimento, é dado pelo organizador, o radialista Ricardo García. Nesses encontros coexistem grupos que se sabia que eram de direita e mais tradicionais, como Los Huasos Quincheros, e outros com conteúdo claramente de esquerda, como Víctor Jara, que cantava com o Quilapayún, Patricio Manns, que vinha do folclore, e outros cantores como Rolando Alarcón, que embora ainda estivesse relacionado com o Neofolclore tinha conteúdos de esquerda. Antes da morte de Violeta Parra, aliás, haviam voltado para o Chile seus filhos Ángel e Isabel, que instalam a “Peña dos Parra” em Santiago, e esta Peña se converte no ponto de encontro dos grupos do Neofolclore de esquerda, que vão ser considerados parte da Nueva Canción Chilena. Ou seja, é muito importante a obra que deixa Violeta, e é muito importante a promoção que fazem Ángel e Isabel Parra. Na Peña estarão Los Curacas, Patricio Manns, Rolando Alarcón, Víctor Jara, Payo Grondona, Homero Caro… e terão convidados também de importância. A Peña dos Parra se converte em um lugar quase turístico, um lugar de visita para os estrangeiros que vinham para cá. Eu não diria que era um lugar popular no sentido de que sua clientela fosse gente pobre. Creio que era um lugar de distração da esquerda pequeno-burguesa.

Já passando ao Estádio Nacional, mas antes do golpe. Mais do que um lugar esportivo, ali também aconteciam espetáculos culturais massivos nesse tempo. Você se recorda desses eventos?

Eu nunca fui muito ligado ao futebol. Há um time de que eu gosto, mas sou um torcedor passivo. Mas ia com o meu irmão aos Clássicos Universitários, que eram entre a Universidad Católica e a Universidad de Chile, da qual eu sou partidário. Nesta época os clubes eram realmente das universidades, e as barras eram estudantis, com espetáculos teatrais, bonecos gigantes, carros alegóricos. Era muito bonito. Já não há disso. Seria maravilhoso que pudesse haver, comparando com a situação de violência que há nos estádios hoje em dia. Era um espetáculo familiar, havia grupos de produtores que se encarregavam de organizar isso. E por trás deles estavam as universidades, a Chile e a Católica, que eram as tradicionais. Claro, também ia quando havia jogos internacionais, quando vinha o Santos de Pelé, o Botafogo. Mas a imagem que eu tinha do estádio era principalmente de um lugar de espetáculos, mesmo.

E com o golpe de Estado, o Estádio Nacional se converte em outra coisa. Um campo de prisioneiros no qual você vai parar também. Como se sentiu ao chegar ali?

Eu me sentia muito desamparado, por toda aquela situação que havia contado antes. Eu estava sozinho e além disso estava meio doente. Quando os militares chegaram à minha casa eu estava doente, não estava indo a nenhuma parte, estava tomando remédios. Minha situação era de grande desamparo, porque era muito jovem, porque não tinha familiares próximos neste momento, não sabia onde estavam, não sabia seu destino. Por outro lado, o fato de eu ser de um partido novo, que não tinha a tradição da esquerda, significava que eu conhecia pouca gente. Não me encontrava com amigos, não conhecia ninguém. Estando preso, podia provocar certa desconfiança, ainda, por ter a idade dos que deviam estar fazendo o serviço militar. Mas também senti o apoio de gente mais velha, que talvez de maneira paternalista, acho que me viam como alguém digno de lástima, alguém que lhes dava pena (risos). Além disso, eu andava muito desabrigado, com pouca roupa. Nesses dias choveu, o Estádio Nacional é muito frio, é puro cimento. Havia aí uma situação de precariedade, que quando olho para trás lembro ter sido penoso. Por outro lado, sendo pequeno e magro, tinha alguns privilégios que outros não tinham. Por exemplo, quando estávamos presos nos vestiários, eu conseguia dormir nas estantes onde os esportistas botavam suas bolsas. Estou falando de vestiários em que havia gente que dormia de pé, que estavam tão cheios de gente que não era fácil encontrar um lugar onde dormir, onde descansar. Eram vestiários que estavam fechados a cadeado. Num desses dias inclusive houve um tremor de terra forte e os militares chegaram a abrir as portas, mas ninguém se atrevia a sair de medo de que disparassem. Estavam sempre presentes esse terror, essa incerteza de não saber quando vão te chamar para o interrogatório, o que vai acontecer nesse interrogatório. E tu vias que às vezes voltava gente dos interrogatórios e estavam da pior forma possível. Que voltavam destroçados, inconscientes, trazidos de volta para o vestiário arrastados em cobertores, porque não podiam caminhar com as próprias forças. Era um terror imposto pela visão de como chegavam, como voltavam dos interrogatórios, pessoas com que tu havias estado em algum momento e tinhas visto bem. E também não sabíamos o que acontecia com as pessoas que estiveram contigo no vestiário, que saíram e não voltaram mais. Era provável que tivessem sido transferidos para outro lugar, mas não sabíamos o que havia sido feito delas: se teria morrido, mudada de vestiário, levada para a prisão – o que teria acontecido a essa pessoa? O grande castigo ali, à parte o frio, a fome, era a incerteza, o não saber o que poderia acontecer contigo.

Também houve casos de recrutas que tiveram de vigiar seus pais presos, não?

Há uma anedota que eu conto no livro, que é absolutamente certa, vista por mim. Eu testemunhei o caso de um preso, um operário, que estava no mesmo vestiário que eu. À noite entrava um guarda e lhe levava um pão, algo assim, tentando dissimular ao máximo. E resultou que era filho dele. Isto eu vi. E há outros exemplos, que eu não vi diretamente, mas que estão no documentário de Carmen Luz Parot sobre o Estádio Nacional (Estadio Nacional, 2001). Casos de irmãos que tiveram que visitar seus irmãos, azares desse tipo.

E, em meio a tudo isso, os jardineiros e funcionários habituais do Estádio seguiam sua rotina normal, como se estivessem num mundo à parte…

Estavam em um mundo à parte (risos). Mas resulta que era também época de uma Copa do Mundo, estavam em preparativos para o Mundial da Alemanha, e o Chile estava competindo para participar do torneio. Precisava jogar algumas partidas para se classificar e o estádio seguia sendo preparado como se nada estivesse acontecendo. Nós pensávamos que nos iam transferir se fossem fazer uma partida. Havia um jogo programado com a União Soviética, e isso tomou todo um valor simbólico em meio à Guerra Fria: era o Chile dos militares de direita impostos pelos Estados Unidos contra a União Soviética. Era muito simbólico (em protesto contra o uso do Estádio Nacional como campo de prisioneiros, os soviéticos se recusariam a jogar em Santiago, e o Chile se classificaria pra o Mundial por W.O.). Antes dos jogos o campo era cuidado e passavam os jardineiros, cortando a grama, limpando… quando ficávamos nas arquibancadas, nos entretínhamos olhando o trabalho deles. Não tínhamos nada para ler, nada para nos distrair, então olhávamos esses jardineiros que cortavam a grama e, quando um deles passava por dentro do arco, nós gritávamos “goool”. Celebrávamos o gol, e ele saudava como se fosse um craque. Havia muito humor, também. Tudo foi muito dramático, mas nós temos uma certa capacidade de rir das desgraças, então havia esses momentos engraçados, divertidos.

Não parecia brutal essa indiferença dos funcionários comuns?

É que houve também situações nas quais as pessoas que trabalhavam no estádio, alguns jardineiros e outras pessoas, ajudaram a levar mensagens para a família, informar que o detido estava bem, que havia sido visto. Às vezes conseguíamos construir momentos de certa comunicação. Claro, era estranho. E outras vezes chegavam ao estádio as comissões da FIFA. Nessas ocasiões nós éramos mantidos nos vestiários, não nos deixavam subir às arquibancadas. É provável que tenham passado muitas coisas que nós nunca chegamos a ver.

O último poema de Víctor Jara, denunciando as atrocidades cometidas no Estádio Chile (ginásio próximo à Estação Central de Santiago, também usado como campo de prisioneiros, onde o cantor foi executado), foi levado ao Estádio Nacional e ali foi copiado para que pudesse sair da prisão de alguma forma. Como foi difundido esse poema ali dentro? Você chegou a lê-lo?

Bom, Boris Navia, que foi quem trouxe o poema do Estádio Chile para o Nacional, tinha uma caderneta na qual Víctor Jara escreveu esse poema. E Boris Navia teve a precaução de copiá-lo, ele ou outra pessoa, de copiar várias versões desse poema. Não houve uma única versão, isto é, não houve uma única transcrição. Ele guardou o original em seu sapato, mas esse original foi encontrado quando o interrogaram. Algo aconteceu que encontraram o manuscrito de Víctor Jara, que acabou sendo perdido. O que se salvou foi uma ou algumas dessas transcrições feitas a partir do original. E a transferência para o lado de fora pode ter sido feita por um jardineiro, um militar, algum familiar, algum preso que conseguiu sair em liberdade sem ter o papel descoberto. Eu só pude ler o poema de Víctor Jara no exílio. Agora, no Estádio Nacional, bom, não havia condições para escrever, para ler, mas se fizeram alguns poemas, e quem salvava os poemas eram aqueles que tinham boa memória. Que decoravam e depois escreviam. Era um risco ter um poema escrito.

Outro cantor fortemente identificado com a esquerda que esteve preso foi Ángel Parra. O assassinato de Víctor Jara deve ter provocado temor de que com ele acontecesse o mesmo…

Nós lembrávamos muito de Víctor Jara quando víamos Ángel, porque eram muito amigos. E nos chamava a atenção de que Ángel, em certo sentido, se salvou porque Ángel Parra não é seu nome legal. O nome legal dele é Ángel Cereceda Parra, já que aqui o sobrenome da mãe é o segundo. E Ángel usava o sobrenome da mãe, Violeta Parra. Então, quando passavam as listas, os trâmites burocráticos e administrativos dos militares, aparecia um Ángel Cereceda. Mas sempre que víamos Ángel lembrávamos de Víctor Jara, porque poderia ter acontecido o mesmo com ele.

Ángel Parra em 1973

Sobre Ángel Parra, você escreve que no momento da chegada a Chacabuco (campo de concentração no Norte do Chile, para onde foi levada a maioria dos detidos no Estádio Nacional quando este deixou de ser utilizado, em novembro de 1973), um oficial avisa que ele não pode mais cantar suas músicas, que as únicas canções que entram ali são a dos Huasos Quincheros, o grupo identificado com a direita. Isso aconteceu?

Sim, exigiram que não cantasse mais seu repertório. E Ángel fez a promessa de não cantar, de não cantar nada. Nada. Mas organizou um grupo musical na prisão, que se chamava “Los de Chacabuco”. Ele foi o diretor do conjunto, mas não cantava, nem tocava violão. Isso sim, seguiu fazendo composições, fez composições e cantou para todos quando foi libertado e os demais presos organizaram uma despedida. Ali ele cantou suas velhas músicas, as que havia gravado. Cantou a “Canción de Amor”, que estava dedicada à sua esposa, a “Canción para Angelito”, dedicada a seu filho, e a “Canción para Javiera”, sua filha. Fez três canções para sua família, sua esposa e seus dois filhos. E também tocou, na despedida, um tema instrumental que fez em Chacabuco, chamado “Alma de Chacabuco”.

Voltando um pouco para a transferência do Estádio Nacional para Chacabuco. Como foi esse traslado?

A primeira parte é um traslado em ônibus, desde o Estádio Nacional até Valparaíso. Uma caravana de ônibus, e era muito impressionante olhar pela janela e ver as pessoas se despedindo com lenços. Foi uma operação enorme, muito vigiada, com helicópteros inclusive. Era como uma caravana de indesejáveis. Nos levaram ao porto de Valparaíso, e tivemos que entrar nos porões de uns barcos, porões muito fundos e com escadas muito difíceis de descer. Havia gente que estava sem condições, descapacitados, com problemas para descer. Era um sacrifício ir até esses porões, que eram absolutamente escuros. Viajamos ali.

Nesse período em que você está detido em Chacabuco, começa a escrever poemas. No fim, isso renderá até um livro sobre o campo de prisioneiros. Existe um marco inicial para o Jorge Montealegre poeta?

Eu tenho antecedentes familiares que me aproximam da poesia. Meu pai escrevia poesias. Nunca publicou, mas escrevia e eu via ele escrevendo. Às vezes recitava com seus amigos. Existia no Chile o costume de recitar, de declamar poemas. Tenho um irmão mais velho que muito jovem já havia publicado um par de livros, de uma poesia religiosa. Portanto, para mim, a possibilidade da poesia, embora nunca tivesse sido considerada, não era algo de outro mundo. E no próprio barco em que nos levaram a Chacabuco apareceu um operário recitando uns poemas feitos por ele no Estádio Nacional. Ele não os tinha escritos. Tinha na memória. Eram poemas dedicados à sua esposa que estava de aniversário naqueles dias. Isso me impressionou muito, impressionou a todos, creio eu. Em Chacabuco eu me aproximei desse poeta, que era um funcionário de uma fábrica têxtil, e conversamos. Eu lhe mostrei um poema que eu sabia de memória, porque era muito breve. E este poeta, Rafael Salas, deve ter entendido que o poema era meu e me estimulou a escrever. Eu sentia que não poderia escrever: não sabia nada de métrica, das regras de poesia, das regras literárias. Mas nessa mesma época, me inteirei que meu irmão estava por se casar. E me dei conta de que não tinha nada para lhe dar de presente, já que não poderia ir à cerimônia. Comecei então a fazer uma carta muito carinhosa e cheia de figuras, de forma muito escolar, quase como nos jardins de infância. Em algum momento pensei que essa carta que eu estava fazendo ficaria melhor se eu cortasse o texto em versos. Isso foi o mais parecido a um primeiro poema. Logo, comecei a escrever coisas que eu não chamava de poemas, chamava de “hormonemas”, coisas hormonais, porque eu reconhecia que não sabia nada de poesia. Comecei a escrever sobre as coisas que via em Chacabuco. Escrevi sobre o tarro em que tomávamos chá, que se chamava “choquero”, sobre as casas de Chacabuco, as portas de Chacabuco, etc. Com certa pretensão de totalidade, de que tudo eram metáforas do mundo, pouco menos que isso. Quando você começa a escrever, acredita que pode dizer tudo em um só poema.

Prisioneiros jogam futebol em Chacabuco

Em meio a isso, na organização dos presos de Chacabuco, havia uma comissão de cultura que promoveu um festival, o Festival da Canção e da Poesia. E então convidou os presos a participar de um concurso de poesias, com um júri formal em que havia escritores de verdade, escritores profissionais que estavam presos. Devíamos participar com pseudônimo. Mandei três “poemas”, entre aspas, três das primeiras coisas que havia escrito. Um sobre as portas, um sobre as casas e um sobre o “choquero”. Bom, e o concurso consistia não em uma competição em que se ordenassem os poemas para saber um ganhador: participaram cerca de cinquenta poemas e os jurados tinham que selecionar dez. Entre os dez, havia dois poemas meus. Aí foi a consagração (risos). Tenho o diploma até hoje. É algo precioso, foi muito lindo para mim. E bom, isso agradou a eles. Não estou emitindo juízo literário, mas havia sim como um respeito e uma gratidão pela poesia. Uma gratidão porque a poesia nesse caso tinha uma posição de solidariedade. Havia uma posição política, havia um atrevimento. E havia também uma ingenuidade. Recordo que isso foi lido, gostaram, e publicaram no jornal mural (organizado pelos jornalistas presos em Chacabuco). Uma vez eu estava lavando uma caneca, e se aproxima um operário e me diz: “compañerito, siga escrevendo, e conte ao mundo o que fizeram conosco”. Sabes, isso para mim foi como um mandato. Mais tarde refleti sobre isso, e creio que daí em diante ficou uma espécie de missão. Por um lado pessoal, de seguir escrevendo, e segundo que se seguia escrevendo era para contar o que havia acontecido, e que outros não poderiam contar porque não escreviam.

Esse livro sobre Chacabuco, que foi publicado no exílio em Roma, não foi republicado depois?

Esse livro foi publicado muito precariamente, a mimeógrafo. É provável que não tenham sido feitas mais de cem cópias. E se fez como uma forma de respaldar um testemunho que eu dei a uma comissão investigadora dos crimes da Junta Militar, que se realizou no México. Eu fui a essa comissão convidado como testemunha, e claro, meu depoimento tinha que ser breve, uma síntese do que havia acontecido. No fundo meu testemunho foi uma apresentação para dizer que entregava esse livro como um documento do que havíamos vivido em Chacabuco. Essa é a origem desse livro. E ele tem algo positivo que é ter sido escrito imediatamente depois do ocorrido, e portanto com a lembrança muito fresca, com poucas traições da memória. Não há a mitologia que se forma quando passam muitos anos, nem transferências e outros fenômenos que ocorrem com a memória. Muitas vezes, você crê ter vivido algo que não viveu. Esse livro tinha a vantagem de ser algo muito recente. Foi uma base importante, fundamental, para que eu escrevesse “Frazadas del Estadio Nacional”, porque há partes que têm a ver com esse primeiro livro. Quando faço “Frazadas…”, muitos anos depois, posso olhar a mim mesmo desde a idade adulta, e adoto esse garoto que tinha 19 anos. E me preocupo de alguma maneira em contar o que ele queria contar. De contar de uma melhor maneira, talvez, em outro contexto, mas respeitando suas palavras daquela época. Boa parte desse livro está em “Frazadas…”, ao menos a parte que tem a ver com o Estádio Nacional. A parte de Chacabuco estou incorporando agora em outro livro em que estou trabalhando.

Nunca houve a intenção de reeditar o original de Chacabuco?

É curioso isso, porque eu nunca publiquei novamente esses poemas de Chacabuco. Estão publicados em livros de testemunhos, há gente que cita eles, mas eu nunca publiquei em livros de poemas meus. Sinto que em certo sentido eles não são meus. São como documentos, são parte do que vivemos, que qualquer um poderia publicá-los. Esse livro em que estou trabalhando agora é uma forma de reeditar isso, incorporando as ideias do original. Os livros testemunhais têm um momento. Escrevi “Chacabuco” em 1975, imediatamente depois de ter chegado à Europa. É um livro com uma função de denúncia, que está tingido pelo presente da época e pelo meu entorno, que está relacionado à solidariedade internacional, também a uma certa reivindicação partidária. Há uma linguagem muito da época, e portanto uma série de coisas que não corresponderiam a um testemunho publicado hoje em dia. Hoje, com o tempo que passou, é o momento da reflexão, de chegar a conclusões, de conectar o passado com outras situações. Mais do que fazer a denúncia, porque boa parte do que foi denunciado em seu momento, que tinha que ser denunciado, já foi confirmado. As comissões da verdade, a Comissão Rettig (1991), a Comissão Valech (2004), as determinações judiciais, já confirmaram que essas denúncias eram certas. Ainda que continuemos perguntando por desaparecidos. Mas o grosso das denúncias das violações aos direitos humanos foram confirmadas, e não há muito sentido em fazer a denúncia hoje em dia. Esse livrinho, em 1975, foi uma absoluta novidade, porque não se sabia o que havia acontecido. Tampouco se sabia como os presos políticos vivíamos um processo de resiliência e resistência, porque se contava da tortura, se contava tudo aquilo, mas pouco se sabia que escrevíamos poesia, que alguns desenhavam, que havia humor, que nós sobrevivíamos também construindo um novo cotidiano em que enfrentávamos a adversidade de uma maneira positiva e comunitária. Disso se sabia muito pouco porque, bom, a prioridade era denunciar a brutalidade da Junta Militar e os delitos. Para mim sempre interessou reivindicar essa outra parte da prisão política, a parte “positiva”, digamos assim, da prisão política. Porque se cresce na prisão política, se aprende na prisão política. Há uma fraternidade que vale a pena contar, e é parte da prisão política. E se eu comecei a escrever e sigo escrevendo hoje em dia, é porque a prisão política também significou um crescimento. Uma quebra biográfica, mas também um crescimento.

Estádio Nacional do Chile (1973)

Lendo os testemunhos, parece que em Chacabuco havia condições para viver de uma forma não tão oprimida quanto havia sido nos primeiros meses, no Estádio Nacional e em outros lugares.

Sim. Houve lugares que originalmente não foram construídos para ser prisão. No caso de Chacabuco, era um vilarejo abandonado. Psicologicamente já é diferente dizer que tu estás na cela número tanto, e dizer que tu estás na casa tanto, que tem uma rua, que tem um domicílio, me entendes? E que tu jogas de alguma maneira socialmente, como se estivesses em liberdade. Então, existe um correio… tudo entre aspas: tens um “correio” entre aspas, tens um “hospital”, tens “biblioteca”, tudo muito precário, muito pequeno. Há uma espécie de jogo social, de viver como se estivesses em liberdade. E tens tuas personalidades, como se tivesses um prefeito. Então tens teu presidente no “conselho de anciãos”, tens tua organização na casa, tua organização na rua… Também se deu uma espécie de democracia, uma organização surgida desde a base. Se deu uma situação desse tipo, que também se deu em outras partes. Mas em Chacabuco foi de uma maneira especial. Também aconteceu que, como transferiam as pessoas de um lugar para outro, essa gente levava junto a experiência de organização dos lugares em que havia estado antes. Às vezes isso se replicava, e valia a pena que fosse replicado em outros lugares. A experiência de Chacabuco foi levada para outros lugares. Em outros campos, como Puchuncaví e Melinka há anedotas desse tipo, inclusive na Ilha Dawson também. Conhecemos pouco, mas não é muito diferente a maneira com que os presos políticos enfrentaram sua situação nos diferentes campos de concentração.

Depois de Chacabuco, você passou um último dia no Estádio Chile antes de recuperar a liberdade. Poderia descrever essa véspera da saída?

Nós ficamos em uma espécie de corredor, dormimos ali, e o mais impactante para mim foi ao sair, porque te tomam fotografias de frente e de perfil, te fazem assinar um documento em que garantes que não te torturaram, que te trataram bem, e no lado de fora havia muita gente que se aproximava e perguntava pelos seus parentes. Esse último dia de prisão foi muito interessante para mim, porque eu fiz algo absolutamente ególatra. Estivemos uma noite só no Estádio Chile, e formamos um grupo como uma roda de amigos, conversando, e eu li poemas escritos em Chacabuco. Nunca na vida eu havia lido poemas em voz alta. E senti, por isso digo que é ególatra, senti que devia lê-los nessa situação como para provar, para provar a mim mesmo, que sim, aqueles poemas tinham sido escritos na prisão. Uma forma de ter testemunhas do que se havia feito ali. É estranho, mas eu acredito que esse mecanismo esteve na minha cabeça. Era um discurso que me interessava muito fazer. Não me lembro quem estava nessa roda, mas posso dizer com toda claridade que esses poemas foram escritos na prisão e que inclusive eu os li na prisão, eu os li no Estádio Chile. Como que dizendo, mais além da importância de ter sido feito por mim, isso foi feito aqui e foi comunicado aqui. Não foram coisas secretas. De alguma maneira há algo de bem público na poesia que se escreve na prisão política, e isso supera a noção de autoria.

Em liberdade, quanto tempo dura a permanência no Chile antes do exílio? Nessa altura você já não devia ter nem casa onde ficar…

É um período muito estranho, porque em todo esse tempo tinha sido como se eu estivesse vivendo em Chacabuco, como se ali fosse minha casa. Quando saí do Estádio Chile, eu não sabia aonde ir. Cheguei na Alameda (avenida de 7 km que cruza Santiago no sentido leste-oeste, passando em frente ao Estádio Chile e nos fundos de La Moneda, entre outros lugares de destaque) e não sabia aonde ir, porque já não tinha casa, não tinha estudo, não tinha trabalho, não tinha dinheiro. Tinha uns parentes de direita que não queriam me ver. Foi difícil. Nessa noite cheguei na casa de um parente que me disse que eu só poderia ficar ali naquela noite. As pessoas tinham medo, também. Curiosamente, nesse dia me encontrei no ônibus com uma irmã minha, mas ela não podia fazer muito em termos de me acolher em uma casa, pois já vivia de favor com uma tia. Entre fevereiro e maio de 1974 eu vivi em várias casas distintas. Por pouco tempo, e às vezes estava em uma casa e tinha que sair, porque iam esconder outra pessoa. Estive um tempo também em uma casa na praia, de um amigo. Nesse tempo, nunca tive minha própria casa. E era inquietante e perigoso para quem me recebia, porque eu era alguém novo no bairro, causava suspeitas nos vizinhos. Eu era um peso e um risco, e não era politicamente importante. Também pensavam que alguém solto poderia ser seguido pela polícia para descobrir esconderijos. A certa altura, fiz contato com o partido político, com a Izquierda Cristiana, que tinha relações com a Igreja, e me dizem que há um movimento de solidariedade internacional com o Chile, e que precisam de alguém que represente a juventude do partido em Roma. Eu não tinha onde ficar, então me parecia uma chance tremenda ir para Roma, já que poderia seguir fazendo política, trabalhar contra a ditadura. Em maio eu fui, tive que pedir uma permissão especial para um juiz, tive que mentir para um juiz, porque eu ainda era menor de idade – nessa época a maioridade era aos 21 anos. Tive ajuda de uns padres e o juiz me deu a autorização. No caminho, passei um mês em Buenos Aires, uma aventura, até que chegassem as passagens para ir a Roma, onde fiquei três anos. Na Itália estudei cinema, que era o que eu desejava. Depois fui para a França, onde fiquei um ano e meio, e em 1979 já estava de volta ao Chile. Eu nunca me asilei, nunca me refugiei. Quase sempre estive no limiar da legalidade, como um turista que tinha que renovar seu visto.

Há uma frase em “Frazadas…” que creio que seria a maneira de fechar essa conversa. Nela, você diz que “o exílio, às vezes, se sente ao voltar”. De que maneira se fez sentir esse tempo fora do Chile quando você regressou?

Bom, tu incorporas. Tu nunca sais da prisão. Sobretudo quando de alguma maneira acabaste assumindo um certo dever de memória. Eu sinto que nunca saí muito de Chacabuco. E por isso aceito essa conversa e faço sem muitos problemas, porque estou sempre retomando aquilo. Acontece o mesmo com o exílio. São experiências que tu incorporas, e de certa maneira segues vivendo, porque vais comparando teu cotidiano sempre com esses momentos. Por exemplo, há pouco falei por telefone com minha filha mais velha, e minha filha nasceu na França, no exílio. Ela nasceu na França e vive no Uruguai. Em todo caso é chilena, mas viveu muito pouco tempo no Chile. Segue sendo de nenhuma parte. E acabo de falar também com um amigo que fiz em Chacabuco e com quem mantenho contato. E nossos temas seguem sendo de certa maneira os temas de Chacabuco. Eu não sei se tudo isso seria doentio, mas tu nunca sais disso. São situações redondas. Neruda dizia que o exílio é redondo.


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