Noticias|Últimas Notícias>Política
|
9 de abril de 2012
|
17:30

CPI não apaga décadas de polêmica sobre transporte público em Rio Grande

Por
Sul 21
[email protected]

Daniela de Bem
Especial para Sul21

A cidade de Rio Grande, localizada no extremo sul do Rio Grande do Sul, cresce com a chegada de investimento federal devido ao polo naval instalado na região. Com quase duzentos mil habitantes e o porto mais importante do estado, a construção de plataformas de petróleo e estaleiros atrai indústrias, gera pesquisas e aumenta a população do município. Porém, na contramão do desenvolvimento, a comunidade rio-grandina é afetada, diariamente, por problemas em um dos serviços mais básicos: o transporte coletivo, envolto em uma série de polêmicas há décadas.

Leia mais:
– Termina CPI que não pôde investigar transporte público em Rio Grande

A Comissão Parlamentar que investigou possíveis irregularidades no sistema de transporte público em Rio Grande terminou imersa em polêmicas. Instaurada em quinze de fevereiro, a partir da iniciativa do vereador Augusto César de Oliveira (PDT) e apoiada pela base de oposição ao governo municipal do prefeito Fábio Branco (PMDB), teve duração de 30 dias.

Foto: Daniela de Bem
CPI que investigou irregularidades no transporte coletivo em Rio Grande foi cercada de dúvidas e polêmicas | Foto: Daniela de Bem

A relação entre alguns representantes do legislativo e o executivo gerou questionamentos a respeito da lisura da comissão. O relator, vereador Charles Saraiva (PMDB), por exemplo, era secretário de governo municipal até final de setembro do ano passado. O irmão do presidente da CPI, Taillor Bastos Moralles, foi indicado pela prefeitura para assumir o cargo de superintendente do Departamento Autárquico de Transportes Coletivos (DATC). Essa indicação é, inclusive, alvo de processo na justiça em que o Ministério Público acusa a administração de nepotismo. Procurados, o relator e o presidente não quiseram se manifestar. Durante o curso dos trabalhos, em plenário, a presidência negou qualquer tipo de obstrução às investigações. Disse, ainda, que a diferença entre situação e oposição não existe em uma CPI, garantiu isenção e obediência à lei.

A proposição, feita no final de janeiro, foi influenciada pelas contestações do Ministério Público de Contas ao processo licitatório para concessão do serviço de transporte vencido pelo consórcio Mais Rio Grande, das empresas Viação Noiva do Mar e União Cotista. Além de Augusto César, assinaram o requerimento os vereadores da oposição: Luiz Francisco Spotorno (PT), Júlio Martins (PCdoB), Cláudio Costa (PT) e Fernando Ribeiro (PCdoB).

A composição da comissão é proporcional à disposição das bancadas na Câmara Municipal de Vereadores. Devido a isso, foi formada, majoritariamente, pela situação, representada pelos vereadores Paulo Renato Gomes – o Renatinho (PPS) –, Renato Albuquerque (PMDB), José Antônio da Silva – o Repolhinho (PSDB) –, Charles Saraiva (PMDB) e Giovani Moralles (PTB). Os dois últimos, relator e presidente. A oposição foi representada por Spotorno, Augusto César e Júlio Martins.

Os fatos determinantes que regeram o andamento das investigações foram cálculo tarifário, lotação e descumprimento de horários. Mesmo após a representação feita pelo Ministério Público de Contas elencando pontos de possível restrição do caráter competitivo da licitação e a posterior sustação do contrato pelo TCE, o assunto licitação foi um tabu. Em vários momentos, a oposição e até mesmo depoentes foram impedidos pela presidência de abordar a questão.

O presidente Giovani Moralles afirmou, durante a CPI, que caso não houvesse foco, o trabalho nunca teria fim. Apesar da justificativa, no requerimento da comissão é possível ler que o pedido feito tinha por objetivo “(…) esclarecer a todos o previsto no contrato de concessão do transporte coletivo firmado entre a Prefeitura Municipal do Rio Grande e as empresas detentoras da concessão, bem como os serviços prestados à população”.

Reprodução
Imagem anônima mostra máquina da SMOV de Rio Grande durante obra em suposto terreno da Noiva do Mar | Foto: Reprodução

O vereador Spotorno apresentou na CPI uma foto, recebida de fonte anônima. A imagem, de 2004, mostra máquinas da Secretaria Municipal de Obras e Viação (SMOV) realizando obra dentro de um terreno que, supostamente, seria da Noiva do Mar. O prefeito, ao ser perguntado sobre o assunto, apenas disse que não tinha visto a fotografia e não tinha conhecimento do assunto.

Outro fato polêmico foi a participação do ex-secretário da Secretaria Municipal de Segurança, dos Transportes e do Trânsito (SMSTT), Enoc Guimarães, como membro da comissão. Ele esteve por sete anos à frente da pasta, foi responsável pelo processo de licitação e um dos nomes ouvidos pela CPI. Devido a problemas de saúde, o vereador Repolhinho (PSDB) foi substituído pelo ex-secretário, seu suplente na câmara. Enoc passou da condição de depoente e de procurador do município para a condição de investigador.

Em 16 de março, Charles Saraiva apresentou o relatório final da CPI para apreciação dos demais membros. As principais conclusões feitas pela relatoria foram as de que as contestações no cálculo tarifário devem continuar sendo investigadas pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE), pois é impossível, para a comissão, afirmar que exista qualquer tipo de ilicitude. Segundo Charles Saraiva, o município apresenta superlotações pontuais nos coletivos somente em horários de pico e há carros reservas para os momentos de maior procura. Quanto aos horários de ônibus, foi registrado que há funcionários terceirizados para fiscalizar o seu cumprimento e que os problemas existem, mas são específicos. Saraiva disse, ainda, que há notório e inegável esforço do poder público municipal em resolver as falhas do sistema de transporte.

Os vereadores da oposição fizeram questão de justificar o voto, todos contrários ao relatório. Denunciaram a postura dos representantes da situação, alegando que limitaram os assuntos da comissão, rejeitaram a livre manifestação dos depoentes e negaram requerimentos para ouvir representantes dos usuários do transporte coletivo. Os protestos do público no plenário, dizendo que o resultado havia terminado em pizza, denunciaram repúdio ao resultado.

Depoente é pego em contradição, mas é dispensado antes de ser inquirido

Um dos depoentes convocados para a CPI foi o servidor público do Departamento Autárquico de Transportes Coletivos, cedido à SMSTT, José Carlos Stanfort. Na ocasião, ao declarar que realizava serviços burocráticos que não tinham ligação com cálculo tarifário, descumprimento de horários ou lotação, o funcionário foi dispensado pela presidência antes de ser inquirido. O fato gerou acusações de censura e de obstrução dos trabalhos. Houve tentativas de reconvocação do depoente, todas negadas.

O vereador Augusto César apresentou um documento, datado de novembro de 2010, em que Stanfort assinava como mecânico vistoriador da prefeitura, um trabalho técnico que tem relação com os temas investigados. Outras documentações também foram anexadas ao relatório da CPI, comprovando que há pelos cinco anos o funcionário assinava os laudos de vistoria de ônibus.

O ex-secretário Enoc Guimarães conta que quando entrou na secretaria, em 2005, a inspeção ocorria no DATC. Dois anos depois, o serviço passou a ser controlado, diretamente, pela SMSTT. Um engenheiro mecânico foi contratado e as vistorias passaram a ser realizadas nas sedes das próprias operadoras. Era junto a esse engenheiro que trabalhava o fiscal administrativo Stanfort. Sobre os rumores de que o engenheiro e o fiscal assinavam o laudo sem fazer a vistoria, Guimarães disse que não havia como ter esse controle. “Não era uma questão minha, do secretário. A vistoria é feita na rua, tem a viatura para levar o Stanfort e o engenheiro, chega o laudo da vistoria assinada pelos dois. Pode não ter ido nenhum dos dois, pode ter ido os dois”.

Reprodução
Servidor público alegou realizar apenas "serviços burocráticos", mas assinou vistorias como mecânico da prefeitura de Rio Grande. Clique na imagem para ampliar | Foto: Reprodução

Ele salienta que o fiscal assinar como mecânico é outra discussão, que pode evidenciar um problema administrativo da prefeitura, mas que isso não influencia o sistema de transporte. “Como fiscal, olhava junto com o engenheiro e assinava a vistoria. (…) Porque se o Stanfort é fiscal e está trabalhando como mecânico, o que isso vai influenciar no sistema de transporte coletivo do município? (…) Quando era assim, tinha engenheiro mecânico”. As vistorias não acontecem mais dessa maneira, pois o serviço foi terceirizado. Para ele, isso comprova que a prefeitura já havia percebido fragilidade e vinha buscando outro caminho para resolver o problema.

A dispensa do funcionário na hora de depor foi um dos motivos para que o proponente da comissão elaborasse um relatório paralelo ao oficial e enviasse ao MP. O documento gerou abertura de inquérito para investigar possível andamento irregular da CPI.

Críticas e denúncias envolvendo transporte em Rio Grande acontecem há mais de uma década

As críticas ao transporte coletivo em Rio Grande são numerosas e frequentes. Segundo muitos usuários, os ônibus estão sempre atrasados e lotados. Para regiões mais periféricas da cidade, a oferta de carros é considerada menor do que a demanda. O preço das passagens (R$ 2,60) é considerado pelos críticos como muito alto e incompatível com a qualidade do serviço. Porém, ainda que a maior parte das pessoas ouvidas pela reportagem considere o serviço prestado pelas concessionárias muito ruim, as denúncias que motivaram a CPI são bem mais antigas.

Em conversa com ex-universitários de Engenharia de Computação da Furg, eles contam que as manifestações contra a Viação Noiva do Mar eram frequentes no início da década. Segundo o ex- presidente do Diretório Acadêmico do curso, Luiz Laurino, os ônibus sempre estavam cheios e os horários eram escassos. O vereador Júlio Martins (PCdoB) acompanha as questões referentes ao transporte desde a década de 1980, quando participava do movimento estudantil. Para ele, sucessivos governos municipais foram relapsos na fiscalização do sistema. “Eu lido com essa questão de transporte coletivo, lotação de ônibus, tarifa, horário, desde 1987. Desde antes da constituição nova. Já naquela época eu lidava com isso, já acompanhava e eram as mesmas denúncias.”

Conforme Rafael Manske dos Anjos e Danyelle Gautério, representantes do atual Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Furg, a luta por mais horários e contra a superlotação é uma causa histórica dos alunos. Foi o diretório quem denunciou a Noiva do Mar ao Ministério Público pela superlotação dos veículos que faziam a linha até a universidade. O promotor Zachia Alan explica que, após a análise de um fiscal – estendida a outras linhas -, o MP entrou com uma ação denunciando a empresa em outubro passado. O órgão afirmou que, além de superlotar os coletivos, a Noiva do Mar adulterava a capacidade máxima. Os adesivos que informam a quantidade de passageiros em pé e sentados continham números diferentes daqueles fornecidos pelos fabricantes das carrocerias.

No texto da ação, o MP exige que a Noiva do Mar corrija a indicação de lotação, de acordo com a determinação do fabricante, em prazo não superior a trinta dias, sob pena de multa diária de mil reais. Pede que a concessionária seja proibida de trafegar com sobrecarga de passageiros e seja multada toda vez que a situação for verificada, também no valor de R$ 10 mil. Exige, ainda, indenização aos passageiros lesados pela superlotação. A empresa recorreu, o processo foi julgado procedente nas primeiras instâncias e espera a decisão final da justiça.

Foto: Daniela de Bem
Resultado final da CPI provocou protestos entre os que assistiam sessão em Rio Grande | Foto: Daniela de Bem

A empresa preferiu não se manifestar. Em resposta, a secretária da SMSTT informou que a capacidade máxima dos veículos está em conformidade com Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), que determina seis passageiros por metro quadrado livre. Rubia Mara afirmou que o MP sugere que deveriam ser trinta passageiros em pé, o que seria difícil de determinar, pois os ônibus são diferentes. Porém, no texto da ação, o órgão não diz que deveriam ser o mesmo número de passageiros em pé para todos os coletivos.

Enoc Guimarães diz que as encarroçadoras não informam o número de passageiros em pé, pois a carroceria sofre alterações nas garagens das empresas. É preciso pegar o espaço do corredor e diminuir pelo espaço dos degraus, do cobrador, dos equipamentos, do motorista, do motor. Depois, calcula-se quantos metros quadrados se tem e se multiplica por seis. A prefeitura, por falta de infra-estrutura, privatizou o serviço. Duas empresas foram contratadas para fazer a vistoria e um engenheiro mecânico será responsável por calcular o espaço para passageiros em pé. O que o ex-secretário faz questão de reforçar é que a norma de seis passageiros por metro quadrado por si só é uma norma de superlotação. Na referida ação do MP, o órgão pede que a Noiva do Mar comprove que está de acordo com a ABNT. Isso porque as fabricantes dos ônibus, que passaram a capacidade máxima de passageiros ao órgão, dizem balizar a sua informação pela mesma regra.

Quanto à fiscalização, a secretaria Rubia Mara explica que a bilhetagem eletrônica – implantada em toda a frota – possibilita saber se o ônibus está cumprindo o horário e quantos passageiros foram transportados. Outra tecnologia é o GPS, uma exigência do último edital licitatório, que monitora o trajeto do ônibus. Isso garante, por exemplo, que se saiba quantos quilômetros cada veículo percorreu, dados que influenciam no preço da tarifa. O vereador Spotorno (PT) diz que não adianta existirem meios de aferição eficazes e modernos se não houver uma presença marcante do poder executivo para cobrar responsabilidades das concessionárias. Tanto ele quanto Júlio Martins (PCdoB) acreditam que o erro foi a prefeitura ter dado ao consórcio Mais Rio Grande o controle dos dados que são gerados através da bilhetagem eletrônica.

Os equipamentos que emitem extrato dos relatórios da bilhetagem ainda não estão disponíveis na secretaria. “Nós temos projeto, estava previsto no contrato de concessão sustado pelo Tribunal de Contas. Nós continuamos cobrando, mas, na realidade, com a sustação do contrato, algumas datas, alguns períodos que seriam de adaptação e implantação dos vários detalhes tecnológicos que nos permitiriam e nos permitem ter acesso online de todo sistema, esses prazos não estão sendo cumpridos”, diz Rubia Mara. A SMSTT assume, ainda, que há número restrito de fiscais, mas estão sendo treinados novos agentes para cuidarem, especificamente, do transporte.

Suspeita de irregularidade no processo licitatório é responsável por sustação do contrato

O edital de licitação para concessão de serviço de transporte público, lançado em junho do ano passado, foi logo contestado pelo Ministério Público de Rio Grande. O promotor Zachia Allan diz que, a partir de exame detalhado do documento, constatou-se uma série de pontos que restringiam a competição. A documentação foi enviada para o Ministério Público de Contas (MPC), órgão que atua junto ao Tribunal de Contas do Estado (TCE). É importante salientar que o último não possui caráter judicial, sendo um órgão de controle das atividades da administração pública.

No final de julho, o MPC entrou com uma representação no TCE exigindo a anulação do processo licitatório, até que a corte analisasse os apontamentos de possíveis irregularidades. Em 17 de agosto, o tribunal suspendeu o processo cautelarmente. Recorrendo da decisão, a prefeitura conseguiu uma liminar, junto ao Tribunal de Justiça (TJ), para dar prosseguimento à concorrência. Nela, a administração questionava os erros apontados e a competência do TCE para tomar a decisão. Além disso, afirmava que o edital foi elaborado exatamente como o de 2006 – que licitou as linhas de ônibus do bairro Parque Marinha (25% do sistema) – considerado regular.

Reprodução
Requerimento da CPI dos Transportes em Rio Grande. Clique na imagem para ampliar | Foto: Reprodução

A medida liminar foi derrubada pelo pleno do TJ e a decisão do TCE voltou a valer. No entanto, não era mais possível sustar o processo licitatório, pois ele havia sido findado com a abertura dos envelopes e a vitória do consórcio Mais Rio Grande – formado pela empresa líder Noiva do Mar e pela Cotista – as duas que, anteriormente, prestavam o serviço alvo de críticas. A decisão sobre não fechar o contrato também foi tardia e, no fim das contas, o TCE emitiu uma medida cautelar pedindo a sustação do contrato até que fosse realizada a análise da matéria e o julgamento final pelo pleno do órgão.

Na representação feita pelo MPC são citadas possíveis restrições de competição. Uma delas é exigência de que a concessionária tenha um patrimônio líquido igual ou superior a R$ 6 milhões sem que haja, no edital, qualquer estudo técnico comprovando que esse valor é o necessário para satisfazer as exigências do serviço. A necessidade do estudo técnico é prevista na Lei de Licitações (Lei 8666/1993), artigo 31, inciso cinco.

Outro aspecto era a necessidade de compra, pela empresa vencedora, de toda a frota de ônibus em circulação na cidade sem a estipulação do valor a ser pago. Conforme Zachia Alan, uma empresa que estivesse interessada em participar do processo, iria se sentir apreensiva ao assumir um compromisso financeiro às cegas. Ademais, entre a frota da Noiva do Mar e da Cotista – que seriam adquiridas caso outros vencessem a licitação – existiam oito ônibus de 1996, idade que os impediria de circular, devido lei municipal citada no mesmo edital.

Perguntada sobre o porquê de o edital não especificar o valor da frota dos coletivos, a atual secretária da SMSTT afirmou que não participou de sua elaboração. Ela garante que houve a compra por outras empresas e não existiu pedido de impugnação. Contrariando o exposto, em entrevista, o ex-secretário Enoc Guimarães informou que a engenheira participou da comissão técnica que elaborou o edital, representando a controladoria interna do município.

O prefeito Fábio Branco (PMDB) disse não saber responder. “Não sei, não fui eu que fiz o edital. Eu institui uma comissão de funcionários idôneos e sérios que constituiu ele. Na verdade, esse ressarcimento é uma obrigação da lei federal. Ela obriga as concessionárias a indenizar os bens, indenizar aquilo que foi investido. Nós estamos seguindo a lei. (…) Os bens têm valor de mercado, ninguém inventa esses números”.

Foto: Daniela de Bem
Estudantes da Furg denunciaram empresa Noiva do Mar ao MP por atrasos e superlotação em ônibus | Foto: Daniela de Bem

Guimarães acredita que o problema foi a falta de comunicação entre o Ministério Público e o poder executivo municipal. Explica que os ônibus são pagos através da tarifa e que são parte do sistema de transporte municipal. Na planilha que calcula o custo tarifário há um item denominado depreciação e remuneração da frota. Quando a empresa compra um ônibus, nos primeiros sete anos, recebe 80% de seu valor pela tarifa. Nos últimos oito anos – os coletivos têm valor de mercado até os 15 anos – são pagos os 20% restantes. “A partir do momento que o edital continha a planilha tarifária, que explicitava os percentuais de depreciação e remuneração, que trazia o valor de um ônibus novo e continha a relação da frota, para se chegar a esse valor, bastava pegar cada ônibus e aplicar o percentual residual que está faltando para se ter o valor de transação de cada um deles. A empresa vencedora ou o consórcio assumiria a frota por esse saldo residual e poderia operá-los até completarem a idade de utilização.” Sobre os valores que o MPC diz carecem de sustentação, o ex-secretário salienta que há explicação lógica para todos. De acordo com ele, os índices de liquidez e solvência foram retirados de um trabalho da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos (AGERGS).

Segundo a lei de licitações, o patrimônio líquido pode ser de até 5% do valor do contrato, que no caso de Rio Grande, é de 450 milhões de reais. “O patrimônio líquido poderia ser de até 22 milhões de reais, a gente exigiu um quarto disso. O edital foi feito por comissão da prefeitura, da qual eu fiz parte, formada pela atual secretária de transportes, que representava o controle interno, pelo controle externo, pela procuradoria jurídica e pela gerência de compras. Nós optamos por trabalhar com o valor de um e meio por cento, 25% do que poderia ser o patrimônio líquido exigido pra dar condições de competitividade na licitação, pra que empresas de menor porte pudessem participar.” Ele complementa ainda que “o edital não tem que ter a justificativa no seu corpo”, pois seria questão que “o município estuda, vai lá e coloca”.

Cálculo tarifário também provoca dúvidas

A metodologia do cálculo tarifário também é citada pelo MPC. O órgão afirma que há necessidade de se verificar os índices de composição da tarifa, feita com base na planilha Geipot( Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes, extinto em 2008).

A planilha, criada na década de 1980, é usada pela maioria das cidades brasileiras. Nela são colocados os custos variáveis – como rodagem, pneu, lubrificante, combustível e os custos fixos – como despesas administrativas, pagamento de pessoal. A tabela oferece um intervalo de coeficientes para os índices a fim de efetuar o cálculo. Por exemplo, o município pode escolher entre 0,37 e 0,39 por litro como coeficiente do combustível, dentro do intervalo estipulado pelo Geipot. A falta de parâmetro para fixação dos coeficientes é o que está sendo questionado pelo MPC.

As discussões a respeito da composição tarifária não são novas. Em 2007, o Ministério Público entrou com uma ação civil pública contra a prefeitura, na época sob o comando de Janir Branco (PMDB), e contra as empresas Noiva do Mar e Cotista. O órgão contestava os reajustes ocorridos em 2005 e 2006. Apontava para diferenças de valores entre os cálculos da SMSTT, das empresas e os encontrados pelo assessor do MP. Na ação, requeria-se a volta ao preço da tarifa decretado em 2004 e a indenização, por parte das concessionárias, aos usuários lesados. Mas, de acordo com sentença do Tribunal de Justiça, a ação foi considerada improcedente devido à falta de provas em relação ao apontamento de fraude.

Em fevereiro desse ano, a passagem sofreu um reajuste de aproximadamente 11%, enquanto o índice inflacionário foi em torno de 6%. O aumento havia sido estudado em dezembro de 2011. Na cidade, há o conselho consultivo de Transportes e Trânsito, que se reúne para calcular a tarifa e sugerir um preço ao poder executivo. Enquanto o pedido das operadoras era o de que a passagem valesse três reais, o conselho consultivo, pela planilha, chegou ao valor de R$ 2,65. Por fim, o prefeito Fábio Branco decretou R$ 2,60.

Questionada sobre como um cálculo técnico pode gerar três tarifas diferentes, a secretária explicou que, em dezembro, quando a empresa entrou com o pedido de aumento, considerou toda a frota, inclusive a que entraria em operação em janeiro. “Nosso cálculo retirou esses ônibus, por volta de 45 coletivos do consórcio, por não serem a frota operante. (…) Nós os suprimimos da depreciação, um dos itens que dá o custo da tarifa, chegamos a R$ 2,67, arredondamos para R$ 2,65 e apresentamos ao conselho. Houve proposta do conselho pra que fosse R$ 2,70, mas quando a gente explanou todos os componentes da tarifa, o conselho aprovou R$ 2,65.”

Em relação aos índices adotados, salienta que a escolha sempre foi pela média dos coeficientes fornecidos pela própria planilha. “A planilha do Geipot dá limites máximos e mínimos. Dentro desses limites, qualquer um desses índices utilizados estão dentro da realidade. Nós optamos por usar a média.” A escolha, explica, é devido às diferenças de gastos entre concessionárias — por exemplo, o quanto pagam de combustível ou de salário para funcionários. Garante que o preço é módico e justo, de acordo com a realidade financeira das empresas e dos usuários.

O prefeito Fábio Branco diz desconhecer como o conselho faz a composição da tarifa. “Eu fiz pelo meu entender, pela avaliação de outros locais, uma decisão minha. Na verdade, é o ônus do prefeito de ter que dar a última decisão. Respeito a decisão de todos, mas eu fiz um parâmetro comparativo daquilo que a gente estava exigindo de ônibus novos, de transporte de qualidade”. Sobre a possibilidade de a prefeitura estar assumindo uma defasagem, respondeu: “Acho que não”.

No vídeo abaixo, o vereador Júlio Martins (PCdoB) pede requerimento para ouvir representantes da comunidade, pedido negado pelos vereadores da oposição. Decisões semelhantes aconteceram dezenas de vezes durante a CPI em Rio Grande.

Situação confusa arrasta-se por vinte anos

Antes da constituição federal de 1988, os serviços públicos de Rio Grande funcionavam através de permissões. Segundo Zachia Alan, a prestação da atividade era vista como benesse do administrador. Com a Constituição, o serviço passou a ser visto como direito da população e se exigiu a realização de licitação.

A empresa União Cotista começou a operar há aproximadamente vinte anos e, apesar de começar após surgimento de novas regras, funcionava sem licitação. Em 2001, o MP emitiu ao executivo municipal uma ordem para regularização das linhas de ônibus em 120 dias, sob pena de tomada de providência judicial. O órgão verificou que a Noiva do Mar e a União Cotista possuíam contratos precários feitos antes e depois da nova regra, além de operarem linhas que não tinham nenhum tipo de contratualização. A administração – chefiada pelo atual prefeito Fábio Branco – não acatou a decisão do MP. Perguntado sobre o motivo da não feitura do processo licitatório e sobre quais seriam os benefícios de não se fazer um edital, Fábio Branco respondeu que não se lembrava.

O fato é que o município optou por um caminho polêmico. Em vez de fazer licitação, a Câmara de Vereadores aprovou a lei orgânica 5602/2002 para reger o sistema de transporte. Por força do seu artigo 50, ficaram prorrogadas, por dez anos, as permissões que estavam em vigência com as duas operadoras. Devido a esse mecanismo, o MP entrou com uma ação civil pública contra a municipalidade e contra as empresas favorecidas pela lei, pedindo a extinção das concessões. Pedia sanções por improbidade administrativa contra Fábio Branco. Por causa de mudanças ocorridas no modo de julgamento de atos de improbidade administrativa contra prefeitos, o processo chegou a andar, mas foi anulado e voltou à primeira instância. Até hoje, não há decisão judicial sobre a matéria, que perdeu o objeto após a realização de processo licitatório no ano passado.

Foto: Daniela de Bem
Enoc Guimarães (esq), ex-secretário da SMSTT, depondo durante CPI dos Transportes em Rio Grande. Logo em seguida, ele se tornaria membro da própria Comissão | Foto: Daniela de Bem

Enoc Guimarães, que é advogado, avalia a lei como inconstitucional. Ao assumir a pasta dos transportes em 2005, diz que não poderia ter feito o certame sem a decisão da justiça. “Várias vezes eu falei que achava a lei inconstitucional, mas eu não sou juiz, está no Judiciário e enquanto o Judiciário não disser que a lei é inconstitucional eu não posso licitar, porque aí eu vou ferir duas partes: quem tem um contrato por força de lei e quem ganhar a licitação, que não vai ter a garantia de operar”.

A prefeitura licitou o subsistema do bairro Parque Marinha em 2006, com a vitória da Noiva do Mar. No entanto, por volta de 75% das linhas continuaram do mesmo jeito. No ano passado, foi aberto outro o processo licitatório, vencido pelo consórcio Mais Rio Grande, composto pelas mesmas duas operadoras. Com a contestação do processo e a posterior suspensão do contrato em fevereiro desse ano, a discussão muda o foco. Conforme Rubia Mara, as concessionárias estão entrando na justiça, pois fizeram financiamentos para atender a necessidades do edital. A secretária acrescenta que as regras do edital geraram custos elevados, já que a administração exigiu que os ônibus novos fossem adaptados a portadores de necessidades especiais, foram adquiridos mais de 60 ônibus novos e a idade média da frota é de três anos e meio.

Para Guimarães, era preferível que houvesse tido anulação do contrato. Isso porque agora o município terá que esperar a decisão do TCE para depois resolver o impasse. Não há previsão para decisão final do tribunal e as operadoras voltaram a funcionar em conformidade com a lei 5602. O que o ex-secretário levanta é que, se caso o contrato for anulado, as concessionárias irão requerer o valor da outorga – cinco milhões de reais – e indenização. Por outro lado, se o contrato for considerado legal, o consórcio vai operar os dez anos previstos na licitação, somado ao tempo de espera pela decisão. “Pra mim, hoje nós estamos pior do que estávamos no passado.”

A Noiva do Mar, líder do consórcio Mais Rio Grande, foi procurada pela reportagem, mas a assessoria informou que os representantes não iriam se manifestar.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora