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6 de março de 2012
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20:12

TJ-RS determina retirada de símbolos religiosos dos prédios da Justiça gaúcha

Por
Sul 21
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Foi acatado o pedido sobre a retirada dos crucifixos e símbolos religiosos nos espaços públicos dos prédios da Justiça gaúcha.

Samir Oliveira
Atualizado às 18h46

Uma decisão unânime do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) determinou nesta terça-feira (6) a retirada dos símbolos religiosos das dependências da Justiça gaúcha. Foi a etapa final de um processo que havia começado no dia 7 de novembro de 2011, quando diversas organizações ligadas à defesa dos direitos dos homosexuais e das mulheres protocolaram no TJ o pedido de retirada dos crucifixos de suas repartições.

A primeira manifestação sobre o tema veio somente no dia 27 de janeiro deste ano, quando o então presidente do TJ-RS, desembargador Leo Lima, acatou o parecer do juiz-assessor Antonio Vinícius Amaro da Silveira, que utilizou o preâmbulo da Constituição Federal de 1988 para justificar a presença dos símbolos, sendo que o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que esse trecho da Carta Magna não possui força normativa.

No preâmbulo, está escrito que a Constituição foi promulgada “sob a proteção de Deus”. O juiz-assessor também argumentou que a permanência dos crucifixos “se justifica em raízes predominantemente cristãs, que amoldaram a cultura deste país”.

Os autores da ação recorreram da decisão, que parou nas mãos do segundo vice-presidente do TJ-RS, desembargador Cláudio Baldino Maciel, que decidiu submeter o tema ao Conselho da Magistratura, entidade formada pela cúpula administrativa do Judiciário gaúcho. Maciel leu seu voto na sessão de hoje do conselho, que acompanhou integralmente a decisão de retirar os símbolos religiosos das dependências da Justiça no Estado.

Acompanharam a posição os desembargadores Marcelo Bandeira Pereira (presidente do TJ-RS), André Luiz Planella Villarinho, Liselena Schifino Robes Ribeiro e Guinther Spode. O tribunal irá esperar a decisão transitar em julgado para determinar a remoção dos símbolos religiosos na sede estadual do TJ e nas comarcas no interior do Rio Grande do Sul.

“É uma decisão histórica”, comemora Liga Brasileira de Lésbicas

A decisão do TJ-RS de retirar os símbolos religiosos das dependências da Justiça gaúcha foi provocada por uma ação de seis organizações ligadas à defesa dos direitos dos homossexuais e das mulheres: a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), o grupo Nuances, a ONG Somos, a ONG Themis, a Rede Feminista de Saúde e a Marcha Mundial de Mulheres. Junto com o pedido no TJ-RS, essas organizações também requisitaram a retirada de símbolos religiosos da Câmara Municipal de Porto Alegre, do Governo do Estado e da Assembleia Legislativa.

Ana Naiara Malavolta, integrante da LBL no Rio Grande do Sul, avalia que a decisão do TJ-RS é “histórica” e irá reforçar os pedidos já feitos nos outros órgãos públicos. “É uma decisão histórica para a tratativa deste tema em nível nacional. Será positiva, inclusive, para avançarmos na cobrança nos outros espaços do Estado”, anima-se.

Crucifixo no topo do plenário da Câmara Municipal de Porto Alegre | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Ela acredita que o fortalecimento da laicidade do Estado é “fundamental para a continuidade da democracia no país”. E aponta que o maior desafio será pautar o assunto em nível nacional. “Há partidos políticos organizados em torno de religiões. No Congresso Nacional, que deveria ser o local de discussão mais profícuo, é onde temos menos espaço. As bancadas religiosas se organizam de forma muito articulada para que esse e outros debates não avancem”, critica.

A integrante da Liga Brasileira de Lésbicas destaca que o principal objetivo das ações protocoladas nos órgãos públicos é gerar a discussão sobre a presença dos símbolos religiosos nos espaços estatais e, portanto, a própria influência da religião no Estado brasileiro. “Por trás de um simples símbolo, há toda uma ideologia que trava um embate muito desleal com diversos segmentos, como o dos homossexuais. Até que ponto a moral religiosa deve influenciar de forma direta o Estado brasileiro em sua tomada de decisões?”, questiona. Malavolta cita como exemplo da influência religiosa no Estado a escolha, pela presidente Dilma Rousseff (PT), do senador e bispo evangélico da Igreja Universal, Marcelo Crivella (PRB-RJ), para ocupar o ministério da Pesca.

Na Câmara Municipal de Porto Alegre, o pedido de retirada dos símbolos religiosos está com a assessoria jurídica desde do dia 5 de novembro do ano passado. Na Assembleia Legislativa, a solicitação foi repassada pelo ex-presidente Adão Villaverde (PT) a todas as bancadas e o assunto não foi mais debatido. No governo gaúcho, o pedido aguarda um parecer da Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos.

“Decisão será um farol que iluminará outras país afora”, comenta juiz

O juiz e doutor em Antropologia, Roberto Loréa, que sempre defendeu a retirada de símbolos religiosos das repartições públicas, acredita que a decisão do TJ-RS irá nortear posições em outros estados do Brasil. Apesar de ser uma decisão administrativa do Conselho da Magistratura do TJ-RS, Loréa entende que o voto do desembargador Cláudio Baldino Maciel servirá de fundamentação em outros casos semelhantes.

“A decisão do Conselho da Magistratura servirá como um farol que iluminará outras decisões país a afora. Os argumentos e a força do voto têm a capacidade de inspirar e subsidiar outras decisões da mesma qualidade”, opina.

Loréa já havia proposto, no Congresso Estadual da Magistratura, em 2005, que os símbolos religiosos fossem retirados das instâncias da Justiça gaúcha, mas acabou perdendo por apenas um voto. Ele entende que é preciso “encerrar a falsa ideia de que a retirada do símbolo de uma religião é uma ofensa” e argumenta que isso representa, na verdade, a possibilidade que de “as demais crenças não sejam discriminadas pelo Estado”.

O juiz considera que o efeito simbólico da decisão do TJ-RS “sinaliza que estamos num novo tempo” e aponta para a necessidade de o assunto ser debatido em outras instâncias do Estado, como nas escolas públicas, por exemplo, onde é comum a presença de símbolos católicos. “Imagina o filho de um pai de santo chegar numa escola pública e ver um crucifixo na parede. É uma violência simbólica enorme contra uma criança indefesa”, compara.

”O espaço público não pode ser marcado, como se pertencesse a uma religião”, aponta pesquisador

Doutor em Educação e professor da Ufrgs, Fernando Seffner é especialista em estudos que relacionam religião, sexualidade e políticas públicas. Para o pesquisador, a decisão do TJ-RS ajuda a “desnaturalizar” a presença dos símbolos religiosos nos espaços públicos.

“Determinadas questões culturais ficam naturalizadas. Na medida em que cada vez mais as pessoas acreditam ser natural a presença de cruzes em tribunais, deixam de perceber os efeitos que isso acarreta”, avalia, acrescentando que “o Brasil é um país cada vez mais diverso do ponto de vista religioso e muitos indivíduos que acorrem aos tribunais não têm identificação com a cruz cristã”.

Seffner ressalta que “o espaço público não pode ser marcado, como se pertencesse a uma religião” e acredita que postura do TJ-RS fará com que as pessoas se sintam mais à vontade no tribunal. “As pessoas precisam ser livres para portar os símbolos religiosos que acharem convenientes. Mas as paredes e os documentos dos espaços públicos não podem optar por uma religião”, defende.

Presidente da associação de ateus projeta “onda de laicidade” no país

Daniel Sottomaior diz que Justiça gaúcha não reproduziu argumentos pobres | Foto: Arquivo Pessoal

O presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA), Daniel Sottomaior, avalia que decisão do TJ-RS sinaliza um descontentamento cada vez maior da sociedade brasileira com as violações diárias contra o Estado laico previsto pela Constituição Federal de 1988. “Acredito que isso aponte para um novo norte. A sociedade começa a se assustar com a falta de laicidade do Estado. Espero que essa onda de violações da laicidade, que ocorre principalmente durante as eleições, seja sobreposta por uma onda de laicidade no Brasil”, defende.

Sottomaior comenta, ainda, que a postura do TJ-RS representa uma mudança dentro do próprio Judiciário, que costuma utilizar argumentos pouco jurídicos ao apreciar temas relativos à laicidade do Estado. “Vemos outras decisões que levam em contra o preâmbulo da Constituição ou as tradições do país. São argumentos muito pobres”, critica.

Confira abaixo trechos do voto do desembargador Cláudio Baldino Maciel

“Embora sejam ouvidas algumas vozes apontando para a irrelevância do tema ora tratado quando cotejado com as graves questões enfrentadas pelo Poder Judiciário brasileiro, não hesito em afirmar, em primeiro lugar, que o tema deste expediente é muito relevante, especialmente porque diz respeito a matéria regida pela Constituição Federal e porque se trata de refletir a respeito da relação entre Estado e Igreja em um país republicano, democrático e laico.”

“(…) hoje é fácil constatar a existência de uma política de concessão de rádios e televisões que, além de criar outros graves problemas (…), proporcionou a criação e a manutenção de uma bancada evangélica no Congresso Nacional, hoje com número e força suficiente para barrar a tramitação de qualquer projeto de lei que contrarie elementos de sua doutrina religiosa.”

“Ora, a laicidade deve ser vista, portanto, não como um princípio que se oponha à liberdade religiosa. Ao contrário, a laicidade é a garantia, pelo Estado, da liberdade religiosa de todos os cidadãos, sem preferência por uma ou outra corrente de fé. Trata-se da garantia da liberdade religiosa de todos, inclusive dos não crentes, o que responde ao caro e democrático princípio constitucional da isonomia, que deve inspirar e dirigir todos os atos estatais (…).”

“(…) não se trata de julgar forma de decoração ou preferência estética em ambientes de prédios do Poder Judiciário, senão de dispor sobre a importante forma de relação entre Estado e Religião num país constituído como república democrática e laica.”

“Nada impede que um magistrado, no interior de seu gabinete de trabalho, faça afixar na parede um símbolo religioso ou uma fotografia de Che Guevara.(…) no entanto, à luz da Constituição, na sala de sessões de um tribunal, na sala de audiências de um foro, nos corredores de um prédio do Judiciário mostra-se ainda mais indevida a presença de um crucifixo (ou uma estrela de Davi do judaísmo, ou a Lua Crescente e Estrela do Islamismo).”

“Ora, o Estado não tem religião. É laico. Assim sendo, independentemente do credo ou da crença pessoal do administrador, o espaço das salas de sessões ou audiências, corredores e saguões de prédios do Poder Judiciário não podem ostentar quaisquer símbolos religiosos, já que qualquer um deles representa nada mais do que a crença de uma parcela da sociedade (…).”

“Causaria a mesma repulsa à idéia de laicidade estatal, por exemplo, a ostentação, em um altar de Igreja católica, do brasão do Estado do Rio Grande do Sul.”

“O cidadão judeu, o muçulmano, o ateu, ou seja, o não cristão, é tão brasileiro e detentor de direitos quanto os cristãos. Tem ele o mesmo direito constitucionalmente assegurado de não se sentir discriminado pela ostentação, em local estatal e por determinação do administrador público, de expressivo símbolo de uma outra religião, ainda que majoritária, que não é a sua.”


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