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15 de março de 2012
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08:45

Ação do MPF contra Curió cria brecha jurídica para contornar Lei da Anistia

Por
Sul 21
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Procuradores da República concederam coletiva à imprensa na terça-feira (13) para anunciar ação contra Curió | Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Samir Oliveira

A ação que o Ministério Público Federal (MPF) protocolou nesta quarta-feira (14) contra o coronel da reserva Sebastião Curió, responsabilizando-o pelo sequestro de cinco militantes de esquerda entre janeiro e setembro de 1974, não é um fato isolado. Ela vem no rastilho de um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) que pode ser a trilha mais segura para a transposição da Lei da Anistia e a responsabilização penal dos agentes civis e militares que torturaram em nome do Estado no Brasil entre 1964 e 1985.

Ao julgar dois pedidos de extradição feitos pela Argentina, o STF concluiu que os crimes pelos quais os acusados respondiam não prescreveram, já que ainda estariam acontecendo até que os corpos das vítimas sejam localizados. Em agosto de 2009, o tribunal usou esse argumento para enviar o major uruguaio Manoel Cordeiro para a Argentina, acusado de ter sequestrado e “desaparecido” 11 pessoas durante a ditadura no país vizinho e também de ter raptado um bebê de 20 dias. A mesma tese foi utilizada para a extradição do major Norberto Raul Tozzo, que o governo argentino aponta como comandante do fuzilamento de 22 presos políticos em 1976.

Em ambos os casos, o STF considerou que os crimes não prescreveram porque, como os corpos das vítimas ainda não foram encontrados, o sequestro e o desaparecimento forçado ainda estariam acontecendo. Num dos processos, o ministro Ricardo Lewandowski avaliou que “embora tenham passado mais de trinta e oito anos do fato imputado ao extraditando as vítimas até hoje não apareceram, nem tampouco os respectivos corpos, razão pela qual não se pode cogitar, por ora, o homicídio”.

O ministro César Peluso também observou que, devido à ausência de exames de corpo de delito, “o homicídio não passa, no plano jurídico, de mera especulação, incapaz de desencadear fluência do prazo prescricional”.

Para o grupo de procuradores da República que investiga os crimes cometidos por agentes do Estado na ditadura brasileira, esse entendimento do Supremo abre uma brecha jurídica para que a Lei da Anistia de 1979 seja contornada. Foi isso que embasou a ação protocolada nesta quarta-feira (14) na Justiça Federal de Marabá (PA) contra o coronel da reserva Sebastião Curió.

No requerimento, assinado por sete procuradores, há depoimentos e documentos que incriminam o militar pelo sequestro de cinco militantes de esquerda que pegaram em armas contra a ditadura e integraram a Guerrilha do Araguaia: Maria Célia Corrêa, Hélio Luiz Navarro de Magalhães, Daniel Ribeiro Callado, Antonio de Pádua e Telma Regina Cordeira Corrêa.

Na acusação contra Curió, os procuradores alegam que “descabe falar em exaurimento do sequestro e, consequentemente, de ocorrência de prescrição ou extinção da punibilidade pela anistia, haja vista que cuida a presente (ação) de crimes de caráter permanente cujo curso do prazo prescricional sequer se iniciou e, uma vez que ainda em consumação, não são compreendidos, portanto, pelo marco temporal previsto na Lei da Anistia de 1979”.

“É a primeira de outras investigações que estão em andamento”, avisa procurador da República

Ivan Marx coordena grupo de procuradores que troca informações sobre crimes da ditadura militar | Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

O procurador da República em Marabá (PA), André Raupp, um dos que assinou a ação contra Curió, avisa que outras investigações estão sendo feitas e surgirão novas denúncias contra agentes da repressão que atuaram na ditadura militar brasileira. Todas as ações seguirão a argumentação jurídica de que os crimes em que os corpos ainda não foram encontrados não estão prescritos, pois ainda estariam ocorrendo.

“A ação do Curió é a primeira de outras investigações que estão em andamento, com outros réus, agentes que exorbitaram e muito em suas funções e cometeram atrocidades sustentando que defendiam o Estado”, explica Raupp. Ele observa que o foco das investigações são os sequestros, considerados “crimes permanentes”, mas informa que estão sendo feitos estudos jurídicos para avaliar a inclusão de outros tipos de crime.

O procurador considera que a ação contra Curió representa “uma mudança de paradigma” nos processos que tentam responsabilizar judicialmente os repressores da ditadura. “Com essa ação estamos dizendo que esses fatos precisam ser julgados e que os responsáveis pelos crimes precisam ser apontados”, defende.

Raupp integra um grupo de trabalho formado por procuradores da República de todo o país para discutir Justiça de transição. O coletivo é coordenado pelo procurador gaúcho Ivan Cláudio Marx, que atua em Uruguaiana.

Ele comenta que a intenção do grupo é trocar informações sobre as investigações dos crimes cometidos por agentes da repressão durante a ditadura militar e formular entendimentos jurídicos sobre esses temas. “Temos investigações em São Paulo, em Uruguaiana e em outros lugares. Ainda não saíram novas denúncias porque não temos todos os elementos”, explica.

“O próprio STF criou o precedente”, aponta Jair Krischke

Jair Krischke parabeniza ação dos "jovens procuradores" e diz que MPF estava "acomodado" | Foto: Divulgação/ SJDS/RS

O presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, Jair Krischke, observa que foi o próprio Supremo Tribunal Federal que criou o precedente para que a Lei da Anistia seja contornada ao considerar que os repressores estrangeiros podem ser extraditados do país pelos crimes de sequestro e desaparecimento forçado. “Para que a extradição ocorra é preciso haver bitipicidade. Ou seja, o delito tem que estar tipificado como crime nos dois países. Ao conceder a extradição a um militar acusado de 11 sequestros e desaparições, o STF criou jurisprudência e abriu um precedente”, avalia Jair.

Ele comemora a iniciativa do Ministério Público Federal e avalia que, se não fosse o grupo de jovens procuradores que investigam esses casos, o MPF ainda estaria “acomodado”. “São crimes de ação penal pública que precisam ser investigados pelo MPF, que te sido muito acomodado. Agora esses jovens procuradores pedem os julgamentos e agitam um pouco essas questões. Isso é de vital importância, porque outros casos aparecerão”, projeta.

“Finalmente vamos começar a mudar a história da impunidade”, comemora integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos

A iniciativa do Ministério Público Federal de denunciar o coronel da reserva Sebastião Curió pelo sequestro de cinco militantes de esquerda durante a ditadura representa, para os familiares de mortos e desaparecidos políticos, a possibilidade de que outros algozes de seus parentes possam ser levados aos tribunais. Iara Xavier, que militava na Aliança Libertadora Nacional e perdeu dois irmãos e o marido para a repressão, avalia que a ação do MPF é “uma janela” que se abre sobre os familiares das vítimas.

“Finalmente vamos começar a mudar a história da impunidade e conseguir levar ao banco dos réus aqueles que perpetraram crimes imprescritíveis”, comemora. Ela observa que o argumento jurídico endossado pelos procuradores da República “traz uma esperança concreta” para que outros agentes da repressão possam ser julgados. “Espero que essa porta aberta permita que sejam feitas o maior número possível de ações”,  comenta Iara.

O jornalista Ivan Seixas é outro entusiasta das possibilidades abertas com a ação do Ministério Público Federal. Ex-preso político, ele é um dos responsáveis pela transformação da antiga sede do DOI-CODI de São Paulo no Memorial da Resistência, inaugurado em janeiro de 2009. Foi nesse mesmo local que seu pai, Joaquim Alencar de Seixas, morreu sob tortura em 1971.

Maurício Monteiro Filho / Repórter Brasil
Sebastião Curió será julgado pelo sequestro de cinco guerrilheiros | Foto: Maurício Monteiro Filho / Repórter Brasil

“Não podemos aceitar que existam pessoas que não podem ser julgadas só porque eram agentes da repressão. O Estado foi usurpado pela ditadura, que era ilegal e ilegítima e não pode ser beneficiada pela Lei da Anistia”, critica.  Ele reitera o entendimento de que, quando o corpo não é encontrado, o sequestro é um crime permanente. “Pressupõe-se a ocultação de cadáver. A vítima, viva ou morta, ainda está sob poder dos sequestradores”, acusa.

O jornalista e integrante do Núcleo de Preservação da Memória Política analisa que, simbolicamente, a ação contra Curió pode representar o fim da impunidade sobre os agentes que cometeram crimes durante a ditadura. “Por que o torturador de hoje pode ser condenado e o do passado não? Não punir os torturadores do passado é um incentivo aos do presente. Já passou da hora de a Justiça prevalecer”, entende.


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