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2 de fevereiro de 2012
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08:00

Jogo de empurra impede investigação de atentado contra caingangues

Por
Sul 21
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Disparos contra indígenas ainda não foram alvo de nenhuma diligência policial | Foto: Tiago Miotto/Revista O Viés

Felipe Prestes

No dia 5 de janeiro, três disparos de arma de fogo foram feitos contra um acampamento caingangue na região central de Santa Maria. Os tiros acabaram não atingindo ninguém, mas passaram perto de um adulto e de um grupo de crianças. Quase um mês depois, não há nenhuma investigação em curso sobre o atentado, uma vez que a Polícia Federal afirma que o caso não é crime federal enquanto o MPF insiste que cabe à PF investigar o caso. A Polícia Civil, por sua vez, afirma que não recebeu determinação para realizar inquérito e que, por isto, não fez qualquer diligência.

O delegado-chefe da PF em Santa Maria, Getúlio Jorge de Vargas, por meio de assessoria de imprensa, relata que a PF ouviu os primeiros depoimentos e, por entender que o caso não era de sua competência, encaminhou o caso para o MPF e para a Polícia Civil. Mas o delegado Marcos Viana, da 1ª DP de Santa Maria, que é responsável por crimes na região da cidade onde ocorreram os tiros, diz que a Polícia Civil não recebeu nada.

O MPF, por sua vez, está tentando fazer com que a PF faça a investigação. “Eles (PF) acham que não é federal e a gente acha que é. A gente quer o reconhecimento do fato de ser um conflito indígena”, afirma o procurador do MPF Rafael Miron. Ele explica que um crime contra indígenas não necessariamente é crime federal. “É crime federal quando não é apenas contra um indivíduo indígena, mas quando atinge uma cultura, um povo. Quando é apenas envolvendo um indivíduo indígena não é federal”, explica o procurador.

Ele defende que por haver uma disputa por terras o caso é, sim, federal e deve acionar a Justiça para que a PF entre no inquérito. Mas o procurador acredita que enquanto isto a Polícia Civil deveria investigar o caso e promete tomar providências.

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Os caingangue vivem em barracos sem água e luz | Foto: Tiago Miotto/Revista O Viés

Há décadas, dezenas de índios caingangues migram do Norte do Rio Grande do Sul para Santa Maria nos períodos de festas (Natal e Páscoa). Eles costumam ocupar o terreno em que foram alvejados, em frente à Estação Rodoviária da cidade, onde vendem artesanato. Um pequeno grupo deles já está ocupando permanentemente parte do terreno há cerca de dois anos. O terreno é de propriedade privada, mas nunca teve uso.

Os caingangues reivindicam melhores condições de vida, pois estão ali sem água, luz e vivem embaixo de lonas. Com apoio de indígenas guaranis, que vivem em condições precárias à beira da BR-392, em Santa Maria, 13 famílias de caingangues decidiram ocupar, no final de 2011, uma área mais central do terreno. Ainda em dezembro, o proprietário do terreno tentou a reintegração de posse em medida liminar e não conseguiu.

Governo do Estado cogita a concessão de áreas para os indígenas

O Governo do Estado já manifestou o desejo de conceder uma área de quatro hectares, atrás de um prédio da FASE, em Santa Maria, para os caingangues que migram sazonalmente para a cidade. Também estuda a destinação de uma área para as seis famílias guaranis que vivem acampadas às margens da BR-392, no mesmo município. Entretanto, isto deve ser um processo lento.

A coordenadora estadual de Igualdade Étnica e Racial, Sandra Maciel, conta que o governo teve um Grupo de Trabalho Indígena, coordenado pela Casa Civil, durante o ano de 2011. Entre as conclusões do grupo, está a de que não é possível ceder áreas sem que sejam firmados acordos previamente com a Funai para garantir a sobrevivência digna dos indígenas nos terrenos que forem concedidos pelo Estado.

O procurador da República, Rafael Miron, conta que a área que o governo pretende destinar aos indígenas fica a apenas 400 metros do terreno que ocupam atualmente, mas, por não ser tão próxima à Rodoviária não é um ponto bom para a comercialização de artesanatos. Apesar disto, os caingangues já concordaram com o novo local. “Tem manifestações do Governo do Estado sobre uma área do lado da FASE. Eles (os indígenas) mandaram a concordância.

Miron também ressalta, contudo, que é esta solução deve se desenrolar lentamente. “Ainda tem um processo dentro do governo. É uma coisa que está andando. Demora, mas acho que vamos conseguir um resultado prático no futuro”, afirma.

Matias Rempel, integrante do Grupo de Apoio aos Povos Indígenas (Gapin), conta que os indígenas aceitaram a área do Governo do Estado, com algumas condições. Eles querem condições mínimas de infra-estrutura, casas, saneamento básico, eletricidade. Hoje, eles vivem em lonas, sem água potável e sem luz. Rempel explica que o local seria uma “área de cultura e convivência caingangue”. O novo lugar continuaria sendo destinado aos muitos índios que migram nas épocas de festas, mas algumas famílias teriam residência fixa ali, como administradores do local.

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Acampamento guarani à beira da BR-392 | Foto: MPF

Além dos caingangues, Santa Maria tem também seis famílias guaranis que vivem em condições precárias. Índios desta etnia vivem há pelo menos 35 anos às margens da BR-392, em lonas, num curto espaço entre a rodovia e a cerca de uma propriedade privada. No dia 19 de outubro de 2011, uma decisão liminar da Justiça Federal deu a União, Funai e Estado o prazo de 60 dias para providenciar imóvel de boa qualidade na região de Santa Maria para realocar as seis famílias do acampamento guarani, o que ainda não ocorreu.

“Nenhum cumpriu, mas o Estado está vendo uma área para destinar para eles”, conta o procurador Rafael Miron. Até o ano passado, quem tratava destes temas no MPF era outro procurador, Harold Hoppe. “Meu colega atuou principalmente com os guaranis, fez uma ação bem legal. Estamos com expectativa de assentamento deles em uma área bem grande”, afirma Miron. Uma das áreas que foi cogitada foi um terreno da Corsan, entre os municípios de Itaara e São Martinho da Serra, próximos a Santa Maria.

Índios não têm acesso à educação e dificuldades na saúde

“Em Santa Maria até hoje nenhum direito indígena é plenamente garantido”, afirma o integrante do Gapin, Matias Rempel. Um dos direitos não atendidos é o de acesso à saúde. Matias conta que os caingangues não têm nenhum interlocutor direto no Município. Que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão federal, ofereceu treinamento a funcionários de saúde da Prefeitura de Santa Maria, mas que ninguém assumiu o papel de dar atenção especial aos indígenas.

Rempel explica que os índios não podem ir simplesmente procurar postos de saúde, como qualquer cidadão, devido a questões culturais. “Tem a questão da língua, a maioria das mulheres e crianças não fala o português; e a questão da cultura tradicional que tem que ser respeitada. O profissional precisa conhecer estas simbologias”, diz.

A situação dos guaranis é menos grave, porque um dos acampados é agente de saúde indígena. “Mas ainda assim seria preciso uma equipe multidisciplinar, que inexiste”, afirma Rempel.

O secretário-adjunto de Assistência, Cidadania e Direitos Humanos de Santa Maria, Odilo Ravanello, afirma que a situação dos guaranis “não é tão precária como dizem”. “Uma vez por mês vai uma unidade móvel ao acampamento dos guaranis. Eles têm um agente de saúde lá que, quando necessário, telefona e nós fazemos o atendimento”, conta.

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Caingangues vivem em lonas em área central de Santa Maria | Foto: Tiago Miotto/Revista O Viés

Segundo Ravanello, os caingangues não podem ser atendidos por unidade móvel, por estarem em “área invadida” e quando precisam “vão a um posto de saúde”. Ele afirmou também que uma enfermeira costumava ir ao acampamento, mas que, muitas vezes, os indígenas refutavam o atendimento. O secretário-adjunto diz que não sabe se o entendimento entre agentes de saúde e caingangues melhorou depois do treinamento que foi feito no ano passado. Ele também relata que tratar a saúde dos índios se complica devido à falta de infraestrutura. “Não têm água, não têm luz, e isso tudo piora as condições de saúde”, diz.

Quanto à educação, Matias Rempel afirma que os dois acampamentos têm direito a um professor bilíngue. “Isto se justifica quando há pelo menos cinco crianças no acampamento, o que é o caso dos dois”. Rempel diz por enquanto há apenas uma sinalização da Secretaria Estadual de Educação em viabilizar a educação nos acampamentos. “A Secretaria mostrou a intenção de fazer isto”, diz.

O procurador Rafael Miron relata que além da educação e saúde, os índios precisam de condições mínimas de infraestrutura como banheiros químicos, acesso à água e luz. Como recém se tornou o responsável do MPF pelas questões indígenas em Santa Maria, Miron ainda está analisando que atitudes tomar quanto ao atendimento destas demandas, mas explica que a estratégia é pressionar os órgãos públicos por meio de ofícios e outros expedientes, antes de entrar com uma ação civil pública. Ele acredita que assim as demandas caminham para ser atendidas, ainda que, ressalta, não se resolvam rapidamente.

“Quando tenho negativa, posso fazer ação. Mas o poder de pressionar sai da minha mão e vai para a Justiça. A gente evita ao máximo a judicialização. Pode cair na mão de um juiz que entenda, por exemplo, que os caingangues não têm direito à luz porque o terreno não é deles”, explica.


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