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6 de fevereiro de 2012
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08:40

Enrique Padrós: Estamos vencendo o esquecimento da ditadura, mas não a impunidade

Por
Sul 21
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Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Felipe Prestes

Enrique Padrós estuda o tema das ditaduras de segurança nacional do Cone Sul há mais de quinze anos e é um militante dos Direitos Humanos. Professor de História Contemporânea da UFRGS, foi um dos organizadores da série de quatro livros “A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): História e Memória”, em parceria entre a universidade e a Assembleia Legislativa, que traz dezenas de depoimentos e artigos. Ainda no início de 2012, lançará em livro o conteúdo do seminário “Memória, Verdade e Justiça: as marcas das ditaduras do Cone Sul”, do qual foi um dos organizadores no ano passado, com a presença de nomes como Estela de Carlotto, presidenta das Abuelas de La Plaza de Mayo. A versão virtual do livro foi lançada na semana passada e já pode ser acessada no site da Assembleia Legislativa.

No início do mês de janeiro, Padrós recebeu o Sul21 na UFRGS para uma longa conversa sobre Comissão da Verdade, homenagens a próceres de Ditadura como Golbery e Castelo Branco, Lei de Acesso à Informação, entre outros temas. Ele afirmou que a criação da Comissão da Verdade é um grande avanço, em relação ao pouco que fora feito anteriormente, mas defendeu a necessidade de Justiça para os responsáveis pelo terrorismo de Estado. “Acho que a batalha contra o esquecimento estamos vencendo. Não estamos conseguindo vencer a batalha contra a impunidade”.

Sul21 – Quais são as tuas expectativas em relação à Comissão da Verdade?

Enrique Padrós – Ao final do Governo Lula, quando se falava na Comissão da Verdade, boa parte daqueles que trabalhavam com essa temática eram muito reticentes, pela trajetória do governo nestas questões: muito acanhado, pra não dizer que, muitas vezes, pouco interessado ou talvez fechado com as posturas e pressões dos militares. No início de 2011, fizemos uma atividade na UFRGS e convidamos a Estela De Carlotto, presidenta das Abuelas de La Plaza de Mayo. Com toda a sua experiência e trajetória, ela se deu conta de que havia muita cobrança sobre o governo que recém tinha iniciado e, ao falar sobre as expectativas quanto à Comissão da Verdade, disse uma frase que me marcou muito: “Vocês têm razões para duvidar um pouco do alcance que possa ter a Comissão, mas o mais importante é que, independente de tentativas de manipular ou não o debate, só falar sobre ela e instalá-la já vai gerar uma dinâmica que por si só vai trazer resultados”. Esta afirmação casava com outras que vinham dos sobreviventes. Todos eles desconfiavam, pois não havia uma avaliação muito positiva do Governo Lula, mas diziam que conheciam a Dilma o suficiente para acreditar nela em relação a estas questões. Passado um ano de tudo isso, me parece que o governo deu sinais de algumas iniciativas importantes, que ainda não resolvem quase nada, mas mostram muito mais do que havia sido feito até agora, desde os governos pós-ditadura até 2010.

“A Comissão está sendo chamada pelo governo, mas tem que ter autonomia em relação a ele”

Sul21 – Quanto à Comissão em si, quais as expectativas?

Enrique Padrós – Acho que a gente ainda não tem muito claro qual será a sua autonomia e que expectativa podemos ter. Nós não temos sequer essa comissão nomeada. O mais importante, entretanto, são menos os nomes e mais a infraestrutura que vai se colocar. A gente espera que nessa comissão não tenhamos nenhum militar e que militares não tenham poder de veto. Dentro das restrições que ela vai sofrer, porque o prazo é muito curto (serão dois anos de trabalho) e a comissão vai ter que se preocupar com um período muito extenso, o foco tem que ser o período da ditadura, de 1964 a 1985. Talvez a própria Dilma, diante dos trabalhos, quando iniciarem, se dê conta — e ela sabe — que esse prazo ainda é muito pequeno diante do tamanho das tarefas que devem ser feitas. Se as pessoas indicadas tiverem experiência, isto, sem dúvida alguma, vai ajudar. Pessoas que tenham trajetória para que, em primeiro lugar, não se assustem com as pressões, que serão muito grandes. Em segundo lugar, que entendam a leitura de documentos, que compreendam os testemunhos e, acima de tudo, que sejam muito firmes em relação ao próprio governo. A Comissão está sendo chamada pelo governo, mas tem que ter autonomia em relação a ele.

Comissão deve pedir imediatamente os documentos militares, defende Padrós | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Que resultados a Comissão da Verdade precisa obter para ser exitosa? Já temos muitas pessoas que pesquisam sobre o tema, há o GT Araguaia e outras iniciativas governamentais também, o que a Comissão da Verdade pode fazer além do que já é feito?

Enrique Padrós – Acima de tudo, tem que produzir informação e tornar público informação. Não estamos falando em verdade absoluta, mas significa tornar público o que foi sonegado, o que foi escondido e esclarecer tudo o que foi tergiversado. Os notáveis têm que ter uma grande equipe e, por outro lado, comissões que já estão se multiplicando em todo o país, para que a Comissão da Verdade atinja todos os lugares onde exista alguma informação para ser procurada. O passo inicial, a partir de tudo o que já foi acumulado pelas organizações de Direitos Humanos e pelo próprio governo, é a Comissão chamar pessoas — e não significa chamar só as vítimas. Como nunca houve aplicação de mecanismos de Justiça, as pessoas nunca deram depoimento, a não ser para pedidos de indenização. Em segundo lugar, é chamar todos os funcionários públicos envolvidos em denúncias de terem participado direta ou indiretamente de repressão estatal. Agora, não há nenhum mecanismo que obrigue estas pessoas a depor. É fundamental tornar público quem são estas pessoas e dizer se elas se negam participar.

Sul21 – O que diferencia a Comissão da Verdade, então, do que já vem sendo feito pela Academia, por organizações? É um grande esforço, uma grande estrutura, e também a publicidade disto?

Enrique Padrós – Sem dúvida. Finalmente o Governo entrou. O trabalho da Academia também é recente, de cinco anos para cá, e muito mais restrito, porque produz um tipo de conhecimento preso aos limites que a Ciência nos impõe. Então, se trata de um esforço que é para ser muito maior do que até hoje foi feito pelos pequenos grupos de Direitos Humanos, pela produção acadêmica, ou pelo esforço de alguns jornalistas. Esta Comissão tem acesso aos arquivos repressivos, esta documentação que até hoje se questiona onde está. Boa parte já está vindo a público, mas ainda está faltando a documentação principal: a do Exército. A Comissão, em tese, vai poder acessá-la. Ela deve pedir imediatamente à presidenta e aos ministros estes documentos militares.

Sul21 – Este será o grande desafio da Comissão?

Enrique Padrós – Este é o grande desafio: qual o limite do acesso à informação? Em tese, o Governo vai facilitar o acesso a todo o material que possui. A questão é saber como isto vai funcionar. A Comissão vai ter que ter acesso a espaços onde se especula que há informação, como as sedes dos ministérios. Assim como também tem que haver pressão do governo para que funcionários públicos se apresentem para depor. Quanto aos resultados da Comissão da Verdade para serem positivos, nós, enquanto sociedade civil, estamos buscando informações sobre os desaparecidos: onde estão os cadáveres e, se não aparecerem, é preciso dizer o que aconteceu que não podem aparecer. Muitas informações também sobre a lógica de funcionamento do sistema repressivo, o alcance deste sistema, que não só torturou e prendeu, mas vigiou, ameaçou, perseguiu dentro das instituições. Outro nó dentro deste trabalho são as implicações do Brasil dentro da conexão repressiva internacional. Os outros países precisam das informações que suspeitam que o Brasil tem para resolver suas questões. Além do que, queremos, sim, saber quem são os torturadores. E depois vem outra etapa, que não depende da Comissão da Verdade: socializar estas informações. Se o trabalho se esgotar em meia dúzia de grandes relatórios e ficar fechado na burocracia de Brasília, ou no ambiente intelectual, terá sido um trabalho inútil.

“Por que punir o traficante, quando pessoas que fizeram o que fizeram não pagaram por estes crimes? Aqui temos uma questão de valores que não foi bem resolvida”

Sul21 – Queria que tu falasses do caráter pedagógico destas informações. Qual a importância de disseminar estas informações?

Enrique Padrós – O desconhecimento e a valorização deste passado implicam em formação insuficiente em termos políticos, de cidadania, de ética, de Direitos Humanos das novas gerações. Desconhecer tudo isto significa a ausência de conexão entre gerações. Há uma história dos pais e dos avós que foi cortada dos filhos e dos netos. Podemos ter no futuro alguns momentos de tensão e esta experiência pode fazer falta. Por outro lado, no dia-a-dia das nossas relações temos uma série de componentes que mostra o legado de uma experiência traumática mal resolvida: a banalização da violência, da tortura; o medo que se tem até hoje da polícia; a falta de respeito que alguns setores têm pelas Forças Armadas; a crença de que a impunidade se sobrepõe à sociedade. Por que punir o traficante, quando pessoas que fizeram o que fizeram não pagaram por estes crimes? Aqui temos uma questão de valores que não foi bem resolvida. Aqueles que executaram terrorismo de Estado não só não são punidos, como são até reconhecidos.

"Escola com o nome Costa e Silva é um absurdo" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Isto se reflete muito nas polícias atualmente.

Enrique Padrós – A polícia nunca sofreu um processo geral de descontaminação deste comportamento. Como se nós tivéssemos uma espécie de continuidade em que aquilo que foi medido como eficiência para enfrentar determinado tipo de inimigo fosse permanentemente aprofundado, qualificado e mantido. Há tentativas, mas pouco se fez em relação a isto, já que a cada tanto temos uma espécie de reforço destas atitudes repressivas. Outro detalhe desta questão pedagógica tem a ver com as homenagens em praça pública, nomes de ruas.

Sul21 – Ia justamente perguntar sobre a polêmica gerada recentemente em Porto Alegre pelo projeto (que não foi aprovado) de mudar o nome da Avenida Castelo Branco para Avenida da Legalidade.

Enrique Padrós – As pessoas demoraram para se dar conta disto. Nós temos Escola Costa e Silva. É um absurdo alguém estudar em uma escola que tem nome de ditador. Um ambiente democrático, de cidadania, de formação não pode ter isto. A entrada principal de Porto Alegre é Avenida Castelo Branco. É um tema polêmico: o que se faz com uma marca concreta da repressão? Há duas grandes vertentes, que têm suas razões. O que não dá é deixar Avenida Castelo Branco. Ou tira, ou então diz Ditador Castelo Branco. Temos que adjetivar corretamente estas informações, porque senão ficamos perdidos num emaranhado de informação, ao qual a maior parte da população não tem acesso, em termos de qualificação desta informação.

Sul21 – Muita gente para rebater utilizou nomes históricos mais antigos como Getúlio Vargas, que também foi ditador, ou Dom Pedro II, pela escravidão. Como se explica a diferença entre estes nomes e Castelo Branco?

Enrique Padrós – O que está em questão hoje é uma ferida aberta, que não cicatriza. Tem a ver com uma geração que ainda está viva e que reclama Justiça. Isto não foi resolvido historicamente. Por isto é que a gente não aceita uma comissão que discuta também a ditadura do Getúlio. Se quiserem fazer, que se faça outra comissão. Em relação aos logradouros públicos, se a questão é a qualificação dos nomes ou a retirada, esta é uma discussão que tem que ser feita, e é urgente que se faça. Não sei se me incomodo com uma praça ou uma rua com estes nomes. Agora, uma escola com um nome desses me parece profundamente deprimente e contraditória com o espaço escolar.

“O Palácio da Polícia deveria ser tomado e tombado imediatamente. É lá que os perseguidos eram levados e torturados”

Sul21 – A Argentina transformou muitos lugares que eram centros de tortura em memoriais ou museus. Aqui em Porto Alegre temos muito pouca coisa. Inaugurou-se um monumento no ano passado (em homenagem a Manoel Raimundo Soares, morto pelo regime militar), mas um local de tortura como o Palácio da Polícia, por exemplo, não tem nada. Como tu vês esta questão?

Enrique Padrós – Temos que entender que Porto Alegre teve volume menor de incidência política que São Paulo ou Rio de Janeiro. Isto não significa dizer que o RS não foi atingido pela repressão, mas talvez não tenhamos lugares tão emblemáticos. Aqui realmente, como tu citaste, é o Palácio da Polícia, que deveria ser tomado e tombado imediatamente. É lá no terceiro andar que aconteciam as coisas, inegavelmente. É lá que aconteceu a Operação Condor e que os perseguidos daqui eram levados, torturados. Nós temos a Ilha do Presídio. Começam as visitações agora com a travessia de barco. Quem administra neste momento é o município de Guaíba. Por melhor intencionadas que estejam as pessoas que estão neste projeto, é necessária uma intervenção federal, até com o município de Guaíba, não tem problema nenhum nisto. O prédio está praticamente intacto. Este é um espaço típico de tombamento. É preciso proteção, que as estruturas não sejam destruídas e criar uma estrutura de visitação com muito cuidado.

"Em outros países, homenagem a Golbery seria vista como apologia ao terrorismo de Estado" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – E com informações, como um museu.

Enrique Padrós – Este espaço tem que estar nas mãos de especialistas, tem que se fazer um trabalho arqueológico, histórico, com cuidado administrativo. Entendo que nestes trabalhos de políticas de memória, não é possível que se faça sem a participação dos movimentos sociais. Ainda em relação aos lugares do RS, temos que fazer um relevamento de todos os lugares de perseguição política no Estado. Não basta só olhar para Porto Alegre. Depois do AI-5, a violência tem maior dimensão no RJ e SP. No RS, a violência em 1964 talvez seja muito maior que em outros estados, pelo fato de ser um estado com bases trabalhistas. Tudo isto faz com que tenhamos repressão onde predominava o PTB. Tu caminhas pelo Interior e em tudo o que é lugar te contam histórias. Geralmente, as pessoas eram levadas para a delegacia e sofriam violência. Rio Grande tem um caso de um navio que serviu para tortura. Neste navio, sindicalistas e portuários ficavam dias desaparecidos. Também se conta um mito de que se jogavam pessoas ao mar deste navio, fato que até hoje não se confirma, mas que faz parte do imaginário dos mais velhos e de descendentes.

Sul21 – E a Prefeitura de Rio Grande está fazendo uma homenagem a Golbery.

Enrique Padrós – Na contramão da história, até de forma antiética. Se tivéssemos a atuação da Justiça seria um crime, mas não é, porque a Justiça aqui não atua. Então, fazer uma homenagem ao Golbery é uma questão política. Tu agrides, afrontas a população, mas é uma questão política. Em outros países, se o Golbery foi o grande intelectual da ditadura, isto seria visto como apologia ao terrorismo de Estado. Esta homenagem mostra o grau de despolitização de boa parte da sociedade brasileira. Isto teria que gerar uma repulsa generalizada, e não aconteceu. Em Rio Grande, inclusive, ficou restrita a alguns setores da universidade, sindicais e da sociedade civil, mas ao ponto de que esta homenagem ainda está colocada como possibilidade concreta.

Sul21 – O que a Lei de Acesso à Informação pode permitir aos historiadores em termos de pesquisa?

Enrique Padrós – É muito importante, porque acaba com o segredo perpétuo dos documentos. Significa, em primeiro lugar, um Estado mais transparente para toda a sociedade. Para os historiadores é a pesquisa sem barreiras. Tudo aquilo que a gente avançou até hoje no tema ditadura se fez com muito pouca documentação. Mas a gente não pode cair no romantismo de achar que todas as respostas estão nos documentos. Documentos oficiais são enviesados, sobretudo documentos de regimes repressivos. A gente tem que ter muito cuidado em relação a isto. Em segundo lugar, é muito difícil encontrar um documento que mostre que o general fulano de tal dá uma ordem para um subalterno matar alguém. Mesmo no Arquivo do Terror do Paraguai, poucos são os documentos em que há uma situação explícita. E há códigos também, por isto é que tem que ser gente que conheça de documentos para participar destas comissões. O acesso aos documentos é de extrema importância porque ajuda a compreender a dinâmica interna, as redes, os contatos, como uma informação começa e se irradia.

África do Sul teve um caso emblemático de Comissão da Verdade | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Queria que tu falasses sinteticamente sobre o trabalho de comissões da verdade em outros países, que resultados tiveram.

Enrique Padrós – Na Argentina, ocorre logo após a ditadura. Com informações diretamente das vítimas, familiares e exilados que voltam. Com isto houve o julgamento dos militares. Em sete ou oito meses, se chegou ao reconhecimento de nove mil desaparecidos e identificação de toda a metodologia repressiva. Foi o produzido o primeiro relatório “Nunca Mais”. Depois, tentativas golpistas militares levam a um recuo. No Governo Menem, houve indulto que estavam presos. Tudo isto só foi retomado um pouco antes da ascensão dos Kirchner. O Uruguai teve uma Comissão Para a Paz, no ano 2000, para tentar dar um basta nos questionamentos da sociedade.

Sul21 – Esta é uma situação mais parecida com a do Brasil.

Enrique Padrós – Sim. O que esta comissão procurava era informação sobre os mortos e desaparecidos e respostas sobre o sequestro de crianças. Alguns soldados rasos se apresentaram e deram informações sobre o que teria ocorrido. Quando o informe final veio a público dizia que muitos dos casos de mortes tinham ocorrido por excesso na tortura e que os cadáveres desaparecidos teriam sido enterrados nos quartéis, mas depois retirados, queimados e as cinzas jogadas no Rio da Prata. Os familiares nunca aceitaram. Anos depois, os governos da Frente Ampla desencadeiam ações para obter informações e encontram cadáveres dentro dos quartéis. Estes restos humanos mostravam que não tinham sido vítimas de excesso de tortura, mas que havia uma política sistemática de eliminação dos perseguidos políticos. Um caso emblemático é o da África do Sul, que, evidentemente, envolve outra situação, o sistema do Apartheid. Diante do grande número de pessoas reprimidas pelo sistema, se confirmou a não-punição dos repressores, mas para receber anistia era preciso pedi-la e contar tudo o que sabia. Vinte mil repressores deram depoimentos públicos. Mostra uma possibilidade de reconciliação muito particular, que é colocada como modelo importante, mas há focos de tensão até hoje, porque o Apartheid social continua.

“O Brasil é um dos únicos países em que o presidente não pediu perdão, e isto é um débito do Lula”

As comissões têm resultados diferentes. Muitas terminam com proposições de mecanismos reparatórios. Um deles é a indenização, que é como o Brasil achou que solucionaria seus problemas. Pagava para as pessoas e com isto as silenciava, uma leitura perversa. Outra forma reparatória é a promoção da memória pelo Estado, com placas, monumentos, livros. Finalmente, tem a etapa da conciliação, que é bem mais complicada. O Brasil é um dos únicos países em que o presidente não pediu perdão, e isto é um débito do Lula. É muito mais difícil para a Dilma, porque sempre vão dizer que ela é ex-guerrilheira e fala por interesse próprio. No Chile, o presidente Lagos pediu perdão. No Uruguai, espera-se este gesto agora. Na Argentina, o ministro militar do Governo Alfonsín pediu perdão. Aqui no Brasil, nem o presidente, nem os militares pediram perdão. Dizem para as vítimas e familiares que eles são muito grossos, que não perdoam. Perdoar exige uma condição: alguém tem que pedir perdão. Quem tem pedido perdão em nome do Estado é o Paulo Abrão, nas sessões da Caravana da Anistia. Isto fala bem da pessoa dele, mas não basta, porque ele não é tão conhecido.

Sul21 – Dilma poderia instar o Exército a fazer isto.

Enrique Padrós – Em tese, ela é chefe das Forças Armadas, poderia… Ou dizer para seu ministro de Justiça, ou de Direitos Humanos. Agora, também teríamos que ter o pedido de perdão das Forças Armadas, coisa que elas de maneira nenhuma imaginam fazer, pelo menos nos próximos quatro séculos. Há outro problema: tudo é perdoável? Qual o limite do perdão? Se o perdão vem acompanhado pela atuação da Justiça, ela dá o limite. Perdoar sem Justiça pode confundir as pessoas.

Sul21 – Pode parecer impunidade?

Enrique Padrós – Não, é que pode parecer que tudo é perdoável então. A gente perdoa o Holocausto? A gente perdoa os voos da morte? É perdoável o que foi feito com o Minhoca (Carlos Alberto Tejera de Ré), que para aumentar a eficiência do choque elétrico colocaram bombril na sua garganta, para que isto arrebente o cara por dentro?  Esta é uma resposta muito difícil, se perdoar significa esquecimento e esquecimento onde a Justiça não atua significa a possibilidade de que isto ocorra no futuro. A gente tem que ter muito cuidado, porque as tentativas compensatórias e reconciliatórias podem ser mais um mecanismo de amorcegar estas questões. Pensaram que fariam isto com as indenizações. Acho que a batalha contra o esquecimento estamos vencendo. Não estamos conseguindo vencer a batalha contra a impunidade.


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