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17 de dezembro de 2011
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19:04

Christopher Hitchens, a morte do radical esclarecido

Por
Sul 21
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Christopher Hitchens (1949-2011) | Foto: Flickr

Milton Ribeiro

Nesta sexta-feira (16), a Vanity Fair deu a notícia: “Christopher Hitchens — crítico incomparável, mestre da retórica e destemido bon vivant — morreu hoje aos 62 anos”. As três características atribuídas pela revista onde trabalhava são justas. Hitchens foi um crítico prolífico, um provocador nato que, apesar dos muitos amigos, apreciava não apenas o combate, a crítica ácida, mas a réplica. Também era um mestre na arte da escrita, da argumentação surpreendente, da adjetivação irônica e desconcertante. Para completar, gostava de beber, fumar, conversar e mais: era um orador e debatedor de raro talento.

Hitch, como era chamado pelos amigos, morreu de uma pneumonia derivada do câncer no esôfago que o devastou nos últimos anos. O escritor descobriu a doença logo após a publicação de Hitch-22, livro de memórias onde documentou sua nada desprezível carreira. Jornalista de primeira linha, Hitchens viveu in loco todos os episódios políticos internacionais dos últimos 40 anos. O que líamos no jornais era vivido por ele. Guerra Fria, Vietnã, Chile, Revolução dos Cravos em Portugal no ano de 1975, Palestina durante a Intifada, Tchecoslováquia, Belfast, Buenos Aires em 1977, guerra civil na Uganda, etc. Na década de 70, declarava-se trotskista. Produziu muito, além de 16 livros há incontáveis e notáveis artigos seus, mas ele era mais famoso por suas posições ateístas — fonte e centro de sua obra — e por fumar e beber muito.

Hitchens em foto deste ano | Foto: Flickr

Nos últimos tempos, já sem voz e cabelo, discutia tanto os assuntos seculares quanto documentava sua saúde declinante. Ridicularizou, é claro, aqueles que rezavam por ele. “Meu principal consolo neste ano de viver morrendo tem sido a presença de amigos”, escreveu na edição publicada em junho de 2011. Salman Rushdie, apoiado por Hitchens quando o aiatolá Khomeini pronunciou uma sentença de morte por ter insultado o Islã no livro Os Versos Satânicos, homenageou o escritor no Twitter. “Adeus, meu amigo querido. Uma grande voz se cala. Um grande coração para. Christopher Hitchens, 13 de abril de 1949, 15 de dezembro de 2011”, escreveu.

Graydon Carter, que trouxe Hitchens imediatamente após tornar-se editor da Vanity Fair, em 1992, afirmou que o amigo era um “homem de apetite insaciável – para cigarros, para o scotch, para a boa escrita, e acima de tudo, para conversas”.  O vice-primeiro-ministro britânico, Nick Clegg, que trabalhou para Hitchens como estagiário, afirmou que o escritor era “aquilo que um grande ensaísta deve ser: irritante, brilhante, altamente provocador e intensamente sério”.

O radical, sempre afastado dos moderados | Foto: Flickr

Talvez o esclarecimento fundamental para caracterizar quem foi Christopher Hitchens, seja dizer que ele sempre esteve longe de ser um moderado. A elegância de sua argumentação e frases sempre esteve a serviço da imoderação, sempre foi potencializada para atacar e afirmar suas verdades da forma mais exata e, dependendo do caso, agressiva. Seu texto costumava englobar as objeções que poderiam sugir, para que estas fossem amassadas previamente, mesmo sem interlocutor visível. Se estivesse visível, pobre dele. A agilidade mental, a inesgotável erudição e uma rara memória costumavam fazer picadinho de quem o enfrentasse.  Aliás, morreu cedo também pela absoluta imoderação com que consumia cigarros e scotch.

Idelber Avelar, em excelente texto referido pelo Sul21 em sua coluna de blogs, citou com razão Deus não é Grande como o melhor livro produzido pela turma do neo-ateísmo, capitaneada por Richard Dawkins e que tem seus principais nomes em Dawkins, Hitchens, Daniel Dennett e Sam Harris. Mas, ainda segundo Avelar, há um livro menor, de câmara, que diz mais e é mais amplo a respeito das ideias do autor: trata-se de Cartas a um jovem contestador. Inspirado pelas célebres Cartas a um jovem poeta, onde Rainer Maria Rilke explica didaticamente suas opiniões literárias e a posição da poesia em sua vida e na dos poetas em geral, Hitchens estabelece rumos para um intelectual que passou por 1968, pela queda do muro, chegando à atual financeirização do mundo e seus fundamentalismos. Como Rilke, que dava conselhos a um jovem poeta iniciante, Hitchens explica e orienta um jovem aluno sobre como ser um verdadeiro radical.

O “ateísta praticante” — com dizem alguns — Hitchens preferia ser descrito como um humanista, um antiteísta crente nos valores filosóficos do Iluminismo. Para Hitchens, o conceito de Deus como ser supremo é uma crença totalitária que pulveriza a liberdade individual. Ele defendia a investigação científica e a livre expressão para substituirem a religião como meio de ensinar ética e definir a civilização.

O inseparável cigarro | Foto: Flickr

Os alvos preferidos de suas argumentações e humor eram Deus (ou a noção de Deus), o Islã e Madre Teresa de Calcutá. Era profundo admirador de George Orwell — de quem teria herdado a capacidade de encarar fatos desagradáveis — , de Thomas Payne e Thomas Jefferson. Em seus artigos mais recentes, o papa Bento XVI era figura bastante assídua. Hitchens o acusava de ter encoberto escândalos sexuais na Igreja Católica quando era cardeal. De brincadeira, planejou, ao lado de Richard Dawkins, uma emboscada para prender o Papa quando este passasse pela Inglaterra, em setembro de 2010… Bem coerente com aquilo que pensava nos anos 70: desejava prender Henry Kissinger pelos bombardeios norte-americanos no Camboja.

Tudo isso pode ser curioso, engraçado ou circunstancial, porém as teses defendidas em seus 16 livros,  principalmente aquelas sobre “superioridade moral do ateu” em oposição à “irracionalidade” dos crentes e sua defesa do radicalismo são coisas que provavelmente ficarão, assim como suas argumentações acerca da “docilidade e resignação cristãs” versus a “arrogância atéia”.

Um adversário do Islã | Foto: Flickr

Polêmico, foi contestado ao levar suas ideias para o Islã. Como defendia a liberdade de expressão e a investigação científica como substitutos éticos e civilizatórios para a religião, Hitchens, após os ataques da Al-Qaeda aos Estados Unidos em 2001, posicionou-se a favor da política intervencionista contra o que chamou de estados “islamofascistas”. Recusava, porém, ser rotulado como conservador e provocava seus críticos acusando-os de serem “stalinistas sem remorsos”. Tal opinião, altamente discutível em várias trincheiras, apenas reforça a tese de que Hitchens era o grande polemista de nosso tempo. Após a Guerra do Iraque, seus críticos voltaram a chamá-lo de “neoconservador”. Hitchens, entretanto, recusava esse rótulo, rebatendo com contepudos do próprio Islã.

Voltamos a Idelber Avelar para recordar a melhor saudação que lemos para a morte de Christopher Hitchens: “Descansa em paz, velho trotsko. O mundo amanheceu bem menos brilhante sem você”. Idelber apenas esqueceu de lhe propor um brinde.

.oOo.

Abaixo, colocamos um gentil debate entre — da esquerda para a direita — Christopher Hitchens, Daniel Dennett, Richard Dawkins e Sam Harris. É um dos poucos que está legendado em português. A franqueza que Hitchens é total. Ele diz que não deseja o improvável fim das religiões, pois gosta das discussões, gosta de ver seu grupo com argumentos cada vez mais refinados e outro lado cada vez mais exposto e, fundamentalmente, que é impossível que tal refinamento ocorra sem adversários. O homem amava o debate… Para ver as legendas, clique em “CC” na parte inferior do vídeo e depois em “Portuguese — BRASIL”. Há muito mais no YouTube, só que sem legendas. Para quem entende inglês, sugiro também a série de 5 vídeos que começa aqui e onde Hitchens e Stephen Fry batem (muito) na bondade do mundo católico.

http://youtu.be/0xO8mTLEnik


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