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17 de novembro de 2011
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19:23

Audiência mostra os muitos lados do conflito na Cidade Baixa

Por
Sul 21
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Proprietário de casa noturna reclama das agruras para obtenção de alvará | Foto: Cristine Rochol/PMPA

Felipe Prestes

– Estou vendo coisas que nunca tinha visto na vida.

Francisca Ramos, 86 anos, mora na Rua Joaquim Nabuco, na Cidade Baixa, próximo a Travessa dos Venezianos. Um dos mais charmosos logradouros de Porto Alegre, a travessa recentemente passou a abrigar uma roda de samba aos domingos que começa no final de tarde e se estende pela noite. “Não vou nem mais à missa no domingo, porque depois das 19h não dá para sair de casa”, explicou a senhora.

Marcos Freitas, cerca de 30 anos, professor de História, mora na mesma rua, em uma esquina que ferve à noite, bem perto do Bar Opinião e de uma dezena de pequenos bares, em que as pessoas se acomodam até no meio da rua. Marcos gosta de viver ali, gosta de ir aos bares e muitas vezes já bebeu cerveja em locais mal-vistos por vizinhos, que servem bebida em copos de plástico, permitindo o consumo no meio da rua.

Francisca e Marcos estavam na plateia heterogênea da audiência que reuniu, na noite desta quarta (16), na paróquia da Igreja Sagrada Família, centenas de moradores, empresários, músicos, vereadores, o prefeito José Fortunati, secretários municipais e representantes da BM. Marcos saiu do sério quando um senhor parabenizou as autoridades presentes e pediu, “em nome do bairro”, mais ações como a que interditou 22 bares no último final de semana.

– Não me representa. Moro na Cidade Baixa. Fala por ti – gritou o professor de História, sendo imitado por outro jovem.

A audiência foi marcada pelo acirramento. Vaias e aplausos efusivos a cada manifestação, seja de moradores, de empresários, ou de músicos. O conflito foi tratado por muitos durante a audiência como “moradores x empresários”, mas os moradores da Cidade Baixa que gostam de viver ali justamente pelos bares saíram da toca após a ação do final de semana, mostrando que não eram poucos. A diversidade da audiência mostrou a complexidade do conflito.

Jovens mulheres explicaram à reportagem que consideram o bairro o mais seguro para andar à noite, justamente pelo movimento, enquanto muitos moradores consideram a presença de pessoas bebendo na rua até altas horas um dos motivos maiores de insegurança. Também é verdade que nem todos os moradores que querem mais sossego são contra todos os bares, mas apenas àqueles mais ruidosos.

– Este bar a gente deve apoiar – dizia uma mulher em tom professoral, enquanto muitos de seus vizinhos vaiavam um proprietário que falava ao microfone.

“Querem fazer entender como se todos os moradores estivessem a favor das ações da Smic e da BM. A Cidade Baixa é um espaço de muita gente diferente: gays, lésbicas, gente do hip hop, do rock n’ roll, é claro que isto choca outras pessoas. Há um conflito de gerações. Também os bares não são uma coisa só, há os que fazem muito barulho, e os que não incomodam nada”, afirmou o professor de História Marcos Freitas.

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Fortunati: "Cidade Baixa historicamente congrega bares, restaurantes e residências" | Foto: Cristine Rochol/PMPA

Prefeito acredita na conciliação entre atividade noturna e moradores descontentes

Diante de todos os lados do conflito, o prefeito José Fortunati discursou em tom conciliador. Ele afirmou que é possível haver convivência entre a boemia e os moradores. O prefeito destacou que a Cidade Baixa já é considerada oficialmente um bairro comercial e residencial desde a década de 1960. “É um bairro que historicamente congrega bares, restaurantes e residências. Eu costumo indicar a Cidade Baixa como um dos pontos básicos de turismo de Porto Alegre”, afirmou o prefeito.

Fortunati defendeu as ações afirmando que ele mesmo só autorizou a interdição dos bares e casas noturnas depois de se certificar que elas tinham tido tempo para se defender. “As ações da última semana foram fruto de um longo processo”, disse.

O prefeito propôs a criação de um grupo de trabalho envolvendo vereadores, Prefeitura, moradores e empresários. Um grupo de músicos, uma das categorias de trabalhadores (nem sempre vista como tal) que mais sofre com o fechamento de estabelecimentos, reivindicou ao final da reunião e conseguiu também ser representado no GT. Um dos entraves que os moradores buscavam resolver ao final da reunião era que a comissão de moradores estava formada apenas por aqueles que eram a favor da interdição dos bares.

José Fortunati afirmou que o grupo de trabalho deve buscar primeiro adequar modos de conduta. “Há uma forte disposição dos bares pelo entendimento, e os moradores do bairro que conheço dizem que não são contra os bares, mas que é preciso organizá-los”. O prefeito disse que um segundo passo é ver se são necessárias mudanças na legislação que auxiliem tanto aos moradores quanto aos empresários.

Em rápida conversa com o Sul21, Fortunati não descartou que as exigências para um alvará de casa noturna – hoje, quase nenhuma casa tem – sejam flexibilizadas. O prefeito destacou, porém, que muitas vezes os proprietários reclamam da Prefeitura sem ter, de fato, buscado se adequar às normas.

Fortunati também afirmou que é possível alterar a legislação para que os bares possam funcionar depois da meia-noite. “Eu não gosto de ter que sair de um bar à meia-noite, mas enquanto a legislação determinar a Prefeitura não pode fazer de conta que a lei não existe”. E esclareceu que nem todos os bares foram fechados por causa do horário. “Foi encontrado até fraude em alvará”, disse.

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Centenas de moradores compareceram à audiência | Foto: Cristine Rochol/PMPA

Bares populares ficam isolados

José Fortunati afirmou também que audiências como a desta quarta (16) devem servir para que se busque um mínimo de entendimento, não para agudizar ainda mais o conflito. Ao final do ato, já era possível perceber diálogo até entre uma idosa e um jovem dono de casa noturna. E eles tinham um consenso: são contra os bares que servem bebida a preços populares em copos de plástico que os clientes levam para a rua.

Copos jogados no chão e a aglomeração de pessoas na rua são considerados um dos principais problemas do bairro. “Separar o joio do trigo”, ou seja, separar os bares que provocam isto dos demais foi uma das expressões mais usadas na audiência.

Élio da Motta, dono do Cachorro do Élio, foi com a mulher Sônia e com a filha, que não quis se identificar. Deixando a audiência, eles afirmaram que se passassem a servir bebidas em copos de vidro repentinamente, o problema só pioraria, porque os clientes de seu bar sairiam para a rua com os copos de vidro. “Colocar as pessoas para dentro, reeducar não é da noite para o dia. Não deu tempo para fazer isto, porque a polícia chegou antes e fechou o bar”, afirmou Sônia.

Élio estimou que o bar não pode fechar à meia-noite. “Não tem como sobreviver fechando à meia-noite, reduziria 80% do faturamento”. Sônia sugeriu que pode haver um tratamento diferenciado das autoridades com os bares. “Porque só alguns bares fecharam? Mas também não iria adiantar fechar tudo. Qual é a cidade que não tem vida noturna? Porto Alegre vai se tornar uma província, vai retroceder séculos”.


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