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10 de setembro de 2011
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19:13

Literatura na internet: a egotrip do Cardosonline, um século depois

Por
Sul 21
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Literatura na internet: a egotrip do Cardosonline, um século depois
Literatura na internet: a egotrip do Cardosonline, um século depois
Reprodução
Publicação por e-mail, nascida na Faculdade de Comunicação da UFRGS e que inaugurou uma forma de escrita na internet, terminou em 11 de setembro de 2001 | Foto: Reprodução

Igor Natusch

O mundo, tanto online quanto offline, era bastante diferente em 1998. Ferramentas hoje comuns para disseminação de conteúdo, como blogs, Tumblr, Flickr, Twitter e Facebook, não existiam ou não tinham sido sequer imaginadas a essa altura. Foi nesse cenário que um grupo de estudantes universitários de Porto Alegre criou o Cardosonline (COL), um mail-zine (fanzine distribuído via e-mail) que durou até 2001 e, dez anos depois de sua última edição (ou um século, dentro da contagem proposta por seus criadores), ainda influencia decisivamente o modo como a produção cultural brasileira se relaciona com a Internet. “Acho que ele foi, sim, percursor de um certo estilo de escrever na internet, que depois se disseminou pelos blogs, sites e no jornalismo cultural”, diz o escritor e tradutor Daniel Galera, um dos criadores do COL, em entrevista ao Sul21.

A ideia, vista com os olhos de 2011, parece muito simples. Dois e-mails semanais, enviados para os assinantes de uma lista, com poesias, contos e pequenos ensaios, em texto plano, sem imagens ou requintes de formatação. No período em que esteve ativo, porém, o Cardosonline causou grande impacto. Segundo as estimativas dos participantes, foram quase 10 mil páginas de conteúdo em três anos, produzidas por uma equipe final de oito colaboradores fixos e uma série de participantes eventuais. Além de André Czarnobai (o Cardoso propriamente dito) e Daniel Galera, os responsáveis pelo COL foram Marcelo Träsel, Guilherme Pilla, Guilherme Caon, Clarah Averbuck, Daniel Pellizzari (ou Mojo) e Hermano Freitas.

“Egotrip” tornou-se marca registrada do COL

Tudo começou com um objetivo pouco glamouroso, mas bastante justificável: espantar o tédio durante uma greve que paralisou várias universidades federais no Brasil, em 1998. Cardoso, na época estudante de jornalismo da UFRGS, teve a ideia de enviar e-mails a alguns amigos, relatando algumas de suas desventuras no período.

“Eram e-mails coletivos contendo poemas, causos pessoais, comentário sobre festas e filmes, brincadeiras com os colegas”, relembra Daniel Galera, colega de faculdade de Cardoso à época. “Eu era um dos recipientes, e percebi que as mensagens lembravam o conteúdo de certos sites de resenha cultural que eu gostava de ler, em especial o Pitchfork”. As principais semelhanças estavam, segundo Galera, no estilo pessoal e livre de escrever, bem como no uso permanente da primeira pessoa e de análises subjetivas. “Hoje em dia, isso é o estilo padrão de escrever na internet, mas naquela época, ainda era uma novidade”.

Foi Daniel Galera quem teve a ideia de transformar os e-mails de Cardoso em um novo tipo de fanzine. “Galera teve o tino empreendedorístico”, comenta o jornalista Hermano Freitas, outro dos grandes responsáveis pelo Cardosonline. A ideia, explica ele, era usar a plataforma de e-mail “sem imagem, para que nenhuma internet lenta, na época ainda discada, tivesse dificuldade de receber”.

Rapidamente, surgiu um time de colaboradores produzindo conteúdo duas vezes por semana, dentro de um estilo bastante particular ao qual o COL batizou como “egotrip”: textos de linguagem bastante livre e forte viés subjetivo. Um estilo que Hermano Freitas descreve como “crônica extrema”. O crescimento da equipe também foi natural: de início, Cardoso e Galera uniram-se a Marcelo Träsel, colega de faculdade de ambos, e a um amigo de infância de Daniel Galera chamado Guilherme Pilla. Os e-mails enviados motivavam respostas na mesma moeda, e logo outros nomes foram se agregando ao time, até chegarem na formação final.

“Éramos quase como uma banda, só que fazendo um mail-zine”, conta Daniel Galera. “Eu era jovem e estudante e o COL era como a nossa banda”, concorda Hermano Freitas. A transformação do COL em festa temática, o “Bailão do Cardosonline”, amplificou o impacto dos e-mails em uma dimensão que surpreendeu os próprios realizadores. “O primeiro não bombou muito, mas o segundo… Entraram umas 400 pessoas na festa e a gente ficava se olhando e rindo”, lembra Hermano. As assinaturas se multiplicaram, ao ponto de mais de 3 mil pessoas receberem semanalmente as duas edições do mail-zine, nas segundas e quintas-feiras.

Acabar com o COL “foi a decisão certa”, diz Galera

“O crescimento foi muito surpreendente pra todos nós”, diz Daniel Galera. “Tínhamos 18, 20 anos, e de repente havia um público de milhares de pessoas interessadas em ler nossos textos, nos conhecer pessoalmente, ir nas nossas festas. Lendo os textos do COL hoje, fica evidente que eram amadores e carregados de juventude, quase adolescentes, mas era justamente esse frescor e essa inconsequência que davam sentido à coisa”.“Aproveitamos, sem dúvida, a falta de referenciais na cultura de Porto Alegre e do país”, acrescenta Hermano. “Mas não foi nada consciente, foi feito e pronto. Eu mesmo não entendo direito como aconteceu”.

Segundo os integrantes, a mesma espontaneidade que guiou o surgimento e a explosão criativa do grupo foi determinante para que o Cardosonline chegasse ao fim, depois de 278 edições. “Por um lado, depois de três anos escrevendo semanalmente, os próprios COLunistas já estavam um pouco cansados da fórmula”, lembra Daniel Galera. “Por outro, o crescimento do zine começou a gerar alguns sintomas que não nos agradavam. Não gostávamos de ser associados às etiquetas da literatura pop, da cena de música indie etc. Um belo dia, todos decidimos, quase em consenso, que era melhor parar antes de virar um problema”.

“Alguns já trabalhavam e não tinham mais condição de colaborar sempre”, acrescenta Hermano Freitas. “Outros não tinham mais saco mesmo. Às vezes alguém falhava em mandar coluna e tinha atrito. Algumas divergências sobre onde chegar com o zine também pesaram na decisão de acabar tudo. “Chegamos a pensar em programa de TV na MTV, isso chegou a ser uma possibilidade séria. Pensamos em editora, coletânea… Nada virou”.

Mesmo com as divergências eventuais, a decisão foi pacífica. “Foi um pouco melancólico, mas consensual. E acredito até hoje que foi uma decisão certa”, afirma Galera. “A partir dali, os COLunistas puderam seguir seus caminhos particulares com mais foco e dedicação”. Uma separação que não criou abismos entre os integrantes, pelo contrário. “Sempre que encontro eles, é um motivo de grande festa. Gostamos muito uns dos outros”, conta Hermano.

A influência do Cardosonline manteve-se nas atividades posteriores de seus integrantes. Daniel Galera, Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla fundaram a editora Livros do Mal, e os dois primeiros lançaram obras literárias de alcance nacional, mesmo caminho seguido por Clarah Averbuck. Marcelo Träsel e Guilherme Caon são professores universitários, enquanto Cardoso envolveu-se em uma infinidade de projetos na web e Hermano Freitas trabalha como repórter em São Paulo.

André Czarnobai, o Cardoso do Cardoso On Line
André Czarnobai, o Cardoso: “Se não fosse o COL, nada disso teria acontecido" | Foto: Arquivo pessoal

Hermano Freitas: “foi a melhor coisa que fiz na vida”

“Dos catorze contos do meu livro de estréia, treze saíram primeiro no COL”, lembra Galera. “Meu trabalho, festas, amigos, namoradas, tudo girava ao redor do Cardosonline. Mesmo dez anos depois do fim do zine, ainda conheço leitores por aí”. Hermano Freitas garante que o COL foi decisivo não só em sua carreira profissional, mas também em sua vida pessoal, já que conheceu sua atual esposa por meio do mail-zine. “Abriu muitas portas, determinou tudo que veio depois. Foi sem dúvida mágico. Acho que foi a melhor coisa que fiz na vida”.

Partindo do princípio de que cada ano na internet equivale a uma década no mundo lá fora, os oito integrantes do Cardosonline se reuniram para uma edição especial em 2008, comemorando o “centenário” do mail-zine. A edição especial – ou “Edição Zumbi de COLecionador”, como os responsáveis preferiram chamá-la – teve a tiragem especial de 999 e-mails, e coincidiu com a inevitável festa coincidente, o Bailão de Centenário. Desde então, o nome Cardosonline voltou a repousar na história da internet brasileira – ainda que as quase 300 edições do COL estejam disponíveis para download.

Daniel Galera garante que sente “imenso orgulho” do COL. “Acho que ele foi, sim, percursor de um certo estilo de escrever na internet, que depois se disseminou pelos blogs, sites e no jornalismo cultural. Não que o COL tenha sido pioneiro ou criador exclusivo desse estilo, mas ele foi uma publicação de grande influência. Há uma evolução notável no texto dos COLunistas ao longo dos três anos de existência do zine. E há uma evolução na exploração de formatos textuais próprios da internet. Pra mim isso é muito claro”.

A última palavra sobre o Cardosonline vem de André Czarnobai, o Cardoso em pessoa, figura que motivou toda essa história. Contatado por e-mail pelo Sul21, Cardoso não pôde responder as perguntas, por estar envolvido em uma viagem profissional pela Europa. Mas deixou uma frase simples, para ser utilizada caso a publicação da matéria se desse antes de seu retorno ao Brasil. “Digo apenas que, se não fosse o COL, nada disso teria acontecido – e quando eu falo “disso” é precisamente a isso tudo que estou me referindo”. Nada mais justo para alguém que, lutando contra o tédio durante uma greve federal, abriu caminho para muito do que hoje se faz em termos de literatura no Brasil, tanto em livros quanto na internet e, no fundo, em todo o resto.


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