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9 de julho de 2011
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09:30

Marshall: “O StudioClio funciona como antídoto ao paroquialismo”

Por
Sul 21
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Milton Ribeiro

Para o público porto-alegrense, ele é o curador do StudioClio – Instituto de Arte & Humanismo. No meio acadêmico, ele é professor associado do Departamento de História e da pós-graduação de História e Artes Visuais, além de coordenador do Núcleo de História Antiga da UFRGS e Grupo Interdisciplinar de Filosofia e História da Ciência. Porém talvez seja mais amplo e claro caracterizar Francisco Marshall como um disseminador e polinizador da cultura sob várias formas — cursos, concertos, oficinas, shows, almoços, banquetes –, sempre com uma visão arejada, multidisciplinar e sob a cooperação de artistas e docentes. Convidado a falar ao Sul21, Chico Marshall, como é mais conhecido, escolheu centrar a entrevista no StudioClio, ignorando a experiência acadêmica e o fato de ser um (bom) pianista amador e colorado doente.

"Como temos liberdade, recusamos o modo tradicional de comunicação do conhecimento através apenas do esquema palestra e público ouvinte, com o sabe-tudo lá na frente e o público dormindo" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21Em que posição o StudioClio se coloca no aspecto de formação de pessoas? Ocupa algum vácuo deixado por cursos regulares ou é mais lazer?

Francisco Marshall – Ele possui um perfil meta-acadêmico, ou seja, ele complementa, supera e acompanha o que a formação acadêmica não fornece. A universidade é muito lenta para se atualizar curricularmente. Por tratar mais de teorias gerais de cada campo do conhecimento, ela tem grandes dificuldades em produzir alternativas de formação sobre tópicos muito atuais. A universidade demora cerca de 5, 6 anos para se atualizar em relação à sociedade.

Sul21 – Exemplos.

Francisco Marshall – Repetimos pela terceira vez uma Oficina de Produção de Texto Acadêmico. A universidade exige, no momento mais angustiante do aluno, essa habilidade. Este é colocado numa situação de minhoca entre quatro galinhas: banca de monografia, de mestrado, doutorado, etc., onde é exigido virtuosismo retórico. Isso não é oferecido nas disciplinas de teorias de metodologia, que raramente falam das estratégias que constituem um autor, e que fazem desse autor um escritor, que são dois passos importantes. Então a produção da objetividade, a construção de uma estrutura de texto, com lógica e simetria, rigorosamente deveria ser um elemento curricular, mas como eu estou dentro da universidade, sei que ela está demorando para fazer isso. Algumas instituições já estão imitando essa oficina, colocando-a em seus currículos aqui na região metropolitana, o que é uma coisa boa. Também fizemos recentemente um curso chamado “Compreender a China”, com uma antropóloga. É espetacular quando tu tens a verossimilhança, a verdade da experiência, que é o caso deste curso. A ministrante fez uma tese de doutorado sobre a China, viveu na China, estuda mandarim, lê mandarim. Então compartilhar conhecimento com uma pessoa dessas é perfeito para quem tem curiosidade ou interesse por aquele país. Temos também um curso sobre o livro, desde os originais até o livro eletrônico. São soluções para quem produz ou deseja produzir um livro, discute as questões envolvendo os originais e suas revisões, o direito autoral, as técnicas de diagramação e capa, a parte gráfica, e, por fim, as questões mais atuais no mercado editorial do Brasil e do mundo. Hoje tu tens uma facilidade tecnológica incrível e a competência de tornar-se não somente um autor, mas editor, está ao alcance das pessoas. Imagina, um editor no século XVI tinha enorme relevância, era um ser raro. Hoje, ser editor é uma praticamente uma questão de vontade, informação e talento.

Sul21 – E a formação dos professores é muito variada? Há só acadêmicos?

Francisco Marshall – Olha, depende da área. Por exemplo, o Paulo Moreira, que é um docente que a gente respeita muito. Ele é muito atuante aqui dentro. É o que a gente chama de autoridade consagrada, reconhecida. Ele é a Wikipedia do rock, do jazz, e da cultura pop. Não tem doutorado, mestrado. Mas tem o mesmo status de um professor com toda a trajetória acadêmica. Agora, quando eu vou conhecer um docente que se proponha a atuar no StudioClio, é claro que eu quero conhecer bem a linha de pesquisa dele para saber o grau de profundidade que ele pode traduzir, mas há exceções.

Sul21 – Outra coisa que eu vejo que vocês fazem aqui, são cursos que oferecem, por exemplo, a parte cultural junto a um jantar, um almoço.

Francisco Marshall – Na verdade, tudo faz parte de um mesmo contexto, de uma experiência cultural na busca de uma linguagem hipersensorial. Como temos liberdade, recusamos o modo tradicional de comunicação do conhecimento através apenas do esquema palestra e público ouvinte, com o sabe-tudo lá na frente e o público dormindo. Isso nós não fazemos de modo algum aqui no StudioClio. Nosso método é o procurar e produzir linguagens imaginativas. Nós temos uma tela de cinema a nosso favor, eu e a equipe apoiamos os docentes na pesquisa iconográfica para que esta seja sempre muito rica em qualidade e, quando conseguimos conciliar isso com uma experiência gastronômica, melhor ainda. Isso transforma esses encontros em experiências mais enriquecedoras. O cardápio é temático, até a estrutura aromática do ambiente também é tematizada. Nós temos uma curadora de aromatologia, nós desenhamos com ela os aromas… As pessoas nem sabem, a gente não declara, mas as pessoas notam a fragrância, o cheiro que evoca algum tipo de sensação. Então temos o conceito interdisciplinar, de oferecer um conjunto de estímulos unidos por uma unidade de conceito ou de currículo. Nós transformamos esse café onde estamos agora numa cozinha industrial e servimos lá no auditório.

"O objeto do StudioClio, o de produzir aqui uma expressão de memória cultural com uma linguagem contemporânea, porque se não tivermos o elemento de comunicação, vira um antiquariado" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – E sobre os shows e concertos, qual é o espectro que o StudioClio considera aceitável culturalmente? Há limitações? Já vieram roqueiros tocar guitarra aqui?

Francisco Marshall – Muitas vezes! Nós não fazemos fronteira de gênero musical. Claro que sabemos que há gêneros que são massificados, pasteurizados, e que eles não tem conteúdo cultural compatível com o nosso tipo de sensibilidade nessa sala, então dificilmente vai entrar sertanejo… Fora isso, o único critério é a verdade e a beleza da arte. É difícil de categorizar mas fácil de perceber quando isso existe. Eu não posso discernir ou excluir desse conceito o que o Luiz Carlos Borges faz com o acordeon, por exemplo. Aquilo é musica de câmara de alta qualidade, pra mim. Tudo bem, ele tem o mercado nativista, mas aqui ele toca como música de câmara. Dentro da música erudita também tem muita falsidade, no jazz tem muita porcaria, o gênero não é suficiente pra discernir. Tu sabes disso tanto quanto eu.

Sul21 – E a abragência dos cursos?

Francisco Marshall – O objeto do StudoClio é a memória cultural da humanidade, sem fronteiras nem no tempo nem no espaço. Então ele funciona na nossa comunidade como antídoto ao paroquialismo, ao bairrismo, ao regionalismo estanque. Nós assumimos que somos uma parte da humanidade e temos que saber herdar esse patrimônio cultural. Para isso, é necessário um trabalho de arqueologia da cultura. Esse é o objeto do StudioClio, o de produzir aqui uma expressão de memória cultural com uma linguagem contemporânea, porque se não tivermos o elemento de comunicação, vira um antiquariado. Essa âncora da memória cultural não nos impede de abrir outras iniciativas mais atuais, questões comportamentais, que valorizam grupos, mas a memória é o que dá a tônica para o que gente quer trabalhar aqui.

Sul21 – Alguns criticam Porto Alegre por oferecer pouco na área da cultura. Outros reclamam que não há público. Enquanto isso, a programação do StudioClio não apenas parece se mantém como é ampliada. Como o StudioClio sobrevive?

Francisco Marshall – Não é uma vida fácil, certamente. Quando, por exemplo, um curso atinge a meta de 20 pessoas, ele passa a contribuir com a casa para que esta possa subsidiar outras atividades que não dão lucro. Com 20, atingimos uma faixa de equilíbrio que paga nossas contas e podemos fomentar áreas que ainda não dão resultados, como a literatura e música. O que ultrapassa a meta de público por curso, representa um superávit importante. Somos uma equipe enxuta e muito operosa, tão enxuta que temos dificuldades em atuar desfalcados.

Sul21 – O StudioClio permanece ativo durante todo o ano?

Francisco Marshall – Desde que nós inauguramos o StudioClio, em 20 de setembro de 2005, nossa primeira surpresa foi a intensidade dos meses de verão, em todas as áreas. É claro que isto fica mais evidente na produção artística — música erudita, jazz, blues, etc. — , mas nossas áreas de formação e cursos de profissionalização ligados à arte e à cultura também são muito buscados em todas as épocas do ano. Agora mesmo, tivemos público vindo do interior do estado, mas também do Rio Grande do Norte, da Bahia e de Minas Gerais. Eles se hospedam aqui nos hotéis da cidade e participam de cursos, de concertos, de nossos banquetes. É claro que isso só é possível porque o StudioClio tem uma presença muito grande na internet e acaba contatando com interessados de outros estados.

Sul21 – Como é que Porto Alegre abraça (ou rejeita) o StudioClio?

Francisco Marshall – Não posso me queixar de modo algum. A gente tem oferecido produtos e tem recebido de volta um reconhecimento bonito da cidade. Surpreende muito a quantidade, a qualidade, a heterogeneidade dos depoimentos. No início nós enfrentamos dois estigmas: o de acharem que éramos um espaço elitizado — porque a gente não tem patrocínio nem privado nem do estado, vendemos um produto e dependemos dele. As pessoas custaram a entender que os produtos culturais também fazem parte de um ciclo no sistema econômico, têm que parar em pé, ter uma sustentabilidade. Como alguém vais nos chamar de elitizados quando oferecemos concertos de nível de internacional a um preço entre 10 e 40 reais? Hoje, nós temos depoimentos contrários: “Por que vocês fazem as coisas tão barato aqui?”. O fato é que nosso produto tem o preços menores que o custo, porque se não fosse assim, a gente teria lucro, e não prejuízo.

Sul21 – E quem arca com o prejuízo?

Francisco Marshall – Nós temos um investimento privado no StudioClio e este investimento não pode ser descontinuado. Mas, depois de cinco anos, nós finalmente chegamos a um estágio de sustentabilidade. Agora o que nós desejamos é termos alguma capacidade de investimento, porque somos uma baita antena, desburocratizada, livre, aberta, com cinema digital, o escambau. Isso tudo é uma tentação para quem quer fazer algo diferente. Então eu gostaria de ter dinheiro para investir em literatura, música, só que para isso a gente vai ter que chegar a um outro patamar ao qual estamos recém chegando.

Sul21 – Tu usaste a palavra desburocratizado, uma palavra bem importante porque geralmente todas as casas, quando preparam um espetáculo qualquer, são lentas, dependem quase de um projeto. Há muitas salas e espaços estatais, mas quase sempre eles são cheios de complicações de burocráticas. O próprio Victor Castiel reclama muito disso, dos espaços e da pouca disponibilidade dos profissionais das salas do município e do Estado.

"O resultado dos espetáculos gratuitos é que ninguém mais pensa que música é resultado de trabalho" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Francisco Marshall – Aqui é o contrário disso. Em 2009, esteve em Porto Alegre para um concerto com a Orquestra da ULBRA, o violoncelista francês Roman Garioud. Aí o diretor da Aliança Francesa trouxe ele aqui pra tomar um café. Eu estava no StudioClio e a gente conversou um pouco. Mostrei para ele nossa sala. Quando ele entrou no auditório ele disse “Não… Eu tenho que tocar aqui”. Eu perguntei a ele o que ele tocaria e ele mandou eu entrar no site dele para olhar seu repertório. Pô, o repertório era arrasador, o cara tinha quase toda a obra pra cello em música de câmara, concerto e solos. Daí selecionei duas, três peças, ele sugeriu outras também, tocou Bach, tocou Cassadó. E eu estava dando um curso sobre museus… Alterei a programação. Eu ia falar do Louvre duas semanas depois, mas antecipei e o curso acabou como um recital de cello dentro da coleção do Louvre, com fotografias em altíssima resolução, explorando o aspecto libidinoso do mármore, das estruturas antigas. O Cassadó tocou junto com um quadro do Picasso. Onde mais isso?

Sul21 – Lá atrás eu tinha perguntado como Porto Alegre e o RS abraçam o StudioClio…

Francisco Marshall – Ah, é mesmo! Eu disse que tinha dois pontos. O outro é que há estigma indevido, resultado de décadas de manipulação demagógica da produção cultural. O público não notou isso e, pior, os artistas não notaram. Corporações e empresas que pagam um pro labore para os artistas não podem não ser ruins, mas daí oferecem música de graça. O resultado dos espetáculos gratuitos é que ninguém mais pensa que música é resultado de trabalho. Isso gerou uma depreciação do valor da arte na sociedade. Tal fato não é um fenômeno isolado, mas aqui foi muito forte e fragilizou a valorização profissional do artista e do intelectual na sociedade. Claro que os artistas e os intelectuais contribuíram para isso quando aceitaram convites por honra, por glória. Então, quando surge um espaço como esse, que é cultural, mas que tem uma estrutura tributária, econômica, tem que haver uma mudança de percepção. Isso hoje já está resolvido. Outro problema foi essa questão de associar o StudioClio à Casa do Saber. Sabe que é o contrário? Eles copiam a gente sistematicamente, a gente escreve em baixo da mesa “Olha, daqui a três meses vai ter um produto igual assim na Casa do Saber”. E ele aparece. Então, sei lá, por um sentimento paroquial, por essas coisas de colônia, as pessoas acham que a gente tem um modelo lá. Eu nunca olhei o que eles estão fazendo para conceber o que é feito aqui.

"Se aparece um helicóptero flamejante, se desce de dentro dele uma deusa platinada de outro país, todo mundo paga 300 pilas pra ver esse fenômeno extrassensorial" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Defina “sentimento paroquial”.

Francisco Marshall – É essa coisa de acharmos que somos grandes e pequenos, grandes anões. Essa coisa de xingar os portenhos, mas sermos muito mais narcisistas. Somos narcisistas culturais, criamos uma autoimagem de grande valor que não corresponde à prática do dia a dia. Em Porto Alegre só vinga o que está há 20 anos em cartaz. O resto é experiência, correria, só se produz porque o cara tem outro emprego; mas se acontece de um espetáculo ficar 25 anos em cartaz, ah, isso sim vira Porto Alegre, vira uma marca daqui. Então a capacidade da cidade consumir o seu próprio poder de inovação fica comprometido. Se aparece um helicóptero flamejante, se desce de dentro dele uma deusa platinada de outro país, todo mundo paga 300 pilas pra ver esse fenômeno extrassensorial. Agora, se um jovem Mozart aparece tocando aqui na cidade, eles não vão pagar só 30 pilas. R$ 50 só paga a família do cara. Isso é paróquia.

Sul21: Lembras da pergunta sobre o auxílio estadual?

Francisco Marshall – (risos) Nós não buscamos muito o estado pois a nossa visão é independente, autônoma, de quem quer total liberdade. Nas poucas vezes que buscamos apoio, especialmente no município, o apoio foi sempre muito franco, muito direto, a SMC nos dá um apoio excelente, mas eu não peço muito porque a prefeitura também tem seus projetos, seus espaços culturais, e nós precisamos ser independentes. Mas não posso me queixar, o que nós não temos é tempo. Mas com o estado… A gente não pode depender dele, a gente tem que se virar por conta própria. Ainda mais na época em que tínhamos uma figura exótica como a Mônica Leal na Cultura – aliás, não entendo porque o Assis Brasil reconduziu o Nesralla à OSPA após o carimbo da Yeda e da ex-secretária. Por isso, Porto Alegre precisa de um espírito comunitário mais generoso, até mais filantrópico. O que falta para Porto Alegre – e vale o mesmo para o resto do país – , é um compromisso efetivo entre uma elite muito rica e a classe média. Existe um segmento sócio-econômico que envolve profissionais liberais já com longa trajetória, pessoas que dispõem de capacidade financeira para montar pequenas, médias e grandes empresas, muitas vezes bem sucedidas, mas que não vão a um concerto de 70 reais, nem compram um quadro de um bom artista. A gente mora numa cidade onde tem um Gerdau que faz a diferença, mas a atitude dele é imitada apenas por parte de seu círculo, mas não por esse extrato que está aqui entre nós, de pessoas como eu, o Chico Marshall, e o Milton Ribeiro, que têm uma faixa de renda mais ou menos satisfatória e que poderiam sem sacrifício participar mais.


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