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27 de julho de 2011
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17:05

Atentados na Noruega expõem guinada xenófoba na Europa

Por
Sul 21
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Atentados que deixaram 76 vítimas é considerado o maior trauma na Noruega desde a Segunda Guerra Mundial | Foto: Marta Haga/Utenriksdepartementet/Flickr

Igor Natusch

Racista, islamófobo, xenófobo, neonazista, militante de extrema-direita, fundamentalista cristão. São várias as características atribuídas, em maior ou menor intensidade, a Anders Behring Breivik, o terrorista norueguês que na semana passada provocou, em dois ataques, a morte de 76 pessoas. A “ponta de um imenso iceberg”, alertam especialistas, da escalada de movimentos reacionários em uma Europa em crise.

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Ao mesmo tempo em que movimentos espontâneos de jovens pedem mais democracia e saídas sociais para a crise, a situação econômica da Europa, aliada a um sentimento difuso de perda de identidade nacional, tem servido de trampolim para movimentos conservadores em vários países do continente. Adotando um discurso que combate à imigração, ao multiculturalismo e à globalização, partidos de extrema-direita encontram espaço. Segundo especialistas consultados pelo Sul21, esse ideário pode não defender diretamente crimes brutais como os da última sexta-feira (22), mas nutrem com eles uma relação que não pode ser ignorada.

“Não devemos ver esse ataque como uma ação isolada”, adverte a professora Maria Aparecida de Aquino, do Departamento de História da USP. Para ela, o aspecto pessoal do terrorista norueguês não pode esconder as raízes mais abrangentes de seu gesto. “Ele não está só. Manifesta uma forma de pensar que se opõe à democracia. Um dos pilares dos regimes democráticos é a convivência com as diferenças, e esse ataque é exatamente o oposto: uma manifestação motivada por intolerância e que defende a intolerância”.

O professor Luiz Dario Ribeiro, coordenador do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais da UFRGS, concorda. Para o historiador, um ato extremo como o de Breivik é um sintoma radical do processo de “direitização” pelo qual passa a Europa. A leitura do manifesto publicado pelo terrorista na internet mostra, segundo Luiz Dario, uma grande identificação com a crítica ao multiculturalismo e às políticas de esquerda adotadas em alguns países do continente – como na própria Noruega, governada pelo trabalhista Jens Stoltenberg. “A postura da direita europeia é cada vez mais contundente, anti terceiro-mundo. E essa visão aparece claramente nas posições defendidas pelo atirador”, acentua.

Ribeiro identifica no discurso de Anders Breivik outros elementos que remetem a uma tentativa de restaurar uma Europa tribal, distante das influências externas ao continente. “O uso recorrente da expressão ‘tribo europeia’ demonstra isso”, argumenta. “É uma guerra contra os aspectos globais que incidem sobre a sociedade europeia. A referência aos ‘novos templários’ mostra isso, além de associar a luta desses grupos ao Islã, que eram os oponentes dos cruzados na luta pela Terra Santa”, reforça.

Ministro das Relações Exteriores, Jonas Gahr Støre, presta homenagem às vítimas da tragédia | Foto: Ministério das Relações Exteriores da Noruega/Divulgação

“Ideia absurda” sobre o gênero humano

Ainda que o manifesto de Anders Breivik traga repetidas acusações contra o islamismo, não é apenas a eles que o terrorista dirige sua agressividade. O Brasil surge em alguns trechos do documento, servindo como exemplo do que de pior pode acontecer com a Europa em um futuro próximo. Em seu discurso, Breivik diz que, se não for detido o “genocídio das tribos nórdicas”, o continente será tomado por “um modelo de bastardização continuada, muito similar ao modelo brasileiro”. A “revolução marxista” no Brasil teria, na visão do terrorista, causado “resultados catastróficos” e transformado nosso país em uma nação “permanentemente disfuncional”.

Luiz Dario Ribeiro, da UFRGS, interpreta essas colocações como uma retomada de antigos discursos sobre raças, em especial os textos do conde Arthur de Gobineau, um dos principais teóricos racistas do século XIX e que escreveu sobre a péssima impressão que teve de sua visita ao Brasil. “É uma tese bastante antiga, que os grupos racistas e racialistas nunca abandonaram. Para eles, nossa miscigenação resulta em uma incapacidade brasileira de consolidar-se como nação”, explica.

“É uma leitura velha e anacrônica”, reforça a professora Maria Aparecida de Aquino, da USP. “Atualmente, enquanto a Europa vive um momento de crise, o Brasil vai se consolidando como um dos países mais respeitados na política internacional. E é justamente a nossa riqueza cultural o que mais nos distingue”.

Para ela, os argumentos reproduzidos por Anders Breivik em seu manifesto trazem uma “ideia absurda” sobre o gênero humano. Ideia que, infelizmente, encontra eco em várias regiões da Europa. Para exemplificar, a professora da USP cita a difícil relação entre a França e uma de suas antigas colônias, a Argélia. “Muitos argelinos têm entrado na França, mesmo porque há uma certa identidade comum, ainda que criada pelo domínio. E essas pessoas não são vistas como iguais. O Zidane (jogador de futebol), que tem origem argelina, é forçado a usar uma carteira de identidade diferente em função de sua origem, como se fosse um cidadão de segunda categoria”.

Anders após depoimento na Justiça em Oslo | Foto: Reprodução/Aftenposten

“Tentam esconder teses racistas”, diz professor

Ainda que não adotem abertamente um discurso racista, grupos políticos conservadores concordam entre si no repúdio ao modelo multicultural, acreditando que ele provoca a perda de identidade local, trazendo instabilidade política, econômica e social.

“Há uma distorção do conceito”, explica o professor Luiz Dario Ribeiro, da UFRGS. No caso, os movimentos neonazistas e de extrema-direita usam o multiculturalismo como uma forma de mascarar o caráter preconceituoso de suas políticas, misturando os conceitos de cultura e raça. “É uma ressignificação. Muda-se o conceito para esconder as teses racistas atrás de uma palavra, para tentar dar a essas teses um aspecto aceitável”.

O choque cultural estaria, de certo modo, relacionado também ao modo como os movimentos neonazistas em geral, e Anders Breivik em particular, tratam o islamismo e sua oposição ao cristianismo. O combate da influência islâmica sobre o continente europeu, muito presente no manifesto do terrorista, abraça conceitos adotados por boa parte da extrema-direita do velho continente. Além de proteger a cultura e a economia local, surge na postura conservadora um novo papel: o de preservar o cristianismo, ameaçado pelo islamismo trazido à Europa pela imigração.

“Enquanto se fala de forma intensa e permanente sobre fundamentalismo islâmico, a mídia esquece de citar o fundamentalismo cristão”, adverte Luiz Dario Ribeiro. O professor da UFRGS lembra casos não muito distantes, como os ataques de Timothy McVeigh nos EUA em 1995, para mostrar que o uso da violência não é exclusividade dos fundamentalistas islâmicos. “É um sectarismo que cresce assustadoramente, não só do ponto de vista religioso, mas político também”.

O aumento da crise econômica na Europa pode, segundo o professor da UFRGS, mostrar-se um terreno fértil para novas ações violentas de extrema-direita. “Essa crise está na base de uma virada xenófoba no continente europeu”, garante. “Atribuir as mazelas a uma espécie de invasão vinda de fora é um argumento que, ainda que falso, se mostra fácil e inteligível para várias camadas da sociedade”.

“Essa é a ponta de um imenso iceberg”, adverte Maria Aparecida de Aquino, da USP. “Um ato como esse joga no nosso rosto uma realidade de intolerância crescente na Europa. Temos cada vez mais governos ligados a setores de extrema-direita, temos um número crescente de nações europeias adotando medidas contra a imigração. Todos temos muito o que refletir sobre esse incidente trágico”.


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