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26 de junho de 2011
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10:05

Índio Vargas: “A violência maior com um preso é o choque elétrico”

Por
Sul 21
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"Escapei do pau de arara", conta Índio Vargas l Ramiro Furquim/Sul21

Nubia Silveira

O advogado Índio Vargas foi um dos repórteres que, além de escrever sobre o movimento da Legalidade, em 1961, integrou-se à resistência democrática, liderada pelo então governador Leonel Brizola. Como tantos outros, recebeu um revólver Taurus 38. Hoje, é um dos cinco pedetistas históricos. A Legalidade foi um marco em sua vida. Depois dela, decidiu fazer parte de um partido político. Passou a militar no PTB, trabalhando pela reforma agrária no governo João Goulart.

Com o golpe de 1964, voltou à resistência. Fez parte de um grupo de guerrilha. Participou da “expropriação” de um banco. Acabou preso e torturado. Mas, não se deixou vencer. Os anos passados na Ilha do Presídio, os choques elétricos sofridos e a tentativa de fuga são contados com um certo humor em seus livros. O mais lido deles – Guerra é guerra, dizia o torturador – é um exemplo de como Índio manteve um olhar bem-humorado, mesmo na prisão.

Convidado pelo Sul21 a contar a sua história, Índio ficou preocupado com o horário: 19h. Achou tudo muito estranho. Assim, no dia marcado para a entrevista, ele apareceu cedo da manhã na redação. Milton Ribeiro que o recebeu e desfez a confusão contou em seu blog que, depois das explicações, “Índio Vargas, feliz da vida, atravessou a calçada de um salto e correu pela rua como se não fosse um septuagenário, mas o guri de São Sepé. Saí porta afora para ver bem visto aquilo. Ele corria mesmo e, olha, o calor era sufocante”.

Nesta longa entrevista – foram quase três horas de conversa –, o ex-jornalista fala de política, da guerrilha, da prisão e de políticos, como a presidenta Dilma Rousseff, da qual é amigo. Da entrevista participaram os jornalistas convidados Carlos Bastos e Daniel Cassol, atualmente editor do Sul21, e os repórteres do jornal: Felipe Prestes, Igor Natusch, Milton Ribeiro e Nubia Silveira.

Nubia Silveira — Lembramos de te convidar, porque tens vários fatos para nos contar. O pessoal do Sul21 leu os teus livros e se entusiasmou. Convidamos o Bastos para ajudar na entrevista, porque ele sabe do teu passado e pode trazer algumas coisas que nós não sabemos. Também está aqui o Daniel Cassol, que já te conhece, que é de São Sepé como tu.
Índio Vargas — Família é importante, lá em São Sepé. Principalmente da Igreja Católica. Agora, os evangélicos estão entrando lá e acham que…

Daniel Cassol — Em São Sepé, importante é a família Vargas.
(risos)
Índio — Empobreceram os Vargas. Eram tudo meio endinheirado, mas beberam tudo de cachaça.

Nubia — Outra coisa: a internet, como sabes, comporta texto, áudio, imagem, e gravamos os nossos entrevistados para colocar alguns vídeos

Índio – Ah, é?

Nubia — É

Índio — O negócio…

Nubia — É multimídia.
Índio — É multimídia. Hoje eu estava vendo uma entrevista sobre se fotografia é arte ou não. Mas claro que é arte, o cinema é arte, e o cinema é uma fotografia movimentada. E tão movimentada e tão importante, que quando o cinema tem muito diálogo estraga o filme. Filme bom tem poucos diálogos, pouca conversa e pouco texto.

"Filme bom tem poucos diálogos" l Ramiro Furquim/Sul21

Nubia — Então é filme europeu.
Índio — Filme europeu é assim, claro. Na Europa, eles fazem assim, claro. Os Estados Unidos fazem filme para ganhar dinheiro. E tem alguns muito bons, diga-se de passagem.

Nubia — Tem alguns que valem a pena. Índio, vamos começar falando sobre a tua vida de guerrilheiro. Nos teus livros tu contas, mas conta aqui para nós como foi a tua decisão de entrar para essa guerrilha urbana.
Índio – Bah! Quando cheguei naquela porta ali e vi o pessoal, eu disse: “Ih, isso tem gente muito nova aí, gente muito sabida e que pegou aquela escolaridade toda, dos que fizerem tudo isso aí, e vão aplicar em cima de mim.” E eu não ganho nenhuma. Perdi até – saiu no Diário Oficial — aquele negócio da indenização. Estavam dando indenização pro Ziraldo, pro fulano de tal lá o… Fernando Morais, não sei mais quem. Umas indenizações boas. E, agora, eles despacharam (contra). Eu tenho uma aposentadoria na Caixa Econômica Federal, que tu também tens (voltando-se para Carlos Bastos).

Carlos Bastos — É verdade.

Índio — E tu tem mais. Tu tem melhor, porque tu fica sempre ali no entorno. E eu saí do entorno e fui lá pra Ilha do Presídio. Não que seja mérito, né? E aí pedi, pedi e eles acharam que, em primeiro lugar, eu já estava anistiado.

“Gente que  ficou embaixo da cama todo o tempo todo ganhou indenização do Estado”


Nubia — Mas todo mundo já está anistiado.

Índio – Sim. Anistiaram todos que se credenciaram e provaram que tinham participado da resistência à ditadura. E eu fiz aquilo (entrou com o pedido de indenização). Fiz tudo direitinho. E eles negaram, porque eu já estava aposentado e disseram que aquela aposentadoria era uma aposentadoria especial, e portanto era a indenização a que eu teria direito. E negaram. Ali pode-se entrar com um recurso. O recurso foi negado.

Bastos — Não ganhou nada?
Índio — Não ganhei nada.

Nubia – Mas aqui no Estado tu não ganhaste?

Índio — Aquilo era vinte mil (reais). Vinte mil dá pra uma noite só; tomar um vinho chileno. Desse jeito como é que eu vou viver? Fiz o aprendizado com eles, eles é que me ensinaram.

Bastos – Ah! Tu ganhaste indenização do Estado.
Índio — Mas todo mundo ganhou. Gente que nem passou perto, ficou embaixo da cama todo o tempo…

Bastos — Como foi tua decisão de entrar na subversão.

Índio — Então vou contar exatamente como ocorreu.

“Sem a reforma agrária, o Brasil não vai sair desse impasse em que se encontra”, dizia Jango

Bastos — Só pra esclarecer, o Índio, no golpe — se eu estiver errado tu me corrige — tu eras funcionário da Supra, que era a Superintendência da Reforma Agrária em Brasília. Não era o (João) Caruso que era o presidente da Supra (Superintendência de Política Agrária, criada em 11 de outubro de 1962, pela Lei Delegada nº 11, presidida, em 1964, por João Pinheiro Neto)?
Índio — Não, não. Era o João Caruso (João Pinheiro Neto assumiu a Supra em julho de 1963 e ficou até o golpe). Era um órgão muito importante, porque eu vi, inclusive, as tratativas do Jango junto com o Oscar Silva. Esse Oscar Silva era um fazendeiro, o mais rico do PTB. O Jango gostava muito de gente rica e fazendeira. E todo mundo gosta. Quem não gosta de rico é burro.

Bastos – Oscar Silva era um dos companheiros de classe dele. Ele era rico e fazendeiro.

Índio — E eles conversavam sobre reforma agrária lá na granja do Jango. E eu, quando vi eles conversando e falando sobre reforma agrária, procurei ficar oculto pra que eles não me vissem e eu ouvisse o que eles estavam falando. E dizia o Jango: “Bom, mas a reforma agrária interessa a todo mundo. E sem a reforma agrária o Brasil não vai sair desse impasse que se encontra, que o de ser um produtor de… — naquele tempo não se dizia agroindústria, era agropecuária –, produtor de agropecuária e de minérios que se exportam aos batelões aí. A única coisa que não tem produto nenhum é a indústria. É zero. Então nós temos que partir para a reforma agrária. Aí será o ponto de partida das transformações que devem ocorrer no Brasil”. Dizia o fazendeiro: “Eu não tenho nada a opor. Se eu tiver que dar uma parte, darei, com muito prazer”. E ele (Jango) viu, então, que a classe estava, mais ou menos, a favor disso. E foi aí que ele levantou a bola e foi fazer o comício do dia 13…

"Jango viu que os fazendeiros estavam mais ou menos, a favor da reforma agrária" l Foto: Idade Certa


Bastos — …de março de 1964.

Índio — De março, na Central do Brasil. E ali, ele lavrou um decreto determinando que (o terreno) ao longo das estradas e das vias férreas e vias fluviais fosse desapropriado para efeitos de reforma agrária. A desapropriação, na época, isso o Brizola lutava muito, era paga à vista e na hora. À vista é na hora, né? À vista e em dinheiro. Não era em títulos da dívida pública não, como se faz em todo o mundo. Então o Brizola dizia: “Tem que reformar. Essa Constituição não presta. Tem que tirar”. E foi, e conseguiu que o Plínio de Arruda Sampaio (eleito deputado federal, em 1962, pelo Partido Democrata Cristão, e candidato à Presidência da República, pelo PSOL, nas eleições de 2010), que agora surgiu parece que de um outro mundo, meio que como um fantasma, e que era o relator na Comissão de Constituição e Justiça, mudasse aquele dispositivo constitucional para o dinheiro ser pago em títulos da dívida pública.

Cassol — O senhor estava nesse comício da Central do Brasil?
Índio — No comício? Da Central do Brasil? Não. Da Central do Brasil, eu estava na casa do Décio Freitas (jornalista e historiador gaúcho, autor entre outros do livro Palmares — A Guerra dos Escravos), assistindo e fazendo a crítica. O Décio só fazia a crítica, e pegava as vantagens, naturalmente.

Cassol — Onde é que o senhor estava no dia do golpe?
Índio — Eu estava em Brasília, porque eu estava cuidando da reforma agrária que tinha que começar por Brasília. Tinha que lotear as fazendas do presidente da República. Não, estou brincando.

Cassol — Tenho uma pergunta pra fazer. O senhor vem de São Sepé, nasceu em São Sepé, que é uma cidade muito conservadora.
Índio – Muito.

“A classe oprimida não tem ideias coisa nenhuma. Se tem é descartada a priori”


Cassol — … latifundiária. Eu também sou daquela cidade. Sempre tenho, como sepeense, uma curiosidade: saber como é que se criam umas figuras progressistas e que tenham uma trajetória política à esquerda, que é o seu caso. Como é que foi isso, essa passagem de uma cidade extremamente conservadora para, no fim, estar preso na Ilha do Presídio por ter lutado contra a ditadura? Tem alguma coisa a ver com a tradição da família Vargas, que tem uma tradição progressista?

Índio — A família Vargas se tornou progressista porque empobreceu né; aí é que está. O sujeito, se é pra ser progressista mesmo, não pode ser muito rico né, senão há um elemento natural que o impede de ser a favor do progresso. Ele está bem, está numa boa. “As ideias dominantes são as ideias da classe dominante”, dizia o Marx. Isso é um truísmo né? De quem seriam as ideias dominantes? Vai ser da classe oprimida? A classe oprimida não tem ideias coisa nenhuma, se tem alguma ideia é descartada a priori. Então ali foi que a família Vargas… tinha um patrimônio bom, eram latifundiários, com enorme de uma extensão de terra. E muito incompetentes. Não gostavam de trabalhar. Agora, parece que está todo mundo trabalhando né, porque se não trabalha sucumbe, mas naquela época dava pra viver assim né. Então, liquidaram tudo e resolveram passar pra ala dos oprimidos, e mudar a estrutura das relações sociais no Brasil, que estavam muito mal. A riqueza toda do Brasil, que vinha da agropecuária e da exportação de minérios, continua um pouco assim. Pode reparar, pode ver a Bolsa aí, ver a exportação e a importação, ver a relação importação/exportação, a agropecuária. E agora tem os automóveis. E ficou aí. Quer dizer que não progrediu nada. Avançamos muito pouco.

Felipe Prestes — Mas o senhor disse que para ser progressista não pode ser muito rico.
Índio – Não pode, não pode.

Felipe — Eu ia lhe perguntar sobre o Jango. Muitos dizem que, realmente, talvez ele não fosse fazer reformas. Ele era um progressista ou ele era muito rico e não podia ser progressista? Ou ele era muito rico e progressista mesmo assim?

"Getúlio tratrava o Jango como um filho" l blogspot o arteiro

Índio — Boa pergunta. Como é que ele entrou na política? Ele foi envolvido na política. O Jango foi envolvido. Não foi por uma astúcia. Ele não era um homem astuto, era um homem diligente. Estive falando com um sujeito que fez a História da Faculdade de Direito, agora que fez cem anos, e disse que fez um exame das notas (do Jango). Disse que eram muito boas. O Jango era inteligente. Eu estava vendo um texto dele, naquele negócio do Noé (em 1974, o motorista de táxi Noé Silveira entrou na Justiça para provar que era filho de Jango. O reconhecimento de paternidade ocorreu em 1989). Um texto bem feito com a letra bem elaborada. (Jango) não era burro não; e se fosse burro não chegaria lá. O Getúlio sozinho não deu … na verdade, o Jango entrou na política por uma coincidência: as terras deles eram lindeiras com as terras do Getúlio. Lindeiras tu sabe que é confinante, que fica ao lado, lindeira é uma palavra da campanha. E o Jango chegou um dia lá em Itu e viu o Getúlio lá com dois ou três empregados, solitário, com as camisas meio sujas e o negócio meio desorganizado. E o Jango já mandou chamar uma pessoa lá, e já botou ordem, já mandou fazer isso, fazer aquilo, e foi envolvendo Getúlio de tal forma que o Getúlio o encarava, o tratava como se fosse um filho. E disse “esse aqui é o homem que vai…”

Bastos – Ser meu herdeiro politico.
Índio – “herdeiro político”.

Bastos – Tá bem colocado isso aí. Transformou o Jango num herdeiro político.

Índio — Então aí o Jango não teve alternativas. Ele foi pra lá (Rio de Janeiro) e foi pra ser ministro (nomeado ministro do Trabalho, em 1953), e a passagem dele pelo ministério foi fenomenal. Ele aumentou o salário mínimo em 100%, e quem se levantou contra o decreto assinado pelo presidente da República com apoio e com a força do ministro do Trabalho não foram os empresários e os comerciantes, foram os coronéis, e os coronéis eram liderados pelo coronel Mamede (coronel Jurandir de Bizarria Mamede, um dos organizadores da Escola Superior de Guerra, tendo participado da elaboração da doutrina de segurança nacional. Ele conspirou contra o governo Vargas, em 1954). Tinha 83 coronéis que pediam a revogação (do decreto do salário mínimo). Eles ficaram defendendo os interesses dos grandes empresários. Ou revogavam esse decreto, que aumentou o salário mínimo em 100%, ou então as Forças Armadas iam protestar, e o protesto das Forças Armadas, geralmente, é muito bem armado, né. E aconteceu isso aí. O Getúlio não teve outra alternativa senão demitir o Jango. E ali começou a crise que só foi terminar no dia 24 de agosto de 1954, às 8h15. Ali terminou tudo. Uma coisa impressionante.

“Eu era um guerrilheiro meio descuidado: ia pra casa”

Bastos — Eu vou tentar abrir uma luz nisso. Primeiro, o Índio é um homem de muita coragem pessoal. Tenho vários exemplos. No decorrer do depoimento dele aqui eu vou apresentar. Mas  acho que tem um episódio que marcou muito o Índio. Nunca perguntei pra ele isso. Nós temos uma velha amizade, conversamos muito, eu nunca perguntei isso pra ele. Mas foi no dia do golpe. O Índio se insurgiu contra os militares no dia do golpe. O Índio foi pra casa do Brizola protestar por aquilo e os delegados de polícia estavam lá depenando a casa do Brizola, na Tobias da Silva. E o Índio fez um protesto ali, eu acho que o delegado era um delegado que tinha sido colega dele no jornal, Wilde Pacheco, e talvez por isso o Índio não foi preso. Wilde Pacheco levou ele livre. Mas, pela postura do Índio, era pra ter sido preso. Eu acho que ali surgiu esse espírito insurrecional no Índio.
Índio — É, começou ali. Quando deu o golpe, eu estava na Faculdade, estava estudando Jornalismo. Chegou um colega lá do Correio do Povo e me disse: “Tem um movimento militar lá em Minas Gerais. As tropas estão se deslocando de Minas Gerais pro Rio de Janeiro.” Eu digo: “É o Exército que está se movimentando. O que eu vou fazer agora?”. Aí, saí da aula, e digo: “Onde é que eu vou?”. Nesse tempo eu estava em Brasília, mas estava estudando aqui. E vinha fazer minhas matérias…

Nubia — Era fácil isso, né? Que barbadinha morar em Brasília e estudar aqui.

Bastos – Não. É que nesse período – eu sei porque acompanhava muito o Ibsen (Pinheiro, ex-deputado federal, atual presidente do PMDB/RS). O Ibsen também tirou o curso assim. Era só fazer os exames do meio de ano e do fim de ano. Não precisava ter frequência no ano letivo. Tinha que passar nos exames do meio do ano e do fim do ano.
Índio — É, eles avaliavam a partir do exame.

Cassol — O senhor trabalhava em Brasília, mas seguia estudando aqui…

Índio — Trabalhava e estava estudando aqui. E transferência não dava, porque, em Brasília, o Darcy Ribeiro (ex-ministro da Educação do governo João Goulart) estava fazendo aquela universidade (UnB – Universidade de Brasília), e nem tinha Jornalismo lá.

Cassol — E o senhor fazia Jornalismo onde?

"O Ruben Berta botou o Caravelle para levar uma pessoa no Rio de Janeiro" l Foto: Cultura Aeronáutica

Índio — Eu fazia na PUC, na Famecos. E aí eu estava ali e digo: “Aqui ninguém sabe nada, nem o Irmão Elvo (Clemente, pró Reitor da PUCRS)”. Digo: “Vou no Brizola”, porque eu sabia que ele estava aí né. Eu acompanhava. Cheguei lá e estava cheio de gente. Na ida, eu encontrei o Rafael Peres Borges. Entrei junto com o Rafael, entramos juntos. Eles estavam já preparando uma resistência contra o golpe. Eles queriam repetir a Legalidade. E aí eu vi o Brizola telefonando para um lugar, dizendo: “eu quero falar com o cônsul Graeff”. Aí veio o cônsul. (E o Brizola): “Cônsul, aqui é o Brizola. Eu queria pedir pro senhor aguardar no aeroporto o avião tal, tal, tal”, porque ele já tinha telefonado pro senhor Berta (Ruben Berta, presidente da Varig), pedindo um avião a jato. Era daqueles Caravelle. O Berta botou o Caravelle para levar uma pessoa no Rio de Janeiro. “Vai chegar o Caravelle tal, tal tal…”

Nubia — Por isso que a Varig  faliu.
Índio — Não, não, naquela época não falia não, porque tinha quem dirigisse né. Faliram porque a incompetência tomou conta. (Brizola disse:) “E aí eu mando uma carta, vai uma pessoa de nome tal, vai lhe entregar uma carta, é pro senhor entregar pessoalmente pro presidente Jango”. Ele começou a articular ali. Uns diziam o que tinham, o que não tinham. O Rafael disse assim: “Eu tenho lá bastante gasolina, tenho um carro lá e tal, e tem um dinheiro lá também, afinal de contas a Caixa é pra atender ao povo, às necessidades populares…”

Nubia — Caixa Estadual…
Índio — Não, a Federal.

Bastos — O Rafael era presidente da Caixa Econômica Federal no Rio Grande do Sul.

Índio — Então eram as necessidades populares: o povo precisa de liberdade e direitos; não pode virar bagunça. Bom aí eu vi que a coisa estava muito boa. Tá, fiquei ali e tal e…

Nubia — Isso na casa do Brizola?

Índio — Eu já fui entrando com o Bruza Neto que estava lá. Então, depois eu fui pra casa. Eu era um guerrilheiro meio descuidado: ia pra casa. Tinha que ficar na trincheira, mas eu fui pra casa, que era mais aconchegante. A trincheira é dura de armar. No outro dia, voltei lá na hora que achei que a coisa ia começar a tomar corpo, porque já começaram a ver se reuniam as estações de rádio de novo, fazer a mesma coisa. Queriam repetir a Legalidade. E aí eu fui lá. Quando eu cheguei no portão assim e vi onde estava um homem de metralhadora, e eu vi uns outros, umas pessoas estranhas ali, assim diferentes, até a roupa, e vi que não era ninguém de partido, de nada, aí eu perguntei: “O doutor Leonel Brizola está?”. Diz ele: “Não, não está”. (E eu disse:) “Eu queria falar com ele. Então, muito obrigado”. (Ele disse:) “Não, um momentinho, o senhor queria falar com ele? Então passe aqui”. E me puxou pelo braço, não… não… passe aqui… e me fez uma revista. Eu nunca tinha sido revistado na minha vida. E me revistou. E puxa pra cá e puxa pra lá, e eu tinha um revólver. Sabe de onde era o revólver? Da Legalidade, aquele que eles deram…

Bastos — Um Taurus.

Índio — Um Taurus. Um 38 Taurus. Eu fui porque, digo “isso aí já está aí”.

“Naquela época, eles prenderam tudo o que puderam”

Nubia — Mas tinha balas ou só tinha o revólver? Tinha munição?
Índio — Tinha balas. (Na Legalidade,) quiseram que eu devolvesse. Digo: “não, isso aqui é troféu de guerra, não devolvo…”

Nubia — Isso em 1961.
Índio — 1961. Aí fiquei e o homem já se entusiasmou e tirou tudo. Mexeu nos (meus) bolsos. Tinha um fio dental ali e ele (perguntou): “Isso aqui o que que é?” Ele achava que era cocaína, uma coisa assim. Eu sei dizer que eu fui preso ali, e me puseram numa caminhonete. E na calçada estava o (jornalista) Bachieri Duarte. Ele viu, me fez um sinal lá; eu vi um sinal… de positivo. Aí o Bachieri saiu dali, e foi falar com o (jornalista) Alberto André (presidente da Associação Riograndense de Imprensa), com o pessoal do Sindicato.

Nubia – Foste levado pra onde?
Índio — Fui levado pra um lugar, que eu sei que era no Trânsito (apelido do DOPS da João Pessoa). Já estava tudo cheio de gente. Já haviam prendido muita gente. Naquela época, eles prenderam tudo o que puderam. Eu sei dizer que eu fiquei lá naquela sala até o amanhecer, quando chegou uma ordem do chefe de polícia para me soltarem, e aí eu soube que foi a ação do Alberto André e do Pedro Flores (repórter fotográfico).

"Quando fui preso, já haviam prendido muita gente" l Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Felipe — Só pra gente se situar: o senhor estava com o Brizola e o pessoal na casa dele no dia 31. No dia primeiro o senhor voltou de manhã? Ou…
Índio – Não. Voltei de tarde, pra saber…

Felipe — De tarde e não havia mais ninguém na casa dele…

Índio — Já tinham perdido a revolução. E eu tentei ainda ir lá na frente da prefeitura e vi aquilo lá e achei mal, tudo, sabe? Quem tinha acompanhado a Legalidade como eu tinha — eu acompanhei toda a Legalidade como repórter do Diário de Notícias, com determinação especial do Ernesto Corrêa (diretor do jornal). Ele disse assim: “Tu tem que fazer isso, isso e isso. Tu tem que acompanhar passo a passo os movimentos do Brizola, senão tu não vai arrumar notícia nenhuma. Tu tem que ver o que ele faz”.

Cassol — E como é que o senhor conseguiu esse revólver?
Índio — Na Legalidade chegou um momento que eles distribuíram armas para pessoas…

Bastos – Para o povo?
Índio – Para o povo.

Cassol — Para os jornalistas inclusive.
Índio — Claro, jornalista é povo, e dos bons.

Bastos — A Legalidade foi um movimento, em que não estiveram só os jornalistas como eu e o Índio, que éramos de Porto Alegre. Os correspondentes estrangeiros, que vieram pra fazer a cobertura, aderiram ao movimento.
Nubia — E pegaram armas também?
Bastos — Não sei se pegaram armas…
Nubia — Mas quantas armas distribuíram? Tens ideia?
Bastos — Não tenho ideia.
Nubia — Tudo era revólver? Só revólver da Taurus? A Taurus forneceu esses revólveres ou esses revólveres eram de onde?

Índio — Não, não, não. A Taurus forneceu.

Nubia — A Taurus estava do lado do…

Índio — Sim, sim. Ao lado da Legalidade, né? A Taurus é do direito. Vai lutar contra? A arma é pra impor o direito. A arma não é pra matar ninguém. É pra impor o direito. É persuasivo.

Nubia — E aí a Taurus deu as armas para o Brizola e o Brizola…
Índio — Isso é agora da filosofia da Taurus, né?

Nubia — Aí a Taurus deu esses revólveres pro Brizola e o Brizola distribuiu e tu ficaste com um revólver. Então, o cara quis te tirar esse revólver.
Índio – É isso aí.

Nubia — E o teu revólver Bastos, onde é que está?
Bastos — Eu recebi na Assembleia. O Luís Carvalho, que era o diretor legislativo da Assembleia na época, que me deu. Quando terminou o movimento ele arrecadou. Eu entreguei.

Felipe — Mas aí o senhor se filiou ao PTB depois da Legalidade?
Índio — Não, não, eu não me filiei. Eu fiquei no jornal, ainda esperando. Depois, o diretório metropolitano do PTB — era um negócio forte, organizado, onde o Brizola falava às sextas-feiras. Um negócio bem organizado. E eles fizeram uma convenção e escolheram algumas pessoas representativas de determinadas categorias.

Felipe — Só uma curiosidade: quanto tempo duravam as palestras do Brizola? Já eram…. no mínimo ..

Bastos – Quatro horas. Toda a noite de sexta. Era das 8 da noite, era depois da voz do Brasil, e emendava até meia-noite. Eu vou te contar uma história de um casal de fazendeiros de São Sepé, conterrâneos do Índio e do companheiro Cassol. O Brizola chega do exílio. É a primeira reunião de formação do PDT, em Santa Maria, aí o (ex-deputado) João Luiz Vargas, que é de São Sepé, apresenta um casal de fazendeiros, com mais de 80 anos. Eram Janguistas, Brizolistas, Getulistas, trabalhistas. “Brizola, são companheiros, lá de São Sepé” (apresentou João Luiz Vargas), e o casal começa a elogiar o Brizola: “Brizola, a gente era maravilhado com o senhor, aquelas suas palestras eram maravilhosas. E o senhor falava, e continuava falando, e a gente dormia, pegava no sono e acordava uma hora depois e o senhor continuava falando. Mas eram maravilhosas aquelas suas palestras”.
(risos)
Índio – Eu também entrei nessa. Um soninho, afinal de contas, ninguém é de ferro. Aí, eu só sei dizer que eu vi que eu deveria me filiar a um partido. E aí perguntaram se eu queria ser representante dos jornalistas, ser representante, não com autorização, nada, representar uma certa categoria de profissionais. Eu digo: “a única profissão que eu tenho aqui é a de jornalista”. (Disseram:) “Então tu vai como jornalista para o diretório metropolitano do PTB”.

Nubia — Que ano era isso?
Índio — Isso era no tempo do governo do Brizola. Depois da Legalidade.

“Deram um tiro num comício sobre a reforma agrária. Aí todo mundo se atira no chão”


Nubia — E antes do golpe.

Índio — E aí, eles me puseram lá. E eu fiquei membro do diretório metropolitano do PTB. E aí eu já fiquei vinculado afetiva e ideologicamente. E aí as coisas vão indo. E eu fui convidado pelo doutor João Caruso (deputado estadual e presidente do PTB RS) pra ir pra Brasília. Eu que saí de São Sepé, meio analfabeto. Mas, fiz força pra aprender. Estava na faculdade já. Esse negócio de analfabetismo não tem nada que ver com faculdade. Isso é outra coisa. É um problema pessoal e de neurônios; a faculdade não tem neurônios. Aí tal, eu estava lá e o doutor Caruso quis me levar, me convidou, eu digo: “mas doutor Caruso, eu tenho só esse emprego aqui, eu trabalho aí”. Nessa época eu já estava no Diário de Notícias. “Mas como é que eu vou viver lá? Eu sou casado”. Diz ele: “não, eu vou te arrumar um emprego”. Digo: “emprego é? Que emprego é esse doutor Caruso?”. Diz ele: “olha é um emprego dos mais disputados que tem aí no governo federal. Fica com esse que esse é bom. Aí tu vai falar com o fulano de tal pra ver qual é o emprego que ele vai te dar; aí tu já fica sabendo. Não vai perguntar pra ele quanto vai ganhar né, fica destoante o negócio”.

É, aí eu fui no Rafael Peres Borges. E entrei lá pra Caixa e tal. Fiz um estagiozinho e me botaram para uma agência no Passo D’Areia. Eu substituí aquele … o primo do Otávio Caruso da Rocha ..

Bastos — O Geraldo Brochado da Rocha

Indio: "Eles acham que reforma agrária é tomar a terra do outro" l Ramiro Furquim/Sul21

Índio — O Geraldo Brochado da Rocha. Eu substituí no caixa. Eu lidando com dinheiro. Eu nem sabia lidar com dinheiro. Fui aprendendo lá. Ele disse assim: “olha, isso aqui é muito bom sabe pra o quê? Fazer campanha eleitoral”. Eu digo: “Não, mas é verdade”. Em seguida, o doutor Caruso me diz: “Agora, nós vamos pra Brasília”. E eu fui pra Brasília e fiquei lá . Eu era do serviço de imprensa lá do ministério… da Superintendência da Reforma Agrária. Eu digo: “Vou fazer um negócio. Vou fazer um texto aí”, porque eu sempre fui metido em textos né. Essa história. Quando a gente mete na cabeça o tal de texto esse aí, ou dá alguma coisa que presta ou o sujeito se enterra pro resto da vida. Então digo: “sabe o que eu vou fazer? Vou fazer um texto que chegue no povo e que explique o que é a reforma agrária”. O pessoal, geralmente, é muito confuso. Eles acham que reforma agrária é tomar a terra do outro. De preferência matar o outro pra ele nunca mais incomodar. Mata e enterra. Fica com a terra e planta. Então temos que mudar isso aí. Eu digo: “O que eu vou fazer? Vou fazer uma espécie de cálculo, vou fazer uma cópia, um plágio do Monteiro Lobato”. Quando eu faço um plagio, faço bem. Aí comecei a redigir, e me entusiasmei ensinando como era a reforma agrária, naquele estilo criativo — muito criativo — do Monteiro Lobato, porque, em matéria de criatividade, ele era doutor né. E eu na reforma agrária, e dava algumas opiniões sobre divulgação da reforma agrária, para entender o que era reforma agrária. E fomos num comício na cidade de Formosa, a 63 quilômetros de Brasília. Um comício para se falar sobre a reforma agrária. Tinha o Betinho (o sociólogo Herbert de Souza) e o Padre Lage (sacerdote mineiro, que lutava pelas reformas agrária e urbana), gente desse tipo assim, interessados em reforma agrária. Queriam mudar, porque esse negócio estava tudo obsoleto, tudo arcaico. E fomos lá. Isso é o comício. Daqui a pouco tinha umas 400 pessoas. Estava bem o comício, o pessoal explicando didaticamente como é que era a reforma agrária, como é que faz, qual é a assistência que o Estado dá, que a União dá, como é a terra e tal. A terra ainda — a Constituição dizia — tinha que ser paga à vista pelo governo. Esse é um negócio incrível. Só no Brasil, que tudo é título da dívida pública. A melhor aplicação que tem em matéria de títulos no Brasil é em titulos da dívida publica. Os estrangeiros nem pagavam impostos até há dois meses. Bom, então estava lá no comício. Daqui há pouco, (ouviram-se) dois tiros lá no meio do comício, e esses dois tiros, mais tiro e mais tiro e foi indo e aquilo ali se generalizou. E eu estava num palanquezinho com uns caixões e umas tábuas. Daqui a pouco uma bala pega um companheiro nosso, um companheiro de palanque — nem sei quem era — e o sujeito cai. Eu digo: “Bah! Mataram o cara”. Aí todo mundo se atira no chão, e dissemos uns pros outros que estavam na caminhonete: “Vamos embora que aqui não vai dar reforma agrária nunca mais”.
(risos)

Nubia — Já desistiram da reforma agrária.
Índio – É. Aí chegamos lá (na Supra, em Brasília) e eu fiz um registro e mandei (para os jornais). Não saiu uma notícia. Não saiu nada. O pessoal da frente agrária é duro na queda. Eles não deixam sair. Não saiu nada e digo: “Aqui estamos fritos”. E também essa minha experiência com a reforma agrária terminou aí, lamentavelmente.

Nubia — Rápida.

Índio — É, rápida.

Cassol — E a sua prisão aqui, voltando, pulando um pouco na história…
Nubia — Não, mas antes da prisão tu me conta o que tu fizeste como guerrilheiro.
Cassol — Pois é, mas daí, o senhor foi preso porque foi na casa do Brizola, depois de solto seguiu…

Índio — Deu o golpe e eu vim embora (de Brasília). Vim num fusca que eu tinha. Deu o golpe e eu não tinha mais nada o que fazer. Vim embora.

Nubia — De Fusca?

Índio — De Fusca.

Nubia – Naquelas estradas.

Índio — Eles sempre souberam controlar o negócio das estradas. Eu me lembro que quando eu ia daqui pra Montevidéu (pós 1964), eu fiz coisas incríveis. Mas, eles levavam tão a sério, e o negócio era meio paranoide. Eles revistavam todo mundo no ônibus. Todos que iam no ônibus, no mínimo, eram subversivos, como eles falavam na época. E um dia eu e o Rafael (Borges Fortes) entramos, vindo lá de Montevidéu; entramos num ônibus de Livramento, mas num ônibus que ia de Livramento para Caçapava. Então não vinha direto. Digo: “não vamos entrar nesse direto porque no direto é que eles pegam as pessoas que vão lá dar recados e fazer tramas contra o governo novo que temos aí. Vamos entrar por Caçapava, porque Caçapava é neutra, é do tempo de 35, tem aquele forte de Caçapava, de 1835”. Aí, de repente, uma barreira. Parou o carro e entrou um sargento, começou a revistar. Na minha frente sentou o Lupicínio Rodrigues. E fiquei quieto. Eu e o Rafael mais atrás. Eu era muito amigo do Hamilton (Chaves, jornalista), ia muito lá na Sbacem (Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música), que era dirigida pelo Lupicínio Rodrigues. Eu sei dizer que o sargento — de repente — viu o Lupicínio ali e disse: “Lupicínio”. Ele (Lupicínio) diz: “Pois é, estamos aqui fazendo uma viagenzinha pra cantar uma musiquinha aí em Livramento e tal”. E o homem ficou tão encabulado e numa situação constrangedora ali, policiando as pessoas, e pega uma pessoa inofensiva como o Lupicínio, que o máximo de agressão que ele fazia era dizer que ela há de morrer… aquele samba em que ele jura que mulher há de sofrer muito mais do que está sofrendo. O máximo que ele faria é isso aí (Vingança, composta por Lupcínio em 1951). Bom, eu só sei que o homem encabulou de tal forma que, quando ia chegar minha vez, ele desistiu e foi embora, e mandou :“pode tocar, está tudo liberado”. E o Rafael diz: “Tu repara, se o Lupicínio soubesse que ele nos salvou aqui porque…”, porque eles tinham o nome das pessoas. Eu tenho certeza que eles tinham o meu, porque eu tinha vendido um auto pro Ferri, o (advogado) Omar Ferri, (e ele) foi preso lá no Chuí, porque estava com o meu nome, não tinha transferido ainda o documento de propriedade.

“O Grupo dos 11 tinha uma tarefa importante: o que ocorresse eles tinham que assumir”


Nubia — Mas, me diz o seguinte: tu fazia parte do Grupo dos 11 do Brizola?

Índio — Não, o grupo dos 11 era assim: eles funcionavam mais no interior do estado. Aqui, em Porto Alegre, não tinha nada, aqui nós tínhamos a organização, que era pararrevolucionária, a organização partidária. Então, no interior tem o diretório, e não tem subdiretório, a não ser cidade grande, eu não sei, eu nunca morei em cidade grande. Nas pequenininhas, só tinha o diretório e olhe lá. Então, eu não fui do Grupo dos 11, mas o Grupo dos 11 tinha uma tarefa importante, que era a mobilização e ficar disposto aí ao que ocorresse, o que ocorresse eles tinham que assumir.

Nubia — Mas eram armados? Estavam armados?

Carlos Marighella: um maoísta l Foto: carlos.marighella.nom.br

Índio — Não, não eram armados. Fizeram um encontro meu com o (Carlos) Marighella (ex-comunista, fundador da ALN – Ação Libertadora Nacional). Eu ia muito a Montevidéu, pra falar com o Brizola e acertar a guerrilha. Nós tínhamos que fazer uma… não era bem uma guerrilha. Era uma insurreição armada. As palavras são muito importantes. Não pode dizer porque senão a repressão fica desconfiada com as palavras. Não com as coisas, mas com as palavras. Eu tinha uma boa impressão do Marighella, que conhecia só de fama, né. E ele: “Não, mas sabe que essa história do Grupo de 11 eu acho muito boa, porque a minha tese, a minha opinião do Brasil é que o Brasil é um continente”. Nós estávamos em Montevidéu. “Aquilo é um continente, como é que vamos fazer aquilo que fizeram em Cuba ou o que querem fazer na Bolívia? Não tem nada a ver conosco. Então, eu acho que (a revolta) tem que partir do campo, vir do campo, porque o campo é mais fácil e é mais necessitado; a pobreza no campo é muito mais dura do que a pobreza na cidade. Então, o nosso ponto de partida, segundo a avaliação dos companheiros, é que nosso trabalho tem que começar no campo. Então, é bom que vocês tenham feito isso”. Essa era a teoria do Mao Tsé-Tung. O Mao Tsé-Tung chegou em Pequim depois de percorrer o campo. Tem aquela história, que contam: ele chegou em Pequim, as forças dele, tudo a pé, não tinha ninguém a cavalo, não tinha nada, a guerra deles era uma guerra a pé, e eles iam entrando na cidade, e diz que um empresário, um médico lá… chegou na sacada e disse: “Enfim a ordem”. Ele não estava mais preocupado em manter as propriedades dele. Ele estava preocupado em preservar a ordem e a sobrevivência dele, porque nesse caos aqui nós vamos tudo nos acabar aqui.

Nubia — Tu está dizendo que o Brizola era maoísta?
Índio – Não. O Marighella era maoísta. Mas, o Brizola, ele também achava que o importante era o campo, que o mais importante era o campo, as coisas tinham que partir do campo sempre. Pois agora, tu repara, agora a essa altura dos acontecimentos, descobriram que tem uma parte pobre e uma parte rica do Rio Grande do Sul. Eles não sabiam. Os dirigentes, os grandes pensadores das relações sociais, das relações econômicas, não sabiam que tinha uma parte muito pobre e atrasada e outra, muito rica e adiantada.

Felipe — Logo em seguida depois do golpe, o Uruguai ainda não era uma ditadura e todo mundo foi pra lá. Como era esse clima em Montevidéu? Estava cheio de brasileiro lá. O senhor encontrava várias figuras como o Marighella e o Brizola…

Índio — Aos monte, aos monte. Não, o negócio com o Marighella foi uma coisa diferente, foi um grupo de pessoas nossas, amigas. Claro, tinha um hotel. O Jango chegou a um ponto que arrendou um hotel lá pra abrigar pessoas que vinham de Porto Alegre. A quantidade de gente que foi de Porto Alegre pra lá era incrível, incrível…

Felipe – Mas então lá em Montevidéu, como era o clima lá? Os brasileiros estavam por tudo, figuras notáveis andavam pelas ruas, como é que…
Índio — Sim, claro. O Darcy Ribeiro, o Brizola, esse pessoal todo, o Jango, cada um tinha seu apartamento lá. O Brizola foi confinado numa praia, porque o Brizola, com a história das relações dele com o próprio governo uruguaio, eles confinaram o Brizola numa praia e só saia dali porque tinha um problema dentário, tinha que ser tratado num dentista numa cidade perto ali. Ficava trancado lá naquela praia, e…

Bastos — Atlântida…
Índio — Xangri-lá, o nome.

Nubia – Atlântida. Está confundindo…

Índio — Atlântida, Atlântida.

“Quando chegasse na hora H aí as armas surgiriam”


Nubia — Mas vem cá, eles tinham te tirado o revólver, depois que tu entraste na chamada guerrilha urbana tu conseguiste alguma arma? De onde? Com o Brizola, em Montevidéu? Como foi?

Índio — Não, mas aí não precisava uma arma, quem precisava era o coronel Jefferson de Alencar (em 1965, o coronel da Brigada Militar Jéfferson Cardim de Alencar Osório tentou implantar um movimento guerrilheiro no Norte do Rio Grande do Sul) e o Alberi (ex-sargento Alberi Vieira dos Santos, membro do Grupo dos 11); eles que fizeram um levante e tal, tomaram a rádio e tal (os integrantes da Guerrilha de Três Passos assaltaram o quartel da Brigada Militar, na cidade e tomaram a rádio de Três Passos). Nós, o nosso trabalho era de mobilização, e quando chegasse na hora H aí as armas surgiriam. Nós sabíamos onde estavam as armas.

Felipe — Esse era o plano de insurreição popular do Brizola?

Índio — Do Brizola, porque o Brizola tinha um dele, mais ou menos discutido com um grupo de pessoas. E tinha uns militares que eram meio açodados, entre os quais o coronel Jefferson que foi sacrificado. Terminaram matando ele. Ele morreu porque não tinha mais condições de viver. Ele estava muito judiado, porque esses militares são assim…

"Tinha uns militares que eram meio açodados, entre os quais o coronel Jefferson", afirma Índio l Foto: Ramiro Furquim/Sul21


Nubia — Mas o coronel Jefferson era do Exército e estava a favor do Brizola é isso?

Índio — É (era da Brigada Militar).

Nubia — Certo, e aí ele tinha um grupo de pessoas ligado a ele pra fazer…
Índio — Tinha, tinha um grupo. Porque aqui tem algumas coisas que não foram contadas. Tem uma coisa que não foi contada: o assassinato do coronel…

Bastos — Jefferson?

Índio — Não, não era o Jefferson. Aquele da Base Aérea de Canoas…

Bastos — Coronel Monteiro?
Índio — É, coronel Monteiro. Era Alfeu Monteiro, coronel Alfeu Monteiro. Já em 1961 ele impediu uma ordem que tinha para os militares bombardearem o Palácio Piratini. Tinha uma ordem de bombardear. Ele ficou a par de tudo. Era comandante da Base Aérea de Canoas. Ele impediu. Ele mandou tirar o ar dos pneus dos aviões a jato e impediu o ataque. Ele que impediu o ataque ao Palácio Piratini. Vão dizer: “não, não foi ele”. Foi sim. Foi ele que impediu. E o coronel, o pai da Juliana, aliás o avô da Juliana (deputada estadual pedetista Juliana Brizola), o Alfredo Daudt, também estava junto e veio aqui pro Palácio, pra ajudar no Palácio. Ele estava ali armado e pronto pra enfrentar. Quer dizer, a Aeronáutica não estava muito coesa, não. E a tentativa do coronel Monteiro foi de fazer com que, no golpe que iam derrubar o Jango, — não derrubaram, mas iam derrubar — a Aeronáutica aderisse a ele (Jango), com adesão em benefício da legalidade, da normalidade, não deixando o país cair na bagunça, na desordem, onde não existe lei, não existe nada, tudo fica na mão de meia dúzia de militares e eles fazem o que querem. Fizeram o que quiseram, e ficaram 21 anos nisso aí que não deu em nada. Então ele foi, ele impediu isso aí. Ele (coronel Alfeu Monteiro) ficou muito marcado. Ele ficou aqui. Nunca foi promovido e nunca foi desligado aqui da Base Aérea. (Em 1964), ele resolveu reagir para obter a adesão da FAB, e o comandante não aceitou a reação dele e executou o colega dentro do gabinete dele (o coronel Alfeu Monteiro foi morto no dia 2 de abril de 1964 com um tiro de pistola 45 pelo coronel-aviador Roberto Hipólito da Costa, que acompanhava o brigadeiro Nelson Freire Lavanère Wanderley, que assumiria o comando da Base Aérea de Canoas).

Esta internet está abrindo tanta coisa, que quando terminar de abrir eu não sei o que vai ficar do Brasil.

Bastos — Não sei se foi dia 31 ou dia 1° de abril. Foi no dia do golpe, ou no dia seguinte, não é isso? Foi ou no dia do golpe ou no dia seguinte do golpe. O comandante da Base Aérea matou o coronel aliado ao Jango.
Índio — Matou o comandante que assumiu uma posição de legalidade. Isso tem que sair como um registro. Isso está tudo escondido. Ninguém sabe. Sabe o Bastos que é um jornalista bem atilado. Muito atilado. Mas agora as coisas estão mudando, porque tem a internet. Eu abri a internet esses dias e disse: “Vou ver o coronel, como está o coronel, a biografia”. O Alfeu, ele tem um nome, Andrada; tem um nome meio nobre no meio. Esta internet está abrindo tanta coisa, que quando terminar de abrir eu não sei o que vai ficar do Brasil.

Cassol — E os arquivos da ditadura, que não abrem?
Índio — Pois esses aí não abrem. Esses só a internet pra abrir. A essa altura eu estou achando que a internet faz tudo. Eu tenho cinco dicionários, mas, agora, não consulto mais. É só internet. Tem que mandar um recado, internet. Tem que fazer isso, internet. Eu só não faço boia na internet, porque não tem fogão ainda lá…

Cassol — Um carreteiro.

Índio — Um carreteiro eu acho que dá pra fazer né?

Cassol — A receita tem lá. Tem esse site WikiLeaks que está vazando documentos oficiais dos Estados Unidos. De repente é por aí que vai vazar os arquivos da ditadura.

Índio — Eu acho que aquela do Lula está muito boa. Vocês não acham boa? (Ele disse que) o problema não é do rapaz que divulgou (Julian Assange). É de quem fez a coisa. Agora pode fazer tudo, mas não pode divulgar. Eles podem fazer tudo o que quiserem. Podem trocar o sexo, podem trocar o diabo, botar a cabeça nos pés, os pés na cabeça, que tudo está muito bem, o que não pode é divulgar. Tu repara, até está certo, por isso é que o Lula tem bastante apoio.

“A história da família Jobim é bem boa, bem boa pros militares.”

Cassol — O nosso conterrâneo (ministro da Defesa, Nelson) Jobim vai fazer força pra não abrirem os arquivos da ditadura.
Índio — Vai, porque ele está muito ligado a eles, né. O Jobim tem uma história. A história da família dele é bem boa, bem boa pros militares.

Felipe – Bem, mas aí o senhor ia pro Uruguai constantemente né, pra organizar essa insurreição, ajudar a organizar a insurreição. Daí ela não saiu, Por que ela não saiu?
Índio — Porque não tinha condições materiais. Para isso, em primeiro lugar, precisa de dinheiro. O Fidel deu um dinheirinho. Só com os pedidos, só com as mordidas, o Brizola teve … O doutor Caruso achava muito engraçado. Disse: “Parece incrível que as pessoas saiam daqui e vão lá em Montevidéu morder o Brizola”. O Caruso não usava essa palavra morder. É uma palavra vulgar. “Vão lá pedir dinheiro pro Brizola, mas tomara o Brizola arrumar um dinheiro com alguém pra se manter lá, ele e a família. (As pessoas) não têm o menor pudor. Vão lá pedir dinheiro pra uma pessoa que está exilada, que não pode dizer nada, que está confinada”. Era assim mesmo.

"Muitos iam a Montevidéu pedir dinheiro a Brizola" l Foto: wikipedia.org

Felipe — O pessoal que perdia o emprego, os correligionários, iam lá procurar o Brizola para pedir dinheiro?
Índio — Iam pedir dinheiro.

Nubia — Mas esse dinheiro é o dinheiro que vinha de Havana? Ou como é que é?

Índio — Não, o dinheiro que pediam era mordida dessa aqui de pedir 500 pila…

Nubia — Mas esse dinheiro que vinha de Havana era pra quem?
Índio — Não, esse é um negócio complicado. Isso aí quem tem que te explicar é o Brizola. Tu tem que chamar o Chico Xavier e fazer alguma sessão aí, e botar a psicografia a funcionar.

Cassol — Mas em Montevidéu ele recebeu um dinheiro pra dar início à insurreição?
Índio — Não, não é bem assim. Isso ele conta diferente. Não era pra fazer insurreição; era pra manter certas situações que estavam insustentáveis. O Brasil é um país muito grande e foi (para Montevidéu) muita gente do Rio Grande do Sul e de fora do Rio Grande do Sul. O frei Betto foi preso, porque trazia gente lá de São Paulo, do Rio e de Minas pra levar pra Montevidéu. Montevidéu era o desaguadouro de tudo. Então, alguém tinha que manter (este pessoal). O Jango manteve muito tempo eles ali.

Felipe — Bom, então não deu certo a insurreição. E o senhor? O que o senhor fez no período entre entrar na guerrilha e esses contatos com o Brizola? O que aconteceu?
Índio — Aí eu fui preso e me botaram na Ilha do Presídio… depois me levaram pra um quartel, depois me levaram pra outro…

Felipe — Mas a insurreição morreu ali por 1966, por ali?
Índio — Em 1966 já não tinha mais condições de fazer insurreição nenhuma.

Felipe — E nesse período entre isso e a guerrilha, o que o senhor fez? O que aconteceu? O senhor estava trabalhando?

Índio – Eu trabalhava. Eu tinha um curso pré-vestibular, que eu preparava o pessoal pra fazer vestibular. Eu era professor de Filosofia. Era graduado em Filosofia. Então, eu era professor. Fui preso no cursinho onde eu dava aula, onde eu era o dono e dava aula. Eu trabalhava, eu não (tinha mais) o emprego da Caixa Econômica. Antes, eu tinha emprego no jornal, tinha emprego no… eu estava à disposição do Planalto, pra fazer a reforma agrária.

Nubia – Ah! Tu não estavas demitido? Exonerado…

Índio – Não. Isso foi antes do golpe. Deu o golpe e foi tudo por água abaixo, foi de roldão. Aí foi o terror.

Felipe — O senhor perdeu o emprego de jornalista, da Caixa Econômica…

Índio — Perdi tudo. Perdi tudo. De jornalista eu não perdi porque já estava meio fora, já estava armando outro ninho, porque ali não dava nada. Eu era empregado do (dono dos Diários Associados, Assis) Chateaubriand, o que tu acha?

Felipe — Mas o senhor tinha participado de algumas ações de guerrilha, ajudado algumas coisas.
Índio — Não, não. Mas, nem isso, nem isso. Ocorre o seguinte: que entre a minha prisão e aquele período anterior, eu fui eleito (vereador de Porto Alegre, em 1968). O Bastos era meu conselheiro. Sempre em assuntos sérios, né. Sérios e legais, juridicamente, pela ditadura e pelo Estado democrático de direito. Eu digo: “Está tudo vazio. Acho que está na hora da gente entrar aí pra ver o que dá pra fazer nesse troço. Está muito parado”. Eles tinham esperança que demorasse muito pouco a ditadura. Eu estava achando eles muito otimistas, sabe? Fui preso no segundo dia, no segundo dia do golpe. Eu era jornalista. Numa época em que jornalista era muito respeitado.

“Falar no Brizola era o mesmo que falar no diabo”

Nubia — Agora não é mais.
Índio – Agora, eu não sei mais. Agora, eu perdi a direção. Sei dizer que, nesse meio tempo, eu fui candidato a vereador. E fiz uma votação muito boa. Fui terceiro (colocado).

Felipe — Quantos votos o senhor fez?
Índio — Sete mil, oitocentos e poucos

Felipe — E o senhor… o senhor tinha entrado…

Líderes estudantis foram presos no Congresso da UNE em Ibiúna l Foto: arquivo 68

Índio — Mas isso aí não vem de mole; não tem moleza nisso aí. Eu pus assim na minha propaganda: “Com as teses de Brizola”. A palavra “teses” ameniza um pouco; a palavra “Brizola” era muito violenta naquela época. Barbaridade! Falar no Brizola era o mesmo que falar no diabo. Então, eu pus isso, e aí, eu tinha um comitê na rua doutor Flores. Fiquei um mês ali. E tinha o programa, programa de propaganda política gratuita para os políticos. Partido A, B e C, como tem até agora. No dia que tocou pra mim, que eu ia falar, eu fui pra lá (na TV Gaúcha, atual RBS TV) e botei meu nome, o número. Eu ia botar o negócio assim, naquele escrito: “Com as teses de Brizola.” Mas digo: “Não, isso aqui vai dar bolo. Em primeiro lugar, a estação vai me vetar, porque a estação tem que se preservar também, tem que preservar a parte dela. Vou deixar, vou deixar.” Aí eu fui pra mesinha ali, botei o meu nome na mesa, o número, e comecei a falar. Digo: “Hoje eu quero começar a minha exposição e meu programa na Câmara de Vereadores dizendo o que ocorreu ontem. Ontem (12 de outubro de 1968) houve um congresso de estudantes da UNE nuns campos, nas proximidades de São Paulo. Se chamam os Campos de Ibiúna. É uma espécie de distrito lá. E se reuniram mais de mil pessoas, tudo clandestino, com o maior segredo pra ninguém descobrir. Uma coisa bem impossível, mas em todo o caso eles fizeram, como se fossem clandestinos. E claro que descobriram. Descobriram, foram lá e prenderam. Prenderam quase todos. Alguns escaparam. Mas, prenderam quase todos. Prenderam mais ou menos 900 estudantes. Se eles ontem prenderam 900 estudantes, dentre os quais está o líder deles, que é o estudante José Dirceu; se eles prenderam esse número tão grande de pessoas, de estudantes, que não têm nada, que simplesmente estão se reunindo para eleger sua direção, amanhã eles vão prender a nação inteira. Então, se preparem todos, que amanhã vai todo mundo pra cadeia.” E aí eu fiz assim, e o rapaz da câmera disse assim: “Olha, desligou aí. Aquele botãozinho vermelho lá desligou. Está fora do ar a estação. Não adianta tu falar mais. Tu tem que te livrar daqui.” Eu digo: “Mas como é que eu me livro daqui?”

Bastos — Isso era ao vivo?

Índio — Ao vivo. Mas, já estava desligado. E o rapaz me disse: “Não, não, aqui atrás tem uma porta”. Era da (TV) Gaúcha. A Gaúcha era que dava o sinal, né. “Aqui atrás tem uma porta. Eu vou abrir essa porta e tu sai pela porta e tu vai dar lá em baixo. Tu vai cair lá na Vila Cruzeiro.”

Bastos — Na Vila Cruzeiro, sim.
Índio — E aí eu fui e fiz isso, é claro! Pois iam me prender. Diz ele: “Porque isso aqui toda vez que vão falar (num) programa político, eles põem um grupo de pessoas pra controlar o que dizem. E estão controlando tudo. E tu está dizendo esse monte de coisas aí. Eles estão apavorados. Então tu te manda”. E eu me mandei, fiquei dois dias…

Felipe — Isso em sessenta e…
Índio — A eleição municipal acho que foi sessenta e seis, sessenta e sete…

Felipe — Isso antes de o senhor ser preso na Ilha do Presídio né?

Índio — Isso, isso é antes… Sessenta e oito é isso aí, sessenta e oito. Aí eu desci pra lá (Vila Cruzeiro) e saí de lá e fui pra casa de um conhecido. Pra casa de um conhecido pra ver como é que estavam as coisas, e mandava que sondassem o comitê.

Felipe — O senhor foi o Márcio Moreira Alves do Sul?
Índio – Não é bem assim não. Tu analisa bem que não é bem assim. As coisas são bem diferentes. Até bem diferentes. E aí eu digo: “Não, então já está tudo bem”. Fui lá e tinha bastante gente. Fui bem recebido e tal. E aí eu sei dizer que transcorreu a eleição. Veio a eleição. Até um santinho apareceu lá, feito na Vila do IAPI. Um santinho: “Índio com as teses de Brizola e tal”. Eu nem mandei fazer. Nem tinha dinheiro pra mandar fazer. Era tudo muito pobre, muito ruim.

Eu sei dizer que eu fiz aquela votação toda, e eles estavam achando que eu era o tal, que eu ia comandar tudo isso aí, e ia arrebentar, tomar conta, depor todo mundo, botar na cadeia e tomar conta, assinar o ato lá de transmissão do cargo. E aí…

“Eu ouvia a Voz do Brasil, esperando pela minha cassação”

Nubia — Foi preso.
Felipe — Cassaram o senhor…
Igor Natusch — Quanto tempo chegou a durar o seu mandato?

Índio foi cassado 20 depois de começar a atuar como vereador l Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Índio — Vinte dias. Fui eleito e diplomado. Depois tem um interregno até a posse, que é quando passa a exercer o cargo. Eu passei a exercer e vinte dias depois… mas eu já sabia, todo mundo dizia que eu ia ser cassado, né. E eu ia pra Voz do Brasil pra esperar minha cassação. Dito e feito, dois dias depois… pá!

Nubia — Cassaram.
Índio — Cassaram. Eu me lembro que os deputados foram quase todos. Vereador só foi um… dois. Paraguassu (vereador, deputado estadual e federal, Aluizio Paraguassu não foi cassado) e a Terezinha (a deputada Terezinha Irigaray, ex-Chaise, foi cassada em 1969).

Bastos — E o resto?
Índio — O resto tudo não foi.

Bastos – Mas, o Paraguassu foi cassado?

Índio — Não, não foi cassado. Que foi me visitar, que foi na minha casa, porque eles ficaram com medo, né? Com toda razão, né.

Nubia — Mas havia grupos armados em Porto Alegre, que assaltavam bancos, essas coisas assim. Tu alguma vez entrou numa coisa dessas?
Índio — Não, eu fui, eu fui muito convidado, achavam que eu era muito bom para um banco.

Cassol — Essa votação fez o senhor crescer na cotação…

Índio – Não. Eu vou contar uma em que eu fui.

Bastos — Algo eu posso falar agora…
Índio — E aí… então você faz a expropriação, né. Tem um especialista nisso aí. Tinha. Era o Edmur Péricles de Camargo (ex-comunista, integrante do grupo de Carlos Marighella). Era um negro com as paletas desse tamanho; com uns braços fortes, cabelo raspado…

“Ele não dizia competência, desempenho das atribuições, ele dizia know how.”

Felipe — Falar de expropriação hoje é mais…
Índio — …sabia umas palavras em inglês e usava muito. Ele não dizia competência, desempenho das atribuições, ele dizia know how. “Eu tenho know how”. Então está bom. Já estamos subindo. Qualquer dia vamos apresentar o know how lá no City Bank, em Wall Street. Não nesse City Bank vagabundo daqui que agora até saiu da… nem ações têm mais na bolsa. Tem o Banco do Rio Grande do Sul que agora está na Bolsa do Rio Grande do Sul, do Brasil. Então era assim o negócio. E um dia eles pediram pra eu dar uma cobertura pra uma ação que eles tinham que fazer em Gravataí.

Nubia — Onde?
Índio — Em Gravataí. No Banco do Brasil. Então, nós tínhamos .. Tudo era muito ruim. Tinha um dinheirinho pra comprar um auto. Repare o auto que nós compramos… velho, um Dauphine. Vocês já ouviram falar?

Nubia – Já. Eu andei…
Milton Ribeiro — Era um Gordini inferior.
Índio — Era inferior. Muito inferior ao Gordini. Tu repara: eu num Gordini (Dauphine). Tinha uma metralhadora, Sabe que metralhadora era? Uma INA. A gente dá dois tiros e embucha.
(risadas)
Índio – Embucha. E quando não vem pra dentro da gente as balas. E eu estava lá dando a cobertura e tal…

“No final da expropriação, o Dauphine não pegou”

Nubia — De arma na mão. De Dauphine.
Índio — De Dauphine…

Nubia — Tu ficou um tempo esperando o pessoal…

Edmur mandou que Índio e Catarina abandonassem o Dauphine l Foto: reprodução

Índio — E tinha o motorista, porque eu estava lá armado pra atirar né. E eu estou ali no que se chama cobertura. Estou ali na cobertura. E o Edmur Péricles de Camargo sai do Banco com uma criança no colo e de mão com uma senhora, uma jovem senhora… Eu digo: “Mas será que o Edmur teve uma conquista no banco e me deixou aqui, fazendo a cobertura?”.
(risos)
Índio — Aí ele fez o sinal e tal. E voltou para o Banco. Depois ele me explicou que tinha uma ação ali. Uma ação pra salvar o Brasil, e a criança não podia levar o trauma, né. Foi tirar a criança e a senhora. Eu sei dizer que nessa retirada, nessa saída dele, o pessoal meio que se arruma lá. Ele viu e já estavam arrumados. E deu um tiro assim: “pá”. E o tiro de uma Luger é um negócio… parece que vai explodir tudo. Bom, aí ele fez a expropriação. Não deu quase nada, porque o gerente não estava. Sempre o gerente não está né? Tem que procurar o gerente. Ele é gerente por quê? Porque é pessoal da confiança do dono do banco. E aí saímos com uma sacolinha de dinheiro. Umas notinhas vagabundas. No tempo da inflação… E eu esperando no carro. Chegou o Edmur com o dinheiro. Quando eu fui ligar, não pegou o carro.
(risos)
Índio — Foi, foi. Não pegou. E o Edmur disse assim: “Olha, eu vou deixar o dinheiro com vocês, e vou me mandar por aqui, porque por aqui eu saio. E vocês dão um jeito. Larguem isso (o carro) aí, botem fora, e peguem esse dinheiro, peguem um ônibus.” E dito e feito. Saímos. Fui embora. Era eu e o Catarina (João Batista Rita) — esse Catarina mataram sabe? Atiraram no mar. E eu e o Catarina entramos no ônibus. E o Catarina — ele que comandava — com aquele dinheiro. Tinha aquele pacote…

Nubia — E as armas? E o fuzil?
Índio — Estava tudo junto. Tudo misturado. Não, não, fuzil não. Não é com fuzil que se faz isso aí. Isso é golpe. Não pode (usar) arma com cano comprido. Tu vai assaltar um banco. Não. Tem que ser uma arma curta, e forte, né? Aí ele (o Catarina) estava ali e estava meio mal acomodado e uma senhora, respeitosa, disse assim: “Moço, o senhor está mal acomodado aí, com esse pacote. Então, eu vou lhe dar lugar. O senhor põe aqui. Senão põe aqui, ou então põe no meu colo”. (O Catarina disse:) “Pode ser no seu colo. Isso aqui são remédios que estou levando. É amostra grátis, que eu estou levando pra Santa Casa e, não tem problema, é uma ajuda que a senhora dá à Santa Casa”. Ela disse: “Claro! Muito bem! O senhor é um homem muito generoso”. Depois, repartimos o dinheiro com três organizações. Três organizações (levaram) cinco cada uma mais ou menos. E não dá pra comprar nada. Não dá pra fazer nada. Eu queria comprar um mimeógrafo; não tinha dinheiro pra comprar um mimeógrafo. Era o tempo do mimeógrafo, repare. Agora, tinha que fazer com a internet. Fazer a revolução pela internet é a melhor coisa que tem. É a maior saída que temos no mundo moderno: fazer a revolução pela internet.

Nubia — Tá, mas me diz o seguinte: tenho uns conhecidos — eu já contei pra eles aqui — que uma vez foram assaltar um banco, não é. Assaltaram, mas quando foram ver o que tinha, tinha só papel. Na verdade, foi um carro forte que foi assaltado, e daí pegaram, cortaram a papelada e jogaram no vaso sanitário. Nunca te aconteceu uma coisa assim?

Índio – Não. Mas, carro forte não dá. Tinha que ser o banco mesmo. O carro forte… pode ter outro. Isso é muito complicado.

Felipe — E vocês pegaram o ônibus pra onde depois do assalto?

Índio — Gravataí/Porto Alegre.

Nubia — Vieram tranquilos?
Índio — Tranquilos. Mas aí que está. Tinha gente no meio. Tinha um deputado no meio, que agora não está mais deputado. E aí é que está. O pessoal não conta, mas o que esses caras (integrantes do regime militar) fizeram conosco aí. Conosco que eu digo é o povo brasileiro, porque nessa altura eu estou falando em nome do povo brasileiro né. Não pensa que estou falando do pessoal de São Sepé, lá dos Cassol. Estou falando pelo povo brasileiro. Nós que somos uma pátria. O alvo foi na pátria; não foi em mim.

Miton — O senhor falou sobre o Catarina, que foi jogado no mar. Em que mar ele foi jogado?
Índio — Tu sabe que ele foi preso. Ele e o Edmur foram presos no aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires. Foi (preso por) um grupo de pessoas que falavam espanhol e português. E pegaram os dois e puseram num avião e desapareceu o avião num sábado. Eles faziam isso aí…

Milton – Não foi no Rio da Prata?
Índio – Não. O Rio da Prata é muito pequeno. Tem que ser no mar mesmo. Mais longe, pra desaparecer.

Nubia — Então nos conta da tua prisão.
Felipe – Não. Primeiro, quantos assaltos o senhor fez? Quantas expropriações?
Índio — Não, eu não fiz mais…

Nubia — Ficou traumatizado?
Índio — Não. Não tinha finalidade; não tinha o que comprar. Porque as coisas pra uma ação dessas são muito caras, difíceis, e não é dinheirinho de banquinho aqui não (que vai resolver).

Felipe — O senhor não era então um defensor da guerrilha urbana, o senhor participou meio de…

Índio achava que o movimento deveria partir do campo l Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Índio — É. Mais ou menos. Porque as circunstâncias levaram né; porque a rigor eu achava que tinha que partir do campo (o levante contra a ditadura), se organizar no campo. Naquele tempo, claro, o povo brasileiro habitava muito mais (o campo). O percentual do povo brasileiro que habitava o campo era maior do que das cidades. Hoje em dia, se der 5% é muito. Hoje. Naquele tempo não era assim. Era completamente diferente. Como era lá na China também.

Felipe — Mas então o senhor participou de uma expropriação…
Índio — Expropriação só uma.

Nubia – Quais foram as outras ações de que participaste?

Índio — Eu fiz uma que, uma vez, eu contei lá na TV Gaúcha. É assim: nós tínhamos um esquema para tomar a Companhia de Guardas.

Nubia — A companhia de quê?
Índio — Companhia de Guardas. Era um quartel do Exército, na Vieira de Castro, que era mais especializado em dar guarda. Quem dá guarda não sabe nada. Só sabe dar guarda e dormir na sentinela, e são soldados de terceira categoria. Mas tem armamento. Nós queríamos as armas deles. Nem o know how queria ir lá: “muito obrigado”.
(risos)
Índio – Aí, então, ali ao lado da Companhia de Guarda tinha uma casa da JUC. Nós tínhamos amigos na casa da JUC. Aí entramos lá e tinha um guarda que dava/fazia…

“Dominamos um guarda e levamos a metralhadora”


Milton – JUC é Juventude…

Índio – Juventude Universitária Católica. Ele tirava guarda. Ele ia do posto dele, e caminhava em cima do muro. Sabe o que eu pensei primeiro? Eu e os outros também. Me laçar. Sabe o que é laçar? Puxar o guardinha. Ele e a metralhadora dele caindo. Tudo. Mas ia ficar muito desmoralizante né? Mas não foi por isso não. Não foi por isso (que não fizemos). Era que nós não éramos bons laçadores. Se fôssemos bons, faríamos. Aí chegamos por trás, assim (faz sinal de quem dá um abraço forte)… Tinha um que era musculoso, e dominou logo ele e a metralhadora. Caiu tudo no chão. Tiraram tudo. (E disseram:) “cala a boca aí. Tu tem que ficar uma hora sem dar sinal porque vamos te matar. Na próxima, vamos te executar aqui”. Então foi isso aí… pegamos uma metalhadora.

Nubia — Pegaram uma metralhadora?

Índio — É, pra isso.
(risos)
Índio — Sabe o que uma metralhadora faz né?

Nubia — Sei, claro. E a metralhadora foi guardada onde? No teu apartamento?

Hélio Fontoura entregou uma metralhadora para Índio guardar l Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Índio – Não. Mas, no meu apartamento eu não tinha (espaço para guardar). Tinha no apartamento do zelador. Eu tinha um armamento que era do Fontourinha (Hélio Fontoura, ex-secretário particular de Leonel Brizola). Se apertou o Fontourinha. O Fontourinha era caçador. Mas ele caçava de metralhadora também. É isso que eu acho engraçado. Ele argumentou para mim que era caçador. Digo: “mas tu caçava de metralhadora?”
(risos)

Bastos – Não, não. Metralhadora não é pra caçar.
Índio — Eu sei dizer que ele me deu. E eu não podia ter em casa, é claro. Já tava meio marcado. Estavam achando que eu ia derrubar o governo. Tu repara só, (o que) eles achavam. Os caras eram tão imbecis que achavam … Pra derrubar esse governo aí só os Estados Unidos. (Era preciso) fazer uma aliança com (o presidente John) Kennedy. Kennedy fez uma aliança com Fidel (Castro), teoricamente, e depois foi lá e traiu o Fidel e mandou a baía dos Porcos (em Cuba) ser invadida pelos americanos. Bom, aí eu…

Nubia — Guardou as armas no…
Índio — Guardei as armas.

Nubia — Guardou na…
Índio — Mas eu guardei lá em cima (no apartamento do zelador). E aí, quando eu fui preso, o pessoal ficou muito… a paranoia toma conta de todo o mundo. Os vizinhos ali, o pessoal dizia que tinha um avião que fazia reconhecimento e tal. E aí foram ver o quê que eu tinha posto em uns sacos lá dentro do apartamento, que seria do zelador. O zelador estava em outro e deixou esse aí pra depósito. E aí tinha fuzil, tinha o diabo ali.

Nubia — Entregaram?
Índio — Não, não, eles tiraram, tiraram, entregaram pra nós, pra minha família. Eles (familiares) atiraram no Guaíba. E eu… já tava lá no Guaíba… (prisão da Ilha do Presídio).

Cassol — Se fala muito da prisão política, que era um espaço de conversa e se idealiza, talvez; eu não sei. Como era o dia a dia da prisão? Para passar o tempo, o que vocês faziam? Quando chegava uma hora de…
Índio — O senhor devia tomar uma cadeiazinha para aprender o que é isso…
(risos)
Índio — Para falar sobre o dia a dia de um preso, só outro preso…

Cassol — …o quê que se fazia?
Índio — … porque ninguém pode imaginar. Tchê, não faz nada. Então tinha gente que não gostava. (Para) quem gosta de ler, é uma maravilha. Os leitores são os grandes sábios que tem o mundo, porque tudo se vive no livro: problemas de amor, de emoções, de deslumbramentos, de coisas extremas…

Cassol — Contratempos…

Ilha do Presídio: onde Índio esteve preso l Foto: aroundtheworld.com.br

Índio — A leitura vai amenizando tudo, vai absorvendo tudo. Então quem lê está a salvo. Quem não lê fica paranoico. Fica afetado psicologicamente, emocionalmente, porque aquilo ali é um negócio que… e depois não é, a gente perde a perspectiva da realidade, né. A realidade mesmo é absorvida pela imaginação da pessoa, porque acha que não vai sair … (Pensa:) eu falei sobre algumas coisas, mas tem coisas sobre as quais eu não fui interrogado, e que ocorreram, e que provavelmente foram filtradas por eles. Então, nunca se sabe nada, nunca se sabe nada.

Nubia — Mas lá na Ilha precisaram interrogá-lo também?

Índio — Não, na ilha não.

Nubia — Foi interrogado no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) …

Índio — No Dops…

“O choque elétrico transforma a cabeça da pessoa num redemoinho”

Nubia — Como foi esse interrogatório lá no DOPS?
Índio — Ah! Bom, era um negócio meio bravo. Tu vai ser interrogado. Então, chega um momento que ou tu não tem o que dizer, ou tu não quer dizer mesmo. Tem os que não querem dizer e tem os que não têm o que dizer e tem os que dizem demais até porque acham que vão se salvar e se enterram mais. Então… quando eles não têm mais alternativas para tirar o… porque aí que está: a arte de prender, a prisão, nesse caso, é para obter informações. Eles querem informações. Nada mais, nada menos que informações sobre os outros do grupo, sobre os que eles buscam, que são pessoas vinculadas à atividade que eles acham ilegal. Então, a gente tem que resistir. Resistindo, resistindo, chega um momento que não dá. A resistência não convence mais. Eles veem que é uma simples resistência e então eles apelam para a violência. E vem a violência mesmo, de bater. Mas, a violência maior é o choque elétrico. O choque elétrico é que desequilibra tudo… Mais do que o pau-de-arara. É na cabeça, né. É nos pulsos, nas pernas, na cabeça. Transforma a cabeça da pessoa num redemoinho e o sujeito perde a noção das coisas e tu perde o sentido. Quando tu perde os sentidos eles veem que, então, tá precisando um atendimento médico. Aí chamam o médico. Porque eles não querem matar ninguém lá dentro. Eles não querem matar, porque dá muito bolo.

Nubia — Isso no DOPS ali da João Pessoa?

Índio — Ahn?

Nubia — Isso foi ali na João Pessoa?
Índio — João Pessoa. Tudo na João Pessoa. Eu não fui interrogado em quartel. Nenhuma vez. Só lá na João Pessoa.

Milton — E o senhor foi obrigado a contar coisas, contou alguma coisa, como é que…
Índio – Não. Mas o que eu contei… porque eles davam a dica. Eles falavam isso e isso. Digo: “não, isso aí não é, isso aí não é, tanto é que vou poder provar que não é por isso e por isso. Agora isso aí é, isso aí é, isso aí é”.

Milton — Mas no que eles estavam interessados?
Índio – Em primeiro lugar, o negócio é o seguinte: tem que ter um motivo. As coisas tem que ter um motivo, um objetivo. Coisas que eles não sabiam muito bem aqui. Eles levavam pro pau assim. Davam pontapé, davam na cara. Tudo que é desmoralizante assim eles faziam. Então, eu acho que uma pessoa frágil, uma pessoa sem a mínima capacidade de reagir, se entrega logo, pois eles liquidam com uma pessoa, moralmente, psicologicamente, emocionalmente. Então aí o sujeito fala, ou então tem que contar uma coisa mais ou menos lógica. As coisas tem que fechar, como eles dizem, com as informações que eles têm dos outros.

Cassol — Mas não precisa dizer necessariamente a verdade.

"Isso eu não diria, nem que me arrancassem os olhos" l Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Índio – É. E pra mim tinha uma coisa muito favorável a mim: eu não tinha participado do ato principal sobre o qual eles estavam agindo, investigando, apurando para punir, que era o sequestro do embaixador, do cônsul americano em Porto Alegre. Eu não estava lá. Mas eu sabia. Tanto sabia que eu indiquei uma pessoa para sair no sequestro. E depois a pessoa veio — ele e o pai – agradecerem (por não ter falado). Depois que passou tudo. Agradeceram tudo. Era um filho do Ajadil de Lemos (secretário do Interior e Justiça do Estado do RS, em 1962 a 1963. Foi cassado como vice-prefeito de Porto Alegre, em 1964), que tava com Flávio Tavares no Rio, e foi preso e tava sendo barbaramente torturado. Pega um sujeito assim classe média, assim estudante de Medicina, eles… E eu sabia, mas eu jamais iria dizer que sabia. Não mesmo. Isso eu não dizia nem que me arrancassem os olhos.

Felipe — Então esse pessoal sofreu bem mais torturas que o senhor, esse grupo, que era outro grupo né?
Índio — Qual é o grupo?

Felipe — O grupo que tentou sequestrar o…
Índio – Ah! Não. Era outro grupo. Eu não participei das ações, porque eles tinham o grupo deles, né. Tanto é que eles foram sequestrar. Não há demérito nisso aí. Eles foram sequestrar o cônsul americano com um fusca. E o cônsul americano tava numa caminhonete blindada. O cônsul americano não era nada mais nada menos que um ex-combatente do Vietnã. Que eles botam também isso aí (ex-combatentes, na diplomacia).

“Eles é que cometeram o delito. O delito de romper com as instituições”


Cassol — Tem uma tese: enquanto a gente discute a decisão da Lei da Anistia e da punição de militares, os militares e o próprio ministro (da Defesa, Nelson) Jobim, volta e meia falam: “bom, se é pra punir os militares tem que punir os que cometeram crimes do outro lado, da resistência”. Como é que o senhor vê essa questão?

Índio – Não. Isso é uma coisa muito lógica: quem é que deu o golpe? Fomos nós, ou foram eles? Eles querem comparar a nós com eles? Mas, isso é impossível. Eles é que cometeram o delito. O delito de romper com as instituições, de rasgar a Constituição, de transformar o Brasil em uma bagunça, de transformar o Brasil num país de ditadura de Terceiro Mundo, que — até para os negócios brasileiros — isso é altamente prejudicial. Um país como a Inglaterra, como a França, a Alemanha não faz negócios com um país onde tem uma ditadura, e ainda é militar, não faz. Não vão jogar o dinheiro deles assim. Eles sabem disso aí. Tudo eles sabem. Mas, a ganância, o poder … vocês não podem imaginar o que seja essa aliança poder e dinheiro. Vocês não podem imaginar. A relação é profunda. Um não escapa do outro. Eles tão sempre juntos.

Milton — Tu és a favor da Comissão da Verdade?
Índio — Sim, sim. Claro, claro. Acho, acho que tem que abrir tudo, tem que abrir tudo. Fez? Tem que abrir.

Cassol — Também se diz que punir torturadores é revanchismo, é algo que pesa também no meio militar. Qual é a sua opinião sobre isso?

Índio – Mas, os militares tão na deles. Tão defendendo a pele deles. Eles foram coniventes com eles mesmos. Eles são coniventes.

Felipe — Tem muita coisa para aparecer?

Índio – Tem. Tem muita coisa. Tem muita coisa. O que os caras fizeram não é sopa não.

Cassol — O ex-presidente Fernando Henrique falou: “concordo que se abram os arquivos, mas não vai aparecer muita coisa”. Palavras do Fernando Henrique Cardoso.

"Enquanto o FHC tava em Harvard, tomando título, o pessoal tava tomando pau" l Foto: Itamaraty

Índio — Mas então o Fernando Henrique tá por dentro disso aí? Não. O Fernando Henrique não sabe disso aí nada. Tava lá, cuidando da beleza dele e recebendo título de doutor de Harvard. Enquanto ele tava em Harvard, tomando título, o pessoal tava tomando pau.

Cassol — O senhor acha que a abertura desses arquivos vai revelar muita coisa?

Índio — Não vai. Eu acho que não vão fazer no Brasil, sabe? O Brasil tá num jogo aí muito… Os Estados Unidos precisam do Brasil, para manter o Continente. Eles são os líderes do mundo, a partir do Continente. Eles querem ter uma hegemonia forte para poder chegar e enfrentar a Europa. A Europa tem um percentual muito baixo do PIB do mundo. E os Estados Unidos têm quase a metade. Têm quase a metade do PIB do mundo. E quais os países da Europa importante que tem? Tem a França… Alemanha que é a principal, rica. A França mais ou menos. A Inglaterra mais ou menos e não é mais do que isso aí. E o resto, a Espanha também tá meio mal de vida, então …

Felipe — Eu tenho mais uma questão: eu li o seu livro “Guerra é guerra, dizia o torturador” e outro livros. A gente lê assim sobre a ditadura e a gente vê que os guerrilheiros eram pessoas bastante jovens. Uns tinham 20 anos…

Índio — Sim, sim, eram jovens.

Felipe — E pessoas que não tinham nenhuma experiência naquilo. A pergunta que eu faço é assim: existia real noção do que estava acontecendo, de como é que seria a reação dos militares? As pessoas, essa gurizada de classe média, sabiam que iam ser barbaramente torturadas?
Índio — Não, não, não sabiam não. A juventude vai muito pelo modismo também, não é? Modismo influi. Ser contra a ditadura é uma coisa… Dá uma boa impressão uma pessoa jovem (ser) contra a ditadura. Uma pessoa jovem a favor da ditadura, ele é um retrógrado. Porque a ditadura é uma situação política arcaica, superada, antiga, que não levou a nada nunca, país nenhum.

Felipe — Mas o que o pessoal que entrava na guerrilha — de repente, às vezes, até de forma despretensiosa, como o senhor até. Por exemplo, o senhor ajudou algumas pessoas, né. O senhor não acreditava que aquela guerrilha ia realmente derrubar o poder. O senhor ajudou alguns companheiros né…
Índio — Sim.

“Eu tenho minhas dúvidas sobre muita coisa”

Felipe — E o senhor não achou que ia ser torturado por essa ajuda. Por exemplo, não achou que ia ficar um ano preso enquanto seu filho era pequeno…
Índio — Não, não, não, não. Nunca achei que ia ser torturado. Eu achava que corria o risco de ser preso. Olha, eu vou dar o nome aqui da pessoa que me advertiu. Não vou dizer que participação ele teve. Na véspera de eu ser preso, o Flávio Koutzii (atual secretário chefe da Assessoria Superior do governador do RS) me disse: “Ou tu sai hoje do Brasil – do Brasil eu tô falando – , hoje, ou em dois, três dias tu tá preso.” Ele saiu naquela noite. Não foi preso aqui. Ele nunca foi preso aqui. Foi preso na Argentina. O negócio é muito mais duro lá.

Cassol – Por que ele lhe advertiu isso? O que tava acontecendo?

Bruno Alencastro/Sul21
"O Flávio Koutzii é de esquerda de verdade" l Foto: Bruno Alencastro/Sul21

Índio — Bom, ele saiu daqui pra se ver livre da prisão aqui, né. E foi lá. E esse pessoal de esquerda, porque o Flávio é de esquerda de verdade, né. Vocês podem dizer: “e tu é de verdade?” Pois eu não sei se sou de verdade. Vou deixar que o tempo passe e que amadureça para ver se sou de verdade ou não, né. Eu tenho minhas dúvidas. Eu tenho minhas dúvidas sobre muita coisa. Só sobre mim mesmo. Aí ele disse assim, disse isso. Dito e feito. Não brinca com o Flávio, que ele é exigente. Ele entrou na guerrilha lá (Argentina), porque ele se viu envolvido lá. Deram apoio para ele. Deram as condições de sobrevivência para ele, e ele entrou no negócio e pá! Prenderam. E ele tomou uma cadeia violenta lá.

Nubia — E como era a convivência dentro da prisão com os companheiros?
Índio — A prisão é muito difícil, porque é muito heterogêneo. Eu me lembro que tinha um grupo, um grupo de São Paulo, entre os quais estava o Rui Goethe da Costa Falcão. Esse aí é um deputado que andou disputando …. ele é um homem ligado à Marta Suplicy. Andou disputando lá, e coisa.

Bastos — Ele foi presidente do diretório do PT em São Paulo…
Índio — É, presidente do diretório do PT em São Paulo…(quando esta entrevista foi feita Rui Falcão ainda não assumira a presidência do PT nacional).

Nubia — Ele tava preso contigo?
Índio — Ele tava preso comigo. E tinha outras pessoas lá de São Paulo. Tudo muito bom o nível. Eles achavam o nível brasileiro aqui no Rio Grande do Sul muito baixo. Diz ele: “o teu pessoal aí tá meio fraco”. Nós tínhamos um coletivo na prisão. A prisão é um negócio grande assim. Tudo cheio de celas. Uns ferros desse tamanho (abre os braços indicando as medidas). Então era assim. Não era cada um na sua cela. Eram quatro em cada cela. A cadeia tem uma coisa, uma peculiaridade especialíssima: elas têm uma ligação, que não se sabe bem como é que chega, com as outras cadeias. O Carandiru, Tiradentes, tem ligação aqui com o presídio de Porto Alegre, o DOPS, a Ilha. Eles tem uma ligação. Não sei bem como é que chega. Tudo é a família. O negócio é a família. Eles se comunicavam bem através da família. Só podia ser. Não tinha outro meio. Então, aquilo ali…

Nubia — Havis presos comuns?
Bastos — Não, o pessoal detido da guerrilha. Só preso político, só prisão política.

Índio — Só prisão política.

Milton — Se comunicavam através dos familiares.
Índio — Então qualquer coisa que haja lá fora, a gente sabe aqui. E, então, quando houve o sequestro do embaixador alemão, eu estava no Hospital Militar do Exército, porque eu fiz um jogo lá de doença. Tinha uma gastrite, né?

Cassol — Deu uma floreada na gastrite…
Índio – É. Pra ver se eu podia fugir. Eu achei que eu não saía com vida. (Eu pensava:) “Do jeito que esses caras tão fazendo aqui isso, vão nos matar todos”. Porque esses caras não vão sair mais daí (do poder). Isso aqui (o poder) é muito rico. Tem muito dinheiro. E eu achava que eles tavam muito bem posicionados para largar isso aí. E largaram porque não tinham mais condições de se manter. Se não, não teriam largado, porque roubavam muito. O que esses caras roubaram… Aquela atitude do (jornal) Estado de S.Paulo foi muito significativa: não publicar absolutamente nada. O total de receitas ali. Tudo aquilo ali é muito significativo. Eles (os integrantes da ditadura) roubaram muito. E não (se) podia dizer nada. Então, a Folha de S. Paulo redigia um grande jornal para o estado de São Paulo. Quebrou. Agora é do Itaú. O Itaú é que manda lá. Então a Folha tá agora nas (seguintes) diretrizes: é a grande moralista, é a rica, é a que tem e que tá com tudo. Então quer dizer o seguinte: que a vida… Eu tava falando da vida na prisão…

Nubia — É.
Índio — A vida na prisão é uma das coisas mais monótonas que existe, porque a diferença cultural é muito grande. Tinha muito camponês lá. Os camponeses são muito bons para fazer… para dar força para uma guerrilha, mas não para a…

“Essa pobreza vai permanecer por mais 100 anos”

Cassol — Companhia.
Índio – Companhia, e fazer um projeto e ajudar a levar um projeto de transformação de uma sociedade como a brasileira, que ainda a essa altura — desde 1500 nós estamos aqui, furungando, e não deu para fazer a reforma agrária. Os Estados Unidos fizeram a reforma agrária faz 200 anos. De 1877/1878 já tinham… (Em 1862, o presidente norte-americano Abraham Lincoln promulgou a Homestead Law, que assegurava a cada cidadão o direito de requerer até 160 hectares de terra). Já tinha a reforma agrária, fizeram a reforma agrária… Que não tem ainda, num país desse tamanho.

Cassol — O que o senhor acha…

Índio — Essa pobreza é insolúvel. Porque dentro desse esquema aí, essa pobreza vai permanecer por mais 100 anos. Com esse esquema, fica 100 anos.

Cassol — E nesse contexto, qual é a sua opinião sobre o papel do MST (Movimento dos Sem Terra)?

"Essa reforma agrária do MST também não é a que tem que fazer" l Foto: Jornal Comunicação - UFPR

Índio – O problema é que eles fazem força, mas eles cometem muita, muita asneira assim. Eles são radicais demais. São provocadores, sem saberem. Fazem uma provocação ali. Às vezes tão encaminhando uma solução para um… porque essa reforma agrária do MST também não é a que tem que fazer. Primeiro, tem que mudar as condições de como vai fazer a reforma agrária no Brasil do ponto de vista constitucional. Tem que fazer isso aí.

Felipe — E o senhor falou agora que nós vamos continuar com esse pobreza por 100 anos…
Índio — Eu acho…

Felipe — …e o objetivo da presidenta é erradicar a miséria…
Índio — A miséria. Pois é, mas a miséria é uma pobreza radical, não é? A miséria é uma pobreza extrema. Essa vão resolver. Essa dá para resolver. Dá para o trabalhador um salário mínimo… É só botar 100 reais no salário mínimo, e dá para esse pessoal pobre aí, e (ele) se defende muito bem. Agora, não é isso aí que vai resolver o problema do Brasil…

Cassol — O senhor votou na Dilma?
Índio — …são 90 milhões de habitantes… 96…
Anh?

Cassol — Votou na Dilma? Qual a sensação de ver uma ex-guerrilheira, presa…
Índio — Por que eu votei na Dilma?

Cassol — Qual é a sensação de ver uma pessoa ex-guerrilheira…

Índio — Eu votei na Dilma pelo seguinte: em primeiro lugar, eu sou amigo da Dilma. Independente de eu ser amigo da Dilma, eu acho que eu deveria votar nela, que eu a conheço já há bastante tempo, e ela é uma pessoa ó… que vocês não conhecem bem… Tem que conhecer a Dilma mais na intimidade, que aí vocês vão ver que a coisa é dura. Ela tem muitos compromissos ali, muitos compromissos com o PT. O PT não gosta muito dela sabe? O PT gosta dos fundadores, pois eles não gostavam nem do Tarso. Foi um parto. (Ele) saiu do PRC (Partido Revolucionário Comunista) e foi pro PT. Eles achavam já um trânsfuga. Enfim, um melância. Eles acham que os bons mesmos são aqueles que fundaram, aqueles que fundaram o partido. Se afundaram também na mediocridade né, porque fundar um partido no Brasil é uma barbada. Aqui é fácil fundar um partido. Não tem muita exigência não… E a Dilma tem uma coisa: ela é uma mulher de uma personalidade muito forte. Muito forte. Ela é estudiosa. Ela é gestora. Ela sabe separar o principal do acessório. Ela não confunde. Não é desses caras que pegam, acham que não há diferença entre o principal e o acessório. Há. Ela sabe avaliar isso muito bem. Um dia eu tava na casa dela, e na biblioteca deles ali tinha dois livros do (Lee) Iacocca. Dois livros…

Nubia — De quem?
Índio — Iacocca. É um escritor americano. Ele é especialista em recuperar firmas falidas, entre as quais, a Chrysler.

Bastos — Foi levado à presidência da Chrysler e recuperou a Chrysler…

Índio — É. Então, olhei assim .. Eu tinha um (livro dele) e li. Sou um ledor. Eu disse: “Mas tu com dois livros do Iacocca? E tu leste?” – “Claro.” “Imagina, então tu tá muito mal intencionada né, porque… Barbaridade… (risos) “Pega toda essa bagulhada aí, para salvar tudo isso aí. Isso aí a maioria tem que botar no fogo”. Ela achou graça. Então ela é assim né. Ela levava os livros do (Louis) Althusser (filósofo francês de origem argelina) de formação marxista. O Althusser é um homem que quis explicar o Marx. Mas, parece que a explicação dele do Marx saiu pior que a do Marx mesmo, né?, que era um obsessivo por filosofia. Então ela levava pro (Carlos) Araújo ler.

Milton — E o Araújo lia?
Índio — O Araújo lia, mas com uma certa dificuldade, porque a coisa não é sopa não.

Milton — O Althusser é difícil…
Índio — É difícil… Então, eu dava uma mãozinha pro Araújo no que podia, né…

Felipe — O Araújo era mais político do que um teórico, ele tinha…

Índio — Sim.

Bastos — …da questão política
Índio — É. Agora a Dilma tem uma coisa, sabe. Ele é mais da política e ela é mais do fazer. Então, ela é uma mulher… Eu disse pra ela, uma vez, uma frase boa. Nunca fiz frase boa. Mas é bom fazer frase boa. Tem umas pessoas que ficaram famosas no Brasil inteiro só fazendo frases. O Nelson Rodrigues é um. Aqueles três lá de Minas Gerais (Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Otto Lara Rezende) são outros, que só fizeram umas frases e ficaram famosos no Brasil inteiro.

“O pragmatismo, quem inventou foi a Dilma”

Nubia — Ibsen Pinheiro faz boas frases.
Índio — O Ibsen Pinheiro é grande fazedor de frases.

Bastos — Grande frasista…
Índio — Grande fazedor de frases. Ele passa a vida toda só pensando na sua vida…
(risos)

Felipe — Mas qual foi a frase que o senhor fez sobre a Dilma?

"A Dilma é uma mulher de uma personalidade muito forte. Ela é estudiosa. Ela é gestora" l Foto: Roberto Stuckert Filho/PR.

Índio — A frase que eu fiz foi assim: “O pragmatismo, que dizem que quem inventou foi William James, aquele filósofo americano e tal, teve um irmão que…

Milton — Irmão do Henry James.
Índio — Henry James… Um letrado com 200 de Q.I. (Disse para Dilma:) “O pragmatismo não foi inventado por ele não. Aquilo é uma conversa de americano para nos embrulhar. Quem inventou foi tu”. E o meu verbo não tá muito certo assim, “quem inventou foi tu” né, mas tem que ser assim porque afinal de contas, nós estamos no proletariado, né?

Milton — Isso aí o senhor falou para a Dilma?
Índio – É. “Quem inventou foi tu”. Ela disse: “tu acha?” Digo: “acho que mais pragmática que tu não existe”. Ela não admite que um desvio, que qualquer floreio, qualquer coisa não tenha sentido. Ela agora já beija criança, já bota a criança no colo, já pega…

Nubia — Mas é o neto né?

Índio — Ela não era disso aí. Ela ficava encabulada com esse tipo de coisa…

Nubia — …mas é o neto…
Índio — Não, não, não, mas além do neto… Na campanha… na campanha…

Cassol — Ela foi aprendendo isso então… Como é que o senhor vê as diferenças da Dilma pro Lula. O Lula é o grande fomentador das massas…
Milton — Mas antes assim, então quer dizer que ela é uma pragmática esclarecida.

Índio — Esclarecida e com o seu objetivo. Senão, não é pragmática.

Felipe — Se tiver que beijar criança ela beija.
Índio — Então ela viu que quem se mete na política convencional… Ela fez política convencional. No PDT começou. Ela ficou de dona do PDT… fez filiação (filiou pessoas) ali na Ilha da Pintada. E depois, um dia, nós subimos, fazendo filiação. E fomos pro Moinhos de Vento filiar pro PDT. O Brizola mandava, né. Nem era o Brizola que mandava. Já era o PDT. O Brizola é que criou o PDT. Então tá, tínhamos de ir ali, no miolo do Moinhos de Vento. E chegava numa casa, chegava o mordomo e perguntava: “a quem tenho a honra de anunciar?” Nós, querendo pegar uma assinatura de uma burguesa daquelas para fundar um partido, para fazer a reforma agrária. Tu repara só. Nosso futuro era brilhantíssimo. E eu dizia assim: “essa não é a zona para nós aqui. Eu acho que nós estamos num campo errado, nós temos que ir para outro campo.” Não há dúvida nenhuma. Mas, como tem que cobrir toda a cidade, vamos fazer uma tentativa. Pode ser que tenha algum desavisado aí que…

Felipe — Normalmente existem as pessoas pragmáticas e as mais teóricas. Quer dizer que Dilma faz ambos. Joga nos dois times.
Índio — É por aí, pegaste bem. Eu acho ela uma pessoa, que se deixarem… Ela tem uns entraves que estão trancando um pouco a ação dela.

Cassol — Doutor Índio, o Lula é um grande comunicador e tem…

Índio – É.

Cassol — …um presidente tem esse papel também, às vezes, de ser uma figura pública. E a Dilma, como o senhor mesmo está falando, é essa pessoa mais pragmática, que bota pra fazer. Isso talvez não a prejudique? Ou ela vai ter que aprender também a ser essa pessoa pública que discursa e que beija criança?
Índio — Não, não. Mas aí o negócio é o seguinte: o Brasil é um país dificílimo hein. Olha, essa diversidade do Brasil. Tu já deu uma saidinha daqui? Passa. Va. De repente, chega no Rio Grande do Norte.

Felipe — Um outro país.
Índio — É como sair daqui e ir pros cafundós da China. É tudo… e não tem nada que ver com o Rio Grande do Sul. O Rio Grande do Sul é um país europeu, aliás, um estado europeu, que a influência europeia é muito forte, fortíssima.

Cassol — Não lá em São Sepé…
Índio — Não, lá tem uns Cassol, bons trabalhadores.

Cassol — Trabalhadores e bons de negócio…
Índio — E bons de negócio… Essa imigração italiana e alemã aqui é um negócio muito importante pro Brasil todo hein. Não esqueça disso.

Nubia — Indio, tu foste um dos que assinaram a Carta de Lisboa (documento de fundação do PDT no exílio) …
Índio – Fui. Assinei.

Nubia … porque tu tava querendo ir pro PDT? Porque o Brizola já era o líder? Ou isso foi por uma questão ideológica…

Índio — Não, não…

Nubia – …ou pelo programa do partido…
Índio — Eu achei que eles tinham razão, porque eu tava desde o início aí. Quando houve a primeira reunião aí, eu estava. Eu achava que tinha que recuperar o PTB. Porque o PTB era uma sigla muito forte. Eu me lembro que o PTB, quando deram o golpe de 64, o PTB tinha maioria na Câmara dos Deputados.

“No Brasil, a gente não pode ser muito ingênuo”

Bastos — 104 deputados
Índio — Só num dia entraram (para o partido) oito deputados. No Brasil, a gente não pode ser muito ingênuo. Tem que ser meio sabido. Eles fazem o jogo, e tem que fazer o jogo, tem que fazer concessões para a burguesia, pra ela ir se amoldando. Senão… Ela tem que ver que ela vai perder tudo. Se ela não fizer concessões, ela perde tudo. E aqui no Brasil é assim: tem que fazer concessões. Isso que o Lula não fez no primeiro governo, e depois foi fazer no segundo, com uma aliança, tem que fazer aqui. Aqui não existe partido. Os partidos daqui não têm consistência ideológica nenhuma. Nenhuma, nenhuma… Eles não sabem nada.

Felipe — E o PDT perdeu? Já teve? Perdeu ou nunca teve?

Índio — O quê?

Felipe — Essa consistência.
Índio — É, nunca teve. Mas, tinha mais um pouco que os outros.

Cassol — Mas como é que o senhor tinha…

Darcy Ribeiro: um intelectual brasileiro l Foto: PDT/RJ

Índio — Tinha… tinha um grupo aí. Por exemplo, o próprio Darcy (Ribeiro). O Darcy, indiscutivelmente, é um intelectual brasileiro, da mais alta, da mais alta…

Bastos — Qualificação.

Índio — Qualificação… Por que ele escolheu o PDT? Deve ter algum motivo. E assim vai indo… vai indo… e tem outros que têm uma certa diferença por causa do Brizola. Mas, o Darcy tá superior a isso aí. Tá acima disso aí. Ele acha que o negócio é…

Nubia – Mas, hoje em dia, no mercado da política qual é que tá valendo mais? PTB ou PDT?
Cassol – Exatamente. Qual é que tá pesando mais?

Índio — É o PTB, que tá pesando mais…

Igor — Mas o PTB nem concorreu na eleição passada…
Bastos — Quantos deputados federais tem o PTB? O PTB não tem mais de 25 deputados federias, o PDT tem 28.

Índio — Ah é? Não tem 25?

Bastos — Não, o PTB tá mal. O PTB tem senadores e o PDT não tem. Nem o PTB nem o PDT tem governadores.

Índio — É, não têm governadores.

Bastos — Tão invictos em governo.

Felipe — O trabalhismo tá superado. É uma ideologia superada.
Índio — Não é uma ideologia superada.

Bastos — Eu vou me permitir falar. É que o PT ocupou muito o espaço do trabalhismo. O que que era o PTB? O PTB tinha o (senador Alberto) Pasqualini. O Pasqualini foi um pensador, um sociólogo. O PTB tinha o Darcy Ribeiro. O PTB tinha o… lá, o que foi governador da Bahia, o Waldir Pires…O próprio Brizola. O PTB tinha o (senador, ex-ministro do Trabalho) Almino Affonso. O Jango pegou o PTB com 56 deputados federais. Não foi na presidência que ele levou o PTB de 56 para 104, o que dobrou a representação do PTB. Foi na vice-presidência. Ele era vice-presidente do Juscelino. E aí ele fez o PTB crescer, porque o Jango era um agregador. Agora é tu que fala, tu que é o entrevistado.
Índio — Mas aí… Mas, o Jango era um agregador, e muito bom. Ele sabia muito bem lidar com essa gente, que ele sabe onde é que estão muitos dos interesses dessa gente. Ele é deles. Ele nasceu deles, não que ele… por convicção não, porque ele no fundo, ele gostava mesmo era do Getúlio (Vargas), né? O Getúlio era uma figura fascinante. Ele fascinava a todos.

Felipe — Mas hoje então o PT ocupou o espaço do PDT do Brizola.
Bastos — Em Porto Alegre, quando houve a redemocratização, o PDT tinha 16 vereadores em 33. É metade da Câmara. Quem é que tem hoje isso? É o PT.
Felipe — Então a Dilma é uma expressão disso.
Bastos — É, a Dilma… é. É ele o entrevistado.

(risadas)
Índio — O Bastos, pelo que eu vejo, é contra a Dilma.

Bastos — Não senhor, não… Sou completamente pela Dilma. Ela é uma gestora. Ela é eficientíssima.
Índio — Quando era secretária da fazenda…

Bastos – Quando era secretária de Minas e Energia do Collares. Eu era secretário de Comunicação.

Índio – Ah! Sim, é. Ah! Se não ocorresse aquilo que ocorreu, que o Collares fez, nomear a Dilma secretária da Fazenda do município, depois de Minas e Energia (do Estado), ela não estaria lá, não seria lembrada.

Bastos — Claro que não.
Índio — Não tinha como ter aparecido. Ela não apareceria noutra circunstancia…

Cassol — Por quê? Por ser mulher?

Bastos — Não, não… é o talento político do Lula. A Dilma foi colocada no programa de governo do Lula, e o Lula sacou a Dilma. Ele…
Nubia — Parece que não. Parece que quem sacou foi o Palocci e o Palocci indicou ela pro Lula.

Índio — Hein?

Nubia — Dizem que não, que quem sacou foi o Palloci que indicou ela pro Lula.
Bastos – Não. Acho que foi o Lula. O Lula tirou a Dilma do programa de governo — tava fazendo o programa de governo — e a Dilma foi tratar de Minas e Energia. Que quando ela assumiu no governo (Alceu) Collares, ela não entendia uma vírgula. Ela era uma economista, que não entendia de Minas e Energia. Só que ela é uma mulher estudiosa, aplicada, determinada…

Cassol — Foi atrás
Bastos — Se aprofundou, e dominou o assunto. E quando chegou, depois de ter passado pelo governo do Collares, de ter passado pelo governo do Olívio (Dutra) aqui, os quatro anos, foi pro programa do Lula. Ela deu um show de bola. Tinha o (físico) Pinguelli Rosa, do PT. Fundador do PT de São Paulo que ambicionava ser o ministro de Minas e Energia no primeiro governo do Lula. E aí já o Lula preteriu ele à Dilma, porque ele viu um talento na Dilma.

“Dilma não tem medo de se incompatibilizar”

Cassol — E esse espaço na carreira política dela … ela foi sendo levada, foi convidada, foi indo, ou por ela ser uma pessoa que não dá ponto sem nó, de alguma maneira pensando lá na frente: “Talvez eu chegue lá”. Talvez não à presidência, mas um dia chegaria a um cargo importante.

"Estive preso junto com o Carlos Araújo, no Presídio Central" l Foto: Fredy Vieira

Índio — Eu convivia muito com eles (Dilma e seu ex-marido Carlos Araújo). Estive preso junto com o Araújo, no Presídio Central. Fizeram uma prisão (política) lá … O setor médico lá foi destinado aos presos políticos, entre os quais estavam o Araújo, eu e outros lá. Ela levava comida pro Araújo. Ao meio-dia. Ela era muito atenta, muito solidária e tal. Então eu vi que ela tinha, além desse pragmatismo e dessa objetividade dela nas coisas, ela tinha praticidade, um sentimento generoso de reconhecimento. Bom, isso aí é um dado. Outro dado que me impressionou muito nela: ela não tem medo de se incompatibilizar com outras pessoas, a não ser com o Lula, porque o Lula é nada mais, nada menos, como vós sabeis, quem a fez presidente. Portanto, ela tem que ter um mínimo de consideração com quem a criou. Mas, ela, no momento em que ela puder se desvencilhar, aí ela toma o rumo dela.

Bastos — Agora já tomei um pouco de vinho, vou dar um pitaco aqui.

Índio — Dar o quê?

Bastos – Pitaco. É moderno. Esse (termo) é da gurizada.
(risos)
O negócio é o seguinte: o Lula tinha várias opções, mas por que ele escolheu a Dilma? O Lula, intimamente, quer voltar à presidência, e ele sabe que a única que tem lealdade e que pode estar com 83% de aprovação no fim do seu mandato, e que se o Lula disser pra ela: “Eu quero voltar a ser presidente”, ela vai entregar.
Índio — Exatamente.

Bastos — O Palocci não entregava, a Marta Suplicy não entregava …

Índio – É verdade, é verdade.

Bastos — … o Mercadante não entregava. Ninguém do PT, da cúpula do PT. O Tarso Genro não entregava. A Dilma entrega. Eu assino aqui uma promissória, hoje…
Índio — Se houver condições que a leve a ter que fazer isso, ela faz. Porque ela está achando muito pesado, porque a Dilma tem 63 anos. Não vamos brincar com as coisas. 63 anos e tal, teve aquela doença, então ela mede muito bem, ela tem um desgaste. Aqui ela se fecha no o apartamento dela e não atende ninguém mesmo. Lá é esse negócio de palácio: ligou um figurão grande tem que atender. Aqui ela não atende. “Diz pro Fumaça lá que não é pra atender ninguém. Pronto, está acabada a história”. E lá não é assim.

Nubia — Indio, esses tempos ouvi uma entrevista em que alguém dizia que o Carlos Araújo tem um pouco de complexo de culpa, ou o que seja, um pouco de arrependimento, porque ele acha que trancou um pouco a carreira política da Dilma. Isso aconteceu mesmo?
Índio — Não, não trancou, porque a Dilma sempre decidia assim, lá na casa dela. Um dia nós estávamos lá então, porque nós fazíamos uma política meio familiar ali. E ela diz assim: “Não, eu estou achando que eu já cumpri minha missão aqui. Eu acho que vou voltar pra Minas”. É mentira, porque Minas é o único lugar pra onde ela não vai. Ela vai pra o Rio de Janeiro. E digo: “Mas tu diz assim… isso é um negócio que não tem sentido. Então só diz Adios pampa mio e pronto.” Eles acharam graça e coisa. Mas, noutro, depois assim… (a Dilma disse:) “Eles têm muito medo que eu vá para o PT”. O PT sempre cabalou a Dilma. Sempre esteve ao redor da Dilma pra levar. Pois se esteve ao redor de mim, não ia estar ao redor da Dilma?!

Cassol — Quer dizer que faltou pouco pra o senhor entrar no PT?

Indio – O quê?

Cassol — O senhor chegou a ser cogitado a entrar no PT?
Índio — Eles me convidaram pra ser de lá.

Felipe — Quando é que o senhor foi convidado?

"O Tarso gosta muito de intelectual. Ele adora intelectual" l Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Índio — Faz tempo. Quando o Tarso estava entrando. O Tarso uma vez inventou que queria ser vice do (ex-governador e senador Pedro) Simon. (Tarso dizia:) “Porque tem o fulano que fala com o Luiz Fernando Verissimo”. Ele (Tarso) gosta muito de intelectual. Ele adora intelectual. Pessoa que não é intelectual pra ele não tem muito valor. Isso eu já vi. Tem que ser intelectual. Agora ele é um intelectual muito engraçado, porque ele é monoglota, ele só sabe português e olhe lá. Então, eu acho que esse negócio… eu sei dizer que eles queriam muito que eu fosse pro PT, porque eu…

Igor — Mas que época isso? Na fundação do PT, que época foi isso?
Felipe — Mas como é que foi sua trajetória política, depois da democratização, ali no PDT? O senhor ficou só na militância? Participou ativamente de algum governo?

Índio – Não. Só na militância…

Bastos — Ele foi candidato. Candidato a deputado federal…

Índio — Eu fui candidato…

Felipe – Viu? Ele ia me enrolando, ele ia dizer que…
Índio – Não. Eu fui duas vezes candidato a deputado. E não quiseram votar em mim. Então não saí né, mas eu acho isso irrelevante. Para mim, é irrelevante isso aí. Sabe por quê? Porque essas eleições são muito discutíveis, né? Eu acho muito discutíveis essas eleições. A não ser as do plano nacional. Claro que a Dilma tem uma coisa que é discutível: se ela não tivesse o apoio do Lula não seria candidata. Nem candidata quanto mais eleita. Então, as coisas são assim. Eu estava mais ou menos nessa linha: eu não tinha apoio de ninguém, eu era sozinho e tal. E fiquei sempre numa tentativa de um legislativo que eu podia desempenhar mais ou menos. Grande coisa não ia ser… e aí eu nunca aceitei um cargo..

Felipe — E no legislativo o senhor ia manter, o senhor ia defender o quê? A reforma agrária?

Índio — Pois é, eu achava muito importante a reforma agrária. Agora não acho mais, porque estou achando que o negócio está liquidado, com essa gente que está aí. E o MST fazendo esse negócio que eles fazem muito errado. Trocam e metem os pés pelas mãos. E essa maneira de fazer a reforma agrária brasileira… nem sequer o pagamento da indenização da terra está regulamentado ainda. Está mal. Está atrasado. O Brasil está atrasadíssimo. Sabe que o Brasil é o país mais atrasado da América do Sul? Da América do Sul não… daqui dos países do Mercosul…

Cassol — Conesul.

Índio — Do Conesul. É o mais atrasado. Mais atrasado que a Argentina, do que o Uruguai, do que a Bolívia. Politicamente mais atrasado que a Bolívia. O Paraguai não, porque o Paraguai nem é país. O Brasil matou todos os paraguaios que tinham lá naquela guerra. Matou tudo e até agora não conseguiu recuperar. Então, o Brasil é um país atrasadíssimo. Tu já viste o nível cultural do povo brasileiro? Tu já pensaste nisso?

Felipe — O que achou do Tiririca?

Índio — Parece que não tem salvação. E é verdade que desse jeito não tem mesmo, né. Mas pode melhorar muito né. A companheira Dilma vai dar uma mão forte.

Igor — Mas o senhor acabou de falar que o senhor acha que se seguir nesse caminho não tem salvação. Então qual é o caminho que, de repente, poderia levar a uma salvação?

Barack Obama: o maior orador depois de John Kennedy l Foto: Alex Wong/Getty Images

Índio — Bom, eu quero saber que apoio a companheira Dilma vai ter no governo. Agora vem, eu queria muito que viesse aqui primeiro, antes dela ir lá (Estados Unidos), que viesse aqui o (presidente norte-americano Barack) Obama ( a entrevista foi concedida antes da visita de Obama ao Brasil). Está na hora de fazer uma observação aqui pros jornalistas. Vocês notaram que o Obama faz uma coisa que ninguém faz no mundo? No mundo. Na França faziam um pouco. Aqui no Brasil eles falam, que é a coisa de fazer o discurso de improviso, que ele não consulta uma palavra. Esse negrão é fogo. Ele tem uma cabeça … ele pega um esquema, o esquema do discurso, bota todo na cabeça, e depois vai pegando ponto por ponto e vai explicitando. Ele faz frases, pode reparar que ele não faz um período, uma frase articulada com pronome relativo. Ele nem sabe o que é pronome relativo… e vai fazendo aquelas frases e tal. E vai pegando aquilo e não consulta um papel. E ele é considerado (o maior) depois do (John) Kennedy, que não era um grande orador né? É o maior depois do Kennedy. Aqui a imprensa não dá muita bola pra isso.

Nubia — E o que tu achas da imprensa, já que tu estás falando nisso?

Índio — Eu acho que está boa a imprensa, né? Pro Brasil está boa.

Nubia — Isso significa o quê?

Índio — Noutro país estaria ruim, mas aqui está boa.

Nubia — Vem cá, vamos voltar um pouquinho atrás. Escuta, tu qualificaste o Jango …
Índio — Eu vou te dar um livro de presente. É de minha autoria… Eu escrevi. O autor é fogo (entregou o livro A Guerrilheira – Mistério e mortes na Ilha do Presídio, publicado em 2005, pela Age Editora).

“Em 64, tinha que ter havido uma resistência”

Um livro diferenciado de Índio Vargas l Foto: reprodução

Bastos — Vou me permitir recomendar um livro do Índio que é o menos falado dos dele, e pra mim é o melhor dele, “A Guerrilheira”.
Índio — Esse aí é um outro gênero, porque aquele gênero eu cansei de fazer. Eu cansei de fazer guerrilha. E o pessoal diz: “Isso é um bobalhão. Não fez nada e tomou uma pauleira lá, e saiu desasado, e vem aqui dar uma de bacana”.

Nubia — Índio eu queria voltar um pouquinho. Tu disseste, logo no início, que o Jânio foi um louco que abandonou o país.

Índio — Sim, certamente.

Nubia — Quando houve o golpe, em 1964, o Jango (ex-presidente João Goulart) foi covarde em não aceitar a…

Índio — Essa pergunta é muito… eu vou dizer uma coisa: eu nessa posição não estava com a generosidade nenhuma, nem com o humanismo do Jango de não querer derramamento de sangue. Eu não ando atrás de derramamento de sangue — eu até sou contra o derramamento de sangue, é muito trabalhoso e tal, mas tinha que haver uma resistência. A coisa foi muito, demais… foi exageradamente…

Nubia — Rápida.
Índio — Rápida e brutal. Foi. Enxotaram (o Jango) como quem enxota um guaipeca.

Nubia – Ele não se portou como um chefe de Estado?
Índio — Eu acho que quem tinha razão é o companheiro Leonel Brizola.

Nubia — O que o Brizola dizia?
Bastos — Eles brigaram, na noite lá. A briga do Brizola e do Jango… ficaram dez anos morando em Montevidéu sem se falar, por causa disso.
Índio – O Bastos nessa área aí — e noutras áreas também — ele é craque, hein? É especialista, olha.

Nubia — Tá, mas acontece o seguinte: quando o Brizola ia mandar esse recado pra ele, que foi o que o Índio contou, “Ó, tem um recado aí e coisa e tal”. O recado não chegou no avião da Varig? Ou o recado chegou?
Bastos — Não, mas aquele recado foi na Legalidade.
Nubia – Ah! Foi na Legalidade. Então, tá. E em 64 ele veio direto pra cá e se encontrou com o Brizola.
Bastos — Ele veio pra cá e se encontram na casa do comandante do III Exército lá no alto da Cristóvão Colombo. E ali o Brizola quis resistir. O Brizola e o (general) Ladário Teles, que tinha assumido uma semana antes o comando do III Exército. Tinha mandado embora o paranaense aquele, o general aquele que… tinha mandado embora. (Ladário) tinha assumido na marra. O Ladário era um legalista, um nacionalista na linha do Goulart. Eles dois defenderam e o Jango disse que não queria derramamento de sangue. E aí o Brizola brigou com o Jango. E eles ficaram brigados dez anos na mesma cidade, Montevidéu, e eram cunhados.

Nubia — Tá, mas a pergunta que tem que ser feita é a seguinte: em 64, havia a possibilidade de fazer uma resistência ou ele sentiu que não havia essa possibilidade? E por isso disse que não queria derramamento de sangue.
Índio — A possibilidade havia e não havia. O que tinha era que testar, botar o negócio lá pra ver.

Nubia — Mas iam testar aqui no Rio Grande do Sul?
Índio — Aí tem que ampliar. Tinha apoio em alguns lugares. É verdade que tinha o negócio da família… da Igreja…

Felipe — É. A Igreja estragou tudo.
Índio — A Igreja foi um desastre pra nós. Eu não sou muito a favor da Igreja.

Bastos — A Igreja foi decisiva. A marcha foi decisiva.
Milton — A Marcha pela Família… Mas, naquele momento, como a Igreja agiu? Foi mais ou menos como na eleição da Dilma?
Bastos — O papel da Igreja. Agora, eles estão divididos. Ali eles não estavam divididos.

Índio — Todas as pessoas que escreveram sobre isso (dizem que) a posição dos Estados Unidos era um negócio vergonhoso. Vergonhoso.

Felipe — Já que voltamos no tempo de novo… O senhor deve — imagino — ter reencontrado militares, e até de repente quem torturou o senhor ou interrogou o senhor. Como é que são esses encontros?
Índio — Eles eram do Rio e São Paulo. Aqui não tinha gente qualificada para torturar presos, para tirar informações, que esse é o objetivo deles, tirar informações pra ver até onde vai a conspiração.

Cassol — Mudando de assunto, o senhor viveu Getúlio né? O senhor pegou o Getúlio na presidência e consegue…

Índio — Na parte democrática eu peguei.

Cassol — Democrática. Mas o senhor compreende, porque viveu com o getulismo: o lulismo suplanta o Getulismo ou é cedo para…

Vargas para Roosevelt: "Presidente, o senhor está visitando um país colonial" l Foto: Wikipedia

Índio — Ah, em termos populares não há dúvida nenhuma. Mas noutros termos, não. Eu vou fazer uma narrativa bem sucinta pra vocês entenderem uma coisa que vocês não sabem muito bem. Desculpe! Quando o (presidente norte-americano Franklin Delano) Roosevelt veio ao Brasil para conversar com o Getúlio sobre a entrada do Brasil na Segunda Guerra, o encontro foi em Natal. O Roosevelt veio de avião, desceu em Natal e se encontrou com o Getúlio num barco brasileiro que estava no porto. Eles conferenciaram lá. Trocaram as informações que tinham que trocar. O Brasil tinha uma ligação muito forte com a Alemanha, ligação econômica. O Getúlio não era de Hitler nem nada. O Getúlio era de onde dava mais.

Bastos — Era um nacionalista.
Índio — Era nacionalista. Ele não ligava pra isso. Aí eles conversaram e o Getúlio disse pro Roosevelt — eu li isso aí: “Presidente, o senhor está visitando um país colonial. Isto aqui é uma colônia. Não tem indústria, não tem nada. Tem só produção de café, de cacau e de algodão, e um pouco de gado. Não tem mais nada. Não tem indústria. E o ponto de partida da indústria é uma indústria siderúrgica. Se nós obtivermos isso dos Estados Unidos, através de um financiamento, nós entramos na guerra. Se não, não entramos”. E o Roosevelt concordou em financiar, porque o que eles (norte-americanos) diziam aí, antes da conferência (era:) “Se eles não cederem, nós vamos tomar o Brasil”. Ora, tomar o Brasil não é assim pô! Não tomavam nem a África lá, a África estava na mão do…

Bastos — Rommel.
Índio — Rommel. O (general alemão Erwin) Rommel estava dominando todo o norte da África. Ia entrar África adentro, ia lá por causa do petróleo e ia ganhar a guerra. O Brasil teve um papel importantíssimo na entrada da guerra, porque impediu que os alemães fossem ao petróleo e abastecessem a máquina de guerra deles. E ganharam a guerra, os aliados.

Cassol — E o Lula onde é que entra na história?

Índio — Não, mas o Lula nem tinha nascido.

Bastos — Ele quer a comparação tua do Lula e do Getúlio.
Cassol — O Lula é mais importante que o Getúlio na história brasileira?
Índio — Absolutamente não. É uma coisa episódica assim. Lula dá salário. O Getúlio também deu salário, deu a CLT, deu tudo isso aí. Isso tudo foi dado antes à moda da época né, mas o Lula não tem estofo pra chegar perto da capacitação de discernir, de dirigir, do Getúlio.

Bastos — O Getúlio trouxe a legislação trabalhista, a Consolidação das Leis do Trabalho, o Getúlio trouxe o voto feminino, o Getúlio trouxe a industrialização do Brasil. O Brasil era uma colônia quando o Getúlio assumiu. O Getúlio entregou o Brasil industrializado. A acusação que fazem que o Getúlio protegeu São Paulo, é que São Paulo se industrializou no período que ele foi presidente. O Getúlio foi um estadista.
Índio — Tanto na ditadura como, depois de quatro anos, na democracia dele. O Getúlio foi um estadista.

Cassol — Como líder popular, o Lula pode se comparar ao Brizola, como líder popular.
Bastos — Não com o Getúlio. Com o Getúlio como estadista não. O Lula é um craque e o Getúlio era um fenômeno.

Índio — É. Era um homem muito maduro. Era um homem que vinha da escola Júlio de Castilhos, aquele positivismo que eles arranjaram. Arranjaram um positivismo aqui pro Rio Grande do Sul. O positivismo que era o negócio do Augusto Comte, da França, e não sei o quê… Botaram aqui. Botaram aqui. Faziam tudo na base do emprego e da formação. Isso aqui não tinha nada. Aquela Revolução de 32 foi um negócio feito pelo Estado de S. Paulo. O jornal Estado de S. Paulo foi que fez a revolução. O Getúlio disse pro (general) Góis Monteiro: “Vai lá e acerta com esse pessoal do Estado de S.Paulo, o jornal. E diz pra eles: ‘só incondicional a rendição, senão não tem’”. O Góis Monteiro chegou lá e disse: “Só incondicional”. Aí eles aceitaram. Mas, teve um que não aceitou: o (general) Guilherme Figueiredo, o pai do (ex-presidente general João) Figueiredo. Não aceitou e continuou a luta. E foram massacrados. Todos.

Cassol — Sobre o Lula: ele não representa uma virada na história do Brasil, do ponto de vista simbólico, em que era o primeiro trabalhador a ser presidente, e também do ponto de vista econômico…

Índio – Ah! Sim. O primeiro trabalhador sim…

Bastos — Mas a virada econômica não foi no governo Lula. A virada econômica foi com o Fernando Henrique. O Lula seguiu a política do Fernando Henrique. Ipsis literis. Ipsis literis. Seguiu em tudo, na política cambial, em toda a política…
Cassol — Mas na área social não…
Bastos — Na área social, ele (Lula) foi muito mais avançado.

Índio — E, depois, na época do Getúlio e na época do Lula, as coisas eram muito diferentes. A pobreza na época do Getúlio era uma pobreza suave assim, pouca gente, o Brasil tinha 60 milhões de habitantes, 60 milhões de habitantes. Agora, tem 200 milhões de habitantes. Um terço dessa população vive na extrema miséria, completamente abandonada, sem saneamento básico, sem nada. Então, isso é um negócio gravíssimo, gravíssimo. Getúlio estava preocupado (com isso). Ele disse (ao presidente Roosevelt): “Nós estamos em um país colonial presidente. Se não desenvolvermos a indústria aqui, não vai deslanchar esse país. E o senhor vai ficar aí: em vez de ter um aliado aqui, vai ter um povo miserável pedindo dinheiro para os Estados Unidos”.

Bastos — O Getúlio criou a Eletrobrás. O Getúlio criou a Petrobras. Quer dizer, é muita coisa. É muita coisa.

"O Lula, quando assumiu, não tinha programa de governo" l Foto: Divulgação

Índio – É. O Lula, quando assumiu o governo, não tinha programa de governo. Ele esboçou um programa de governo, quando a Dilma apareceu lá. Fez o Bolsa Família e tal. Essa coisa assistencialista. Porque eles não tinham um programa de governo. Não tinham estratégia pra desenvolver um país como o Brasil.

“A alma humana é muito frágil para suportar coisas de impacto”

Felipe — E o PMDB ainda por cima…
Índio — Aí tem que ter estômago. (risos)

Nubia – Índio, voltando de novo pra a prisão. Eu quero saber como foi a tentativa de fuga da prisão. Conta como foi a tentativa de fuga.
Índio — O negócio é o seguinte. Havia a impressão — que todos tinham lá, ou quase todos — de que ninguém ia sair vivo de lá de dentro. Então, nós armamos um esquema de tomar a Ilha (do Presídio). Tomar a Ilha por via da força armada. Se nós tivéssemos uma metralhadora lá dentro da cadeia, nós renderíamos toda a guarda. Indiscutivelmente. Não há dúvida alguma, porque o carcereiro entra dentro da cadeia desarmado né. Ele não pode andar armado, (porque um preso) pode tomar a arma dele e… Então nós fizemos um plano, um plano que tinha um pessoal de fora. Umas pessoas daqui de Porto Alegre, que levavam (peças) nas visitas e (também) mandavam por um guarda, que ficou ligado a nós. Um guarda que estudava Direito na PUC. Um guarda da Brigada, que levava pra nós peças de uma metralhadora.

Nubia — E ele chegou a levar mesmo?

Índio — Levou peças. Estava quase prontinha a arma, e quase tudo estruturado pra deflagrar a ação, tomar a ilha, libertar todo mundo. (Foi) quando deu o sequestro do embaixador suíço. Aí tranca tudo, porque eles decretam a invulnerabilidade dos presos. Todos ficam incomunicáveis. Não pode ouvir rádio, não pode ouvir nada, e trancaram toda a nossa ação. E nós achávamos que eles tinham descoberto alguma coisa. Na realidade, não tinham descoberto nada. Tivemos que nos desfazer das peças que tínhamos lá pra montar — lá tinha gente que montava metralhadora com os olhos fechados. Quando serve o Exército, bota uma fita (nos olhos) e monta uma metralhadora. A gente monta.

Nubia — Como é que vocês fizeram com essas peças? Jogaram no rio?

Índio — Aí jogaram no rio, porque eles iam ser rendidos. O nosso fim eu não sei qual seria (se encontrassem a arma). Talvez fosse pior. Talvez nos matassem, ou coisa parecida, porque lá é tudo muito isolado. É no meio do Guaíba aquilo ali (o presídio). Fica difícil o acesso. Tudo é muito difícil lá.

Nubia — E essa moça (Tânia, personagem de A Guerrilheira, envolvida nos planos de fuga)? Ela desapareceu ou ela foi morta?
Índio — Ela desapareceu, porque ela era estudante ali no DAD (DAD – Departamento de Arte Dramática da UFRGS). O DAD  funcionava ali na…

Nubia — Senhor dos Passos?
Índio — É, funcionava ali, e é ligada à UFRGS. Ela era uma aluna compenetrada… burguesa, filha de fazendeiros, e nos ajudou muito. E depois dessa missão lá, desapareceu.

Nubia — Desapareceu? Não se sabe se foi morta, nada?

Índio – Não. Ninguém sabe e ninguém nunca quis abrir nada, porque todo mundo tem medo. Essa é a verdade. Tu ficava muito no jornalismo nessa época e o jornalismo vê as coisas um pouco fragmentadas né? Vê a matéria que você está fazendo né, e deixa de lado…

Nubia — O contexto todo.
Índio — O contexto todo. Mas ela era muito corajosa, muito competente, muito dedicada, dessas que assumem. É um negócio meio tipo…

Nubia — Mas aquele militar que ela conquistou e usava para levar coisas pros presos, ele pode ter desaparecido com ela?

Índio – Não. Aquele não. Aquele ficou.

Nubia – O quero dizer é se ele não pode ter provocado o desaparecimento dela? Pode ter matado…

"Quem contará a história da ditadura?" pergunta-se Índio l Foto: jornaldoleite.blogspot

Índio – Não, porque o desaparecimento dela foi no Rio de Janeiro. Ele estava fora de tudo. Ele se queixava muito que nós sabíamos de tudo e ele, não. Isso tudo é um negócio muito complicado. Esse período do Brasil, eu não sei como é que os historiadores vão fazer, sabe? Eu não vejo aqui … Tinha o Sérgio da Costa Franco, tinha o Décio (Freitas). O Décio morreu. O Sérgio já está ficando meio velho. Não sei quem vai escrever a história desse período. Vinte e um anos não é brinquedo na vida de um Estado pujante e politicamente ativo como o Rio Grande do Sul. Não tem quem escreva né. Não tem quem relate o que ocorreu. O que ocorreu com isso aí, como é que era isso aí. Sabem mais do tempo da Guerra do Paraguai, do tempo da Revolução Farroupilha…

Felipe — Quando o senhor saiu da prisão, durante a ditadura. O senhor continuou fazendo política de alguma forma ou ficou mais parado?

Índio — Não, porque, reparem: a ditadura terminou em 1985, né? Em 1970, eu fui preso até 1975. Fiquei fazendo o que os outros faziam: fui candidato duas vezes pra deputado, e tal. Achava que aquilo era muito importante.

Felipe — O senhor entrou no MDB?

Índio — Eu entrei no MDB. Fui um dos fundadores do MDB. Entrei junto na fundação do MDB, porque era o partido que se opunha à ditadura. E depois, mais tarde, apareceu uma reconstituição do PTB lá em Lisboa para tomar a sigla e fazer um movimento de massa através de uma sigla que era trabalhista. E aí as coisas estavam andando aqui. Foram ver, a sigla estava sendo negociada com (o chefe da Casa Civil, general) Golbery do Couto e Silva, que tinha se mancomunado com a Ivete Vargas. A Justiça deu pra Ivete Vargas a sigla. Aí o Brizola ficou sem sigla e fundou um partido. E eu fiquei no PDT.

Felipe — Então quando o senhor saiu da prisão o senhor não ficou com medo da vida política.

Índio — Não, não…

Felipe — E teve mais alguma ameaça? O senhor sentiu que estavam lhe seguindo, estavam investigando? Alguma ameaça
?
Índio — Eu não sei. Eu vi muita coisa, assim, mas eu acho que tudo ali era um negócio, era uma coisa mais ou menos paranoide né? Eles estavam com uma paranoia da perseguição. Tudo é uma fantasia né. Tanto é que o Delfim Neto foi 16 anos ministro da ditadura e hoje em dia é um conselheiro do Lula. Os militares acham que fizeram grande coisa pelo Brasil: tiraram da mão do comunismo. O comunismo ia entrar aqui e ia fazer o diabo aqui. O comunismo não chegava nem em Santa Catarina. Não chegava em parte nenhuma, porque não tinha força, não tinha apoio popular nenhum, não tinha tradição, não tinha expressão. O pobre do Prestes morreu na condição de expulso do Partido Comunista porque era sectário. Ele teve uma formação militar. Foi guri pro quartel, se formou lá, e ficou com aquele negócio da disciplina e hierarquia e tal… e o partido não aceita isso aí.

Nubia – O que ficou mais marcado na tua memória, quando tu para e pensa em relação à prisão lá na Ilha?

"A gente quando está preso só tem um pensamento: a liberdade" l Ramiro Furquim/Sul21

Índio – Ah! Bom. Isso é um negócio muito complexo. Porque a gente quando está preso – o preso, seja ele comum ou político — só tem um pensamento, uma preocupação, uma coisa que o envolve e pela qual ele luta sempre: é a liberdade. Porque a pessoa só sabe o que é liberdade quando não tem liberdade. Quem tem liberdade não tem noção do que seja liberdade. A liberdade não pode ser racionalizada; ela tem que ser vivida, sentida, e mais: sofrida. Porque a falta de liberdade… Eu não posso passar daquela porta ali. Aquela porta é meu limite. O mundo acaba ali. Eu olhava o pôr do sol e achava belo. Digo: mas que belo? Eu aqui olhando (preso) e o pessoal logo ali adiante no cais, no vento. Então, não dá. O ser humano é muito complexo e muito exigente consigo e com os outros, e com a própria natureza. Tanto é que ele não respeita a natureza. Ele passa por cima da natureza. E se a natureza atrapalha um pouquinho, ele destroi.

Nubia — E com quem tu mais convivia na prisão? Com quem tu mais discutia?

Índio — Olha eu me dava muito bem com todos lá. Eu era meio solitário. Tinha dois companheiros de prisão né, e então eu era muito amigo desse que era deputado lá em São Paulo… Esse Rui Falcão que era presidente do PT lá de São Paulo. Ele e a mãe do Paulo de Tarso, que é um militante do PT. O Paulo de Tarso é uma pessoa muito boa, muito estudiosa. Ele também era estudante de Filosofia. Dava muito estudante de Filosofia lá. Sabe por quê? Porque lá uma parte do pessoal vinha do seminário, do Seminário Maior de Viamão. Esse pessoal era levado a pensar, a questionar a realidade na qual vivem. E aí chega a essas conclusões que tem que mudar, que assim não dá pra viver, que é impossível viver num país assim, e entra pra vida ali, e entra e se dão mal. Teve suicídio. Olha, eu acho que dos nossos lá, dos nossos companheiros lá, teve um grupo que ficou muito tempo lá junto, mais de um ano… três se suicidaram, uns dois ficaram loucos. Então, isso aí é uma coisa muito complexa. A alma humana é muito frágil para suportar coisas de impacto, coisas determinantes na vida, que toca na liberdade da vida da pessoa, no seu projeto pessoal. Então, isso aí é uma coisa muito pungente.

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