Fernando de Oliveira/Diário Regional
Durante quase 40 anos, entre 1932 e 1968, Portugal viveu sob o governo paternalista e dominador de Antônio de Oliveira Salazar. Uma das ditaduras mais longas do mundo. Professor catedrático da Universidade de Coimbra, ele começou a ascender ao poder em 1928, então com 39 anos, ao ser nomeado Ministro das Finanças. Nessa função, ganhou notoriedade ao realizar um trabalho bem-sucedido de reestruturação da política econômica portuguesa, fazendo com que o país melhorasse sua reputação internacional.
Essa “competência financeira” de Salazar despertou a simpatia e a confiança do General Carmona, então Presidente da República, que percebeu nele uma personalidade com capacidade para construir um Estado Novo português. Apesar disso, passaram-se quatro anos até Salazar se tornar Primeiro-Ministro.
Como líder máximo do país, Salazar instituiu o Estado Novo como queria Carmona, porém governou o país, baseado na repressão e na censura. Ele se propunha a “reeducar” moralmente o povo português, que considerava “despreparado”, e preservar os pilares do cristianismo. Para isso, isolou o país do resto do mundo, mantendo-o neutro inclusive durante a 2ª Guerra Mundial. Entretanto, simultaneamente o ditador comandou com “mão de ferro” as colônias portuguesas na África e na Ásia. Não admitia o fim da colonização.
Decorridos mais de 40 anos de sua morte, Salazar é visto como o mais violento ditador da história de Portugal e, invariavelmente, é rotulado de fascista. Contudo, para o professor de história da Universidade Nacional da Irlanda, o português Filipe Ribeiro de Meneses, 41 anos, essa concepção é um equívoco. “Salazar não conquistou o poder pela força, ou pela demagogia, e quis sobretudo que os portugueses vivessem uma vida habitual, sem grandes sobressaltos, habituados a confiar em quem os governava. Esta atitude paternalista contrasta, e muito, com a agitação dos espíritos característica dos regimes fascistas”, afirma ele.
Para entender o que motivou Salazar a se manter durante tanto tempo no poder e desfazer algumas “distorções” sobre sua trajetória política, Filipe dedicou sete anos de sua vida para escrever Salazar, lançado em língua inglesa em 2009 e que, agora, chega ao Brasil. Segundo o autor, esse trabalho gerou polêmica, porque em Portugal “prevalecia a percepção de que, após quarenta e oito anos de um regime autoritário, um estudo biográfico do ditador estava fora de questão: qualquer sinal de empatia ou tentativa de contextualizar e ‘compreender’ Salazar seria um insulto às suas vítimas’”, escreve Filipe, filho de diplomata que serviu no Brasil.
Enquanto participava de um Congresso da Universidade Católica Portuguesa sobre o centenário da Lei da Separação do Estado e das Igrejas, em Lisboa, Filipe encontrou tempo para responder às seguintes questões:
Pergunta — O que fez o povo português tolerar Salazar durante tantos anos no poder? Qual foi o segredo de sua sobrevivência?
Filipe Ribeiro de Meneses –– Temos de ter em mente o fato desse povo sempre ter sido mantido à margem da vida política pelos governantes. Pouco mudou quando, em 1910, foi derrubada a Monarquia e criada a República. A maioria dos portugueses continuou sem poder votar.
Quando o Estado não conseguiu cumprir as suas obrigações mínimas (por exemplo, durante a 2ª Guerra Mundial, quando a questão dos abastecimentos de bens essencias se tornou crítica) é que Salazar correu algum perigo de uma revolução vinda de baixo.
De resto, uma das conclusões a que chego no livro é que o Estado Novo de Salazar nunca cristalizou: foi evoluindo sempre, adaptando-se (dentro de limites impostos por Salazar de forma a preservar o seu poder pessoal) ao que se passava no resto da Europa.
P. — Assim como outros líderes mundiais, Salazar ascendeu ao poder de forma meteórica. Seu trabalho como Ministro das Finanças contribuiu para isso?
F.R.M. –– Não sei se foi assim tão meteórica. Ele passou muitos anos num beco sem saída, que era o Centro Católico Português, partido sem grande sucesso eleitoral e, depois de sobraçar a pasta das Finanças (tinha 39 anos em 1928, quando isso sucedeu), teve de esperar mais de quatro anos para se tornar Primeiro-Ministro — anos esses passados numa guerrilha institucional contra a ditadura militar em que estava inserido. Foi uma campanha lenta, difícil, com avanços e recuos na qual, como diz na pergunta, foi o sucesso financeiro de Salazar o seu maior trunfo, contra a qual potenciais rivais não tinham resposta. Esse sucesso levou ao melhoramento da reputação internacional do país e a que o Presidente da República, o General Carmona, apostasse em Salazar como construtor de um Estado Novo.
P. — Por que até então haviam sido escritas poucas biografias sobre ele?
F.R.M. — Em sua vida, foram escritas muitas, partindo sempre de dentro do regime. Depois de sua morte foi publicada uma vastíssima biografia — seis volumes! — por seu antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira. É uma obra valiosa e incontornável, mas obedece a um critério político claro, critério esse que muitas vezes se sobrepõe à objetividade que deve caracterizar uma obra desta natureza. E depois muito pouco se publicou, e nada partido do meio universitário. Se por um lado os professores mais antigos pertencem a uma geração que menosprezou a história política, e sobretudo a biografia, os mais novos não se aventuraram a escrever esta biografia, apesar do inegável interesse que havia entre o público pelo percurso do ditador. Talvez por eu viver fora de Portugal me tenha sido mais fácil dar esse passo: tinha menos a perder se a biografia fosse mal recebida. Mas, felizmente, a recepção foi muito positiva, sendo o livro um sucesso de vendas.
P. — Salazar foi contemporâneo de líderes sanguinários como Hitler, Mussolini — do qual era admirador e mantinha um retrato sob a mesa de seu escritório — e Francisco Franco e, assim como eles, transformou o Estado em um regime totalitário. Portanto, é justo compará-lo a esses ditadores?
F.R.M. — O Estado Novo era uma ditadura, mas não era um regime totalitário — não ambicionava dominar todos os aspectos da vida dos portugueses, como os regimes a que se refere (em rigor, o de Franco também não o era, embora tenha sido construído à custa de centenas de milhares de vidas, durante e depois da Guerra Civil de Espanha). Salazar não conquistou o poder pela força, ou pela demagogia, e quis sobretudo que os Portugueses vivessem uma vida habitual, sem grandes sobressaltos, habituados a confiar em quem os governava. Esta atitude paternalista contrasta, e muito, com a agitação dos espíritos característica dos regimes fascistas. Em relação à comparação pessoal, esta pode ser estabelecida, claro, mas não é muito útil. A maneira de exercer o poder era totalmente diferente; mais do que os outros três — muito mais, mesmo — Salazar participava ativamente na elaboração de leis e nas minúcias da administração.
P. — Por que o senhor aborda raras vezes os crimes cometidos pelo regime salazarista?
F.R.M. — Não são assim tão raras: falo na repressão salazarista, na PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado português durante o governo de Salazar) e na forma como esta polícia política lidava com os seus detidos; falo na guerra entre a PIDE e o Partido Comunista Português. Mas este livro não é uma denúncia do regime salazarista: é a biografia do ditador — e como muitos outros ditadores, Salazar mantinha uma distância considerável entre a sua pessoa e os crimes cometidos em seu nome, ou em nome do país.
P. — O que Salazar pensava sobre Portugal? Qual era seu projeto para o país?
F.R.M. –– Às vezes penso que Salazar era um nacionalista mais por teoria — porque o nacionalismo era uma ideologia que se coadunava com os seus fins políticos — do que por orgulho na sua nação; ele via qualidades nos portugueses, mas também muitos defeitos. Dizia que eram inteligentes mas pouco metódicos e persistentes; entusiasmavam-se facilmente, mas também se desinteressavam de qualquer tarefa após o primeiro revés; falavam demasiado. Fazia uma leitura muito parcial da história de Portugal, na qual após momentos de grande glória se seguira um declínio ao qual ele tentava pôr fim. Era por isso demasiado benevolente com o passado e demasiado crítico do presente. Quanto a projeto, não havia propriamente um fim, uma meta a atingir: país pequeno, tinha Portugal de se bastar a si próprio, de preservar o seu bom nome e crédito estrangeiro, e ir evoluindo, e modernizando-se, desde que o ritmo dessa modernização não pusesse em questão a paz social e os valores que ele identificava como essenciais.
P. — No livro, o senhor defende que classificar Salazar como fascista trata-se de um equívoco. Por quê?
F.R.M. — Porque vejo no termo “fascista” um conceito bem definido. Quero dizer com isto que distingo a categoria política de “fascismo”, que vários historiadores e politólogos têm tentado definir — de forma a estabelecer se o termo é apenas aplicável a Itália ou se, pelo contrário, se pode aplicar a outros movimentos europeus e mundiais — e o insulto. Neste segundo sentido, menos preciso, “fascista” é sinônimo de autoritário, retrógrada, reacionário. Quando digo que ele não era fascista é porque não o consigo encaixar nas definições acadêmicas existentes do fenômeno fascista.
P. — Qual foi a relação de Portugal com o Brasil durante o salazarismo?
F.R.M. — Teve altos e baixos, sendo naturalmente ditada pelos interesses dos dois países. Mas era mais importante para Salazar ter um bom relacionamento com o Brasil, porque o ajudaria a legitimar-se perante o povo português e perante o resto do mundo, do que para sucessivos governantes brasileiros terem boas relações com Portugal. Por isso muitas vezes o Brasil desiludiu Salazar: com a entrada na 2ª Guerra Mundial; com o exílio concedido a figuras da oposição; e, claro, com a oposição à política colonial de Portugal. A diplomacia portuguesa empenhou-se a fundo para receber do Brasil o aval para a defesa das colônias na África, porque a explicação ideológica do colonialismo português assentava no “lusotropicalismo” de Gilberto Freyre: Portugal, tendo construído um modelo de sociedade multirracial na América do Sul, estava agora fazendo o mesmo na África. Tal afirmação, para ser tida como válida, carecia da aprovação brasileira: mas esta nunca chegou, nem durante a ditadura militar.
P. — Passados mais de 40 anos de sua morte, o que ainda existe da era Salazar em Portugal?
F.R.M. — Depois de 37 anos de democracia, já não podemos atribuir as culpas dos problemas estruturais do país (tão visíveis, infelizmente, nestes dias de crise financeira) a Salazar, que morreu em 1970. Portugal deixou de ser uma nação colonial; tem uma economia aberta; aderiu à CEE, sendo agora membro da União Europeia; os valores que Salazar queria eternizar foram substituídos por outros bem diferentes. Ele ficaria horrorizado se visse o país em que Portugal se transformou.
Nos seus últimos anos de governo, Salazar queixava-se de ter deixado grandes obras que assinalassem a sua passagem pelo poder. Dizia ele que, tendo sido necessário fazer tudo do início, se tinha desdobrado em muitas obras pequenas, equipando o país com estradas, escolas, barragens, portos, preparando-o, com algum atraso, para o Século XX. Muitas dessas obras, como pode imaginar, estão de pé, sendo a mais importante a Ponte 25 de Abril, em Lisboa, que durante oito anos se chamou “Ponte Salazar”.
P. — Como o povo português avalia o período em que ele governou o país?
F.R.M. — Estamos num momento interessante em relação a esta pergunta: com Portugal prestes a receber ajuda financeira externa, quer da União Europeia, quer do FMI, já vários comentadores apontaram o fato de Portugal apenas ter tido as finanças em ordem, durante um período prolongado, durante o governo de Salazar. Mas praticamente todos estão ainda de acordo que o preço político e social pago por esse equilíbrio orçamental foi demasiado alto. E o resto do país, parece-me a mim, pensa da mesma forma. Não nos podemos esquecer, que para os portugueses com mais de 50 anos, as memórias desse período se confundem com as memórias da infância, da juventude, da afirmação profissional. Tais recordações ultrapassam, em larga medida, a esfera política. Existe, porém, nestas gerações anteriores à minha, uma fratura importante: a experiência africana, quer entre civis que lá nasceram, ou se estabeleceram, quer entre os soldados que participaram nas guerras coloniais. Muitos portugueses não se reconciliaram totalmente ainda com a perda do “ultramar”.
P. — O que o senhor pretendeu ao escrever essa biografia?
F.R.M. –– Pretendi mostrar que se pode — e deve, depois de tanto tempo — encarar Salazar como parte da história contemporânea de Portugal; que se pode — e deve — enquadrar as suas decisões no contexto nacional e internacional da época, como se faz com qualquer outra personagem histórica. Não nos devemos fiar no que dizem os seus apoiantes, nem, automaticamente, no que dizem os seus opositores, ou seus descendentes ideológicos: a História tem de ser sempre crítica, revisitando todos os temas, por muito consenso que haja em torno de uma figura, ou de um período. O regime nascido no dia 25 de Abril de 1974 teve de se afirmar por oposição ao Estado Novo, tal como o Estado Novo se afirmou por oposição à Primeira República: mas essa necessidade política de denegrir o passado, visível até na Constituição Portuguesa hoje em vigor, não satisfaz a necessidade intelectual, ou o desejo, de melhor conhecer a história.
Informações sobre o livro
Título: Salazar, de Filipe Ribeiro de Meneses; Ed. Leya Brasil; 815 páginas.
Preço: R$ 59,90.