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1 de maio de 2011
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18:50

Salazar, a biografia de um ditador

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Sul 21
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Salazar: um acadêmico que optou por governar pela força

Fernando de Oliveira/Diário Regional

Durante quase 40 anos, entre 1932 e 1968, Portugal viveu sob o governo paternalista e domi­nador de Antônio de Oliveira Salazar. Uma das ditaduras mais longas do mundo. Professor catedrático da Universidade de Coimbra, ele começou a ascender ao poder em 1928, então com 39 anos, ao ser nomeado Ministro das Finanças. Nessa função, ganhou notoriedade ao reali­zar um trabalho bem-sucedido de reestruturação da política econômica portuguesa, fazen­do com que o país melhorasse sua reputação internacional.

Essa “competência finan­ceira” de Salazar despertou a simpatia e a confiança do General Carmona, então Pre­sidente da República, que per­cebeu nele uma personalidade com capacidade para construir um Estado Novo português. Apesar disso, passaram-se quatro anos até Salazar se tornar Primeiro-Ministro.

Como líder máximo do país, Salazar instituiu o Estado Novo como queria Carmona, porém governou o país, baseado na repressão e na censura. Ele se propunha a “reeducar” mo­ralmente o povo português, que considerava “despre­parado”, e preservar os pilares do cristianismo. Para isso, isolou o país do resto do mundo, mantendo-o neutro inclusive durante a 2ª Guerra Mundial. Entretanto, simulta­neamente o ditador comandou com “mão de ferro” as colô­nias portuguesas na África e na Ásia. Não admitia o fim da colonização.

Decorridos mais de 40 anos de sua morte, Salazar é vis­to como o mais violento dita­dor da história de Portugal e, invariavelmente, é rotulado de fascista. Contudo, para o pro­fessor de história da Univer­sidade Nacional da Irlanda, o português Filipe Ribeiro de Meneses, 41 anos, essa con­cepção é um equívoco. “Sa­lazar não conquistou o poder pela força, ou pela demagogia, e quis sobretudo que os por­tugueses vivessem uma vida habitual, sem grandes sobres­saltos, habituados a confiar em quem os governava. Esta atitude paternalista contrasta, e muito, com a agitação dos espíritos característica dos regimes fascistas”, afirma ele.

Felipe: Salzar queria que os por­tugueses vivessem uma vida habitual

Para entender o que mo­tivou Salazar a se manter du­rante tanto tempo no poder e desfazer algumas “distorções” sobre sua trajetória política, Filipe dedicou sete anos de sua vida para escrever Salazar, lançado em língua inglesa em 2009 e que, agora, chega ao Brasil. Segundo o autor, esse trabalho gerou polêmica, por­que em Portugal “prevalecia a percepção de que, após quaren­ta e oito anos de um regime au­toritário, um estudo biográfico do ditador estava fora de ques­tão: qualquer sinal de empatia ou tentativa de contextualizar e ‘compreender’ Salazar seria um insulto às suas vítimas’”, escreve Filipe, filho de diplo­mata que serviu no Brasil.

Enquanto participava de um Congresso da Universida­de Católica Portuguesa sobre o centenário da Lei da Sepa­ração do Estado e das Igrejas, em Lisboa, Filipe encontrou tempo para responder às seguintes questões:

Pergunta — O que fez o povo português tolerar Salazar durante tantos anos no poder? Qual foi o segredo de sua sobrevivência?
Filipe Ribeiro de Mene­ses –
– Temos de ter em mente o fato desse povo sempre ter sido mantido à margem da vida política pelos governan­tes. Pouco mudou quando, em 1910, foi derrubada a Monar­quia e criada a República. A maioria dos portugueses con­tinuou sem poder votar.

Quando o Estado não con­seguiu cumprir as suas obriga­ções mínimas (por exemplo, durante a 2ª Guerra Mundial, quando a questão dos abastecimentos de bens essen­cias se tornou crítica) é que Sa­lazar correu algum perigo de uma revolução vinda de baixo.

De resto, uma das conclu­sões a que chego no livro é que o Estado Novo de Salazar nun­ca cristalizou: foi evoluindo sempre, adaptando-se (dentro de limites impostos por Sala­zar de forma a preservar o seu poder pessoal) ao que se passa­va no resto da Europa.

P. — Assim como outros líderes mundiais, Salazar ascendeu ao poder de forma meteórica. Seu trabalho como Ministro das Finan­ças contribuiu para isso?
F.R.M. –
– Não sei se foi as­sim tão meteórica. Ele passou muitos anos num beco sem sa­ída, que era o Centro Católico Português, partido sem grande sucesso eleitoral e, depois de sobraçar a pasta das Finanças (tinha 39 anos em 1928, quan­do isso sucedeu), teve de espe­rar mais de quatro anos para se tornar Primeiro-Ministro — anos esses passados numa guerrilha institucional contra a ditadura militar em que estava inserido. Foi uma campanha lenta, difí­cil, com avanços e recuos na qual, como diz na pergunta, foi o sucesso financeiro de Sala­zar o seu maior trunfo, contra a qual potenciais rivais não ti­nham resposta. Esse sucesso le­vou ao melhoramento da repu­tação internacional do país e a que o Presidente da República, o General Carmona, apostasse em Salazar como construtor de um Estado Novo.

P. — Por que até então haviam sido escritas poucas biografias sobre ele?
F.R.M. —
Em sua vida, fo­ram escritas muitas, partindo sempre de dentro do regime. Depois de sua morte foi publi­cada uma vastíssima biogra­fia — seis volumes! — por seu antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Noguei­ra. É uma obra valiosa e in­contornável, mas obedece a um critério político claro, cri­tério esse que muitas vezes se sobrepõe à objetividade que deve caracterizar uma obra desta natureza. E depois mui­to pouco se publicou, e nada partido do meio universitário. Se por um lado os professores mais antigos pertencem a uma geração que menosprezou a história política, e sobretudo a biografia, os mais novos não se aventuraram a escre­ver esta biografia, apesar do inegável interesse que havia entre o público pelo percurso do ditador. Talvez por eu vi­ver fora de Portugal me tenha sido mais fácil dar esse pas­so: tinha menos a perder se a biografia fosse mal recebida. Mas, felizmente, a recepção foi muito positiva, sendo o livro um sucesso de vendas.

"Sa­lazar participava ativamente na elaboração de leis e nas minú­cias da administração", diz biógrafo

P. — Salazar foi contem­porâneo de líderes sangui­nários como Hitler, Musso­lini — do qual era admirador e mantinha um retrato sob a mesa de seu escritório — e Francisco Franco e, assim como eles, transformou o Estado em um regime totali­tário. Portanto, é justo com­pará-lo a esses ditadores?
F.R.M. —
O Estado Novo era uma ditadura, mas não era um regime totalitário — não ambi­cionava dominar todos os as­pectos da vida dos portugueses, como os regimes a que se refere (em rigor, o de Franco também não o era, embora tenha sido construído à custa de centenas de milhares de vidas, durante e depois da Guerra Civil de Es­panha). Salazar não conquistou o poder pela força, ou pela de­magogia, e quis sobretudo que os Portugueses vivessem uma vida habitual, sem grandes so­bressaltos, habituados a confiar em quem os governava. Esta atitude paternalista contrasta, e muito, com a agitação dos espíritos característica dos re­gimes fascistas. Em relação à comparação pessoal, esta pode ser estabelecida, claro, mas não é muito útil. A maneira de exercer o poder era totalmente diferente; mais do que os outros três — muito mais, mesmo — Sa­lazar participava ativamente na elaboração de leis e nas minú­cias da administração.

P. — Por que o senhor abor­da raras vezes os crimes come­tidos pelo regime salazarista?
F.R.M. —
Não são assim tão raras: falo na repressão salaza­rista, na PIDE (Polícia Interna­cional e de Defesa do Estado português durante o governo de Salazar) e na forma como esta polícia política lidava com os seus detidos; falo na guerra entre a PIDE e o Partido Co­munista Português. Mas este livro não é uma denúncia do regime salazarista: é a biogra­fia do ditador — e como muitos outros ditadores, Salazar man­tinha uma distância considerá­vel entre a sua pessoa e os cri­mes cometidos em seu nome, ou em nome do país.

P. — O que Salazar pen­sava sobre Portugal? Qual era seu projeto para o país?
F.R.M. –
– Às vezes penso que Salazar era um nacionalista mais por teoria — porque o nacionalis­mo era uma ideologia que se co­adunava com os seus fins políti­cos — do que por orgulho na sua nação; ele via qualidades nos portugueses, mas também mui­tos defeitos. Dizia que eram in­teligentes mas pouco metódicos e persistentes; entusiasmavam-se facilmente, mas também se desinteressavam de qualquer ta­refa após o primeiro revés; fala­vam demasiado. Fazia uma lei­tura muito parcial da história de Portugal, na qual após momen­tos de grande glória se seguira um declínio ao qual ele tentava pôr fim. Era por isso demasiado benevolente com o passado e demasiado crítico do presente. Quanto a projeto, não havia pro­priamente um fim, uma meta a atingir: país pequeno, tinha Por­tugal de se bastar a si próprio, de preservar o seu bom nome e cré­dito estrangeiro, e ir evoluindo, e modernizando-se, desde que o ritmo dessa modernização não pusesse em questão a paz social e os valores que ele identificava como essenciais.

P. — No livro, o senhor defende que classificar Sala­zar como fascista trata-se de um equívoco. Por quê?
F.R.M. —
Porque vejo no ter­mo “fascista” um conceito bem definido. Quero dizer com isto que distingo a categoria política de “fascismo”, que vários histo­riadores e politólogos têm tenta­do definir — de forma a estabele­cer se o termo é apenas aplicável a Itália ou se, pelo contrário, se pode aplicar a outros movimen­tos europeus e mundiais — e o insulto. Neste segundo sentido, menos preciso, “fascista” é sinô­nimo de autoritário, retrógrada, reacionário. Quando digo que ele não era fascista é porque não o consigo encaixar nas defini­ções acadêmicas existentes do fenômeno fascista.

P. — Qual foi a relação de Portugal com o Brasil duran­te o salazarismo?
F.R.M. —
Teve altos e baixos, sendo naturalmente ditada pe­los interesses dos dois países. Mas era mais importante para Salazar ter um bom relaciona­mento com o Brasil, porque o ajudaria a legitimar-se perante o povo português e perante o resto do mundo, do que para sucessivos governantes brasi­leiros terem boas relações com Portugal. Por isso muitas vezes o Brasil desiludiu Salazar: com a entrada na 2ª Guerra Mundial; com o exílio conce­dido a figuras da oposição; e, claro, com a oposição à política colonial de Portugal. A diplo­macia portuguesa empenhou-se a fundo para receber do Brasil o aval para a defesa das colô­nias na África, porque a expli­cação ideológica do colonia­lismo português assentava no “lusotropicalismo” de Gilberto Freyre: Portugal, tendo cons­truído um modelo de sociedade multirracial na América do Sul, estava agora fazendo o mesmo na África. Tal afirmação, para ser tida como válida, carecia da aprovação brasileira: mas esta nunca chegou, nem durante a ditadura militar.

Problemas de Portugal já não podem ser atribuídos ao ditador - Foto: Bernard Hoffman/Life Magazine/Reprodução

P. — Passados mais de 40 anos de sua morte, o que ain­da existe da era Salazar em Portugal?
F.R.M. —
Depois de 37 anos de democracia, já não pode­mos atribuir as culpas dos problemas estruturais do país (tão visíveis, infelizmente, nestes dias de crise finan­ceira) a Salazar, que morreu em 1970. Portugal deixou de ser uma nação colonial; tem uma economia aberta; aderiu à CEE, sendo agora membro da União Europeia; os valores que Salazar queria eternizar foram substituídos por outros bem diferentes. Ele ficaria horrorizado se visse o país em que Portugal se transformou.

Nos seus últimos anos de governo, Salazar queixava-se de ter deixado grandes obras que assinalassem a sua passa­gem pelo poder. Dizia ele que, tendo sido necessário fazer tudo do início, se tinha desdobra­do em muitas obras pequenas, equipando o país com estradas, escolas, barragens, portos, pre­parando-o, com algum atraso, para o Século XX. Muitas des­sas obras, como pode imaginar, estão de pé, sendo a mais im­portante a Ponte 25 de Abril, em Lisboa, que durante oito anos se chamou “Ponte Salazar”.

P. — Como o povo portu­guês avalia o período em que ele governou o país?
F.R.M. —
Estamos num mo­mento interessante em relação a esta pergunta: com Portugal prestes a receber ajuda finan­ceira externa, quer da União Europeia, quer do FMI, já vá­rios comentadores apontaram o fato de Portugal apenas ter tido as finanças em ordem, durante um período prolongado, durante o governo de Salazar. Mas pra­ticamente todos estão ainda de acordo que o preço político e social pago por esse equilíbrio orçamental foi demasiado alto. E o resto do país, parece-me a mim, pensa da mesma forma. Não nos podemos esquecer, que para os portugueses com mais de 50 anos, as memórias desse período se confundem com as memórias da infância, da juven­tude, da afirmação profissional. Tais recordações ultrapassam, em larga medida, a esfera polí­tica. Existe, porém, nestas ge­rações anteriores à minha, uma fratura importante: a experiência africana, quer entre civis que lá nasceram, ou se estabeleceram, quer entre os soldados que par­ticiparam nas guerras coloniais. Muitos portugueses não se re­conciliaram totalmente ainda com a perda do “ultramar”.

P. — O que o senhor preten­deu ao escrever essa biografia?
F.R.M. –
– Pretendi mostrar que se pode — e deve, depois de tanto tempo — encarar Sa­lazar como parte da história contemporânea de Portugal; que se pode — e deve — en­quadrar as suas decisões no contexto nacional e interna­cional da época, como se faz com qualquer outra persona­gem histórica. Não nos deve­mos fiar no que dizem os seus apoiantes, nem, automatica­mente, no que dizem os seus opositores, ou seus descen­dentes ideológicos: a Histó­ria tem de ser sempre crítica, revisitando todos os temas, por muito consenso que haja em torno de uma figura, ou de um período. O regime nasci­do no dia 25 de Abril de 1974 teve de se afirmar por oposi­ção ao Estado Novo, tal como o Estado Novo se afirmou por oposição à Primeira Repúbli­ca: mas essa necessidade po­lítica de denegrir o passado, visível até na Constituição Portuguesa hoje em vigor, não satisfaz a necessidade in­telectual, ou o desejo, de me­lhor conhecer a história.

Informações sobre o livro
Título: Salazar, de Filipe Ribeiro de Meneses; Ed. Leya Brasil; 815 páginas.
Preço: R$ 59,90.


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