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14 de abril de 2011
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18:14

Pós-Guerra – Uma História da Europa desde 1945, de Tony Judt

Por
Sul 21
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Por Charlles Campos.

A questão que se nos coloca desde a leitura da capa é: por que não uma história da Europa no século XX, e não apenas de 1945 em diante? Ainda mais que o contraponto imediato criado em torno de Judt é o de  ser um antagonista cordial ao historiador marxista Eric Hobsbawn, as quase mil páginas de sua obra capital não serviria melhor à dialética com o autor de Era dos Extremos se também se ocupasse do mais violento e  desestruturador século da história como um todo? Em Reflexões Sobre um Século Esquecido, compilação de ensaios publicada no esteio das vendas exponenciais de Pós-Guerra, Judt lança a sua pá de provocação contra Hobsbawn ajuntando-lhe ao nome o termo “o romance do comunismo”. Apesar de ser o maior historiador contemporâneo, senão o maior dos últimos cem anos — como Judt diz de Hobsbawn — , apesar de deter um talento narrativo único entre os colegas de profissão, o grande historiador pecava em muito pelo imperdoável lapso em sua bibliografia por não ter uma avaliação honesta e desapegada de ideologia quanto aos crimes e a perniciosa obsolescência da experiência dos regimes comunistas do século. Esse ensaio, e as declarações que Judt fez em várias entrevistas, fundamentou a atmosfera disjuntiva tradicional que os meios acadêmicos adoram alimentar entre dois intelectuais, o que por si não descarta a vocação inevitável de que qualquer livro que fale do século XX não pode evitar de dialogar firmemente com  Era dos Extremos, seja para confrontá-lo, ampliá-lo ou para corrigir suas naturais arestas omissivas (como o de um ensaio de Said, em Reflexões sobre o Exílio, em que o pensador anglo-palestino aponta as falhas de informações e os juízos superficiais dessa obra quanto ao Oriente Médio).

Hobsbawn: um opositor cordial

A resposta que surge da leitura de Pós-Guerra à questão acima serve para entendermos em quais aspectos Judt foi além a Hobsbawn. Todo o livro de Judt, com sua catalogação acirrada de milhares de fontes de pesquisa, sua estrutura de vontade descomunal, sua inteligência assimilativa de perfeccionismo em não deixar passar nada em branco na composição de sacrifício de uma vida de estudos, todo esse livro, ia dizendo, traz um prognóstico filosófico para o futuro da humanidade que o próprio período histórico escolhido emana significados. E nisso, a dureza da linguagem de Judt, seu sarcasmo (mais que ironia) depurado que ele prefere reservar às concisas notas de rodapé, serve no rico contexto de afirmar que ele não é Hobsbawn, que ele não tem a sutileza elizabetana e a finesse que identificam o estilo inigualável do historiador nascido em Alexandria, que ele não se propõe à invejável leveza dançarina de Hobsbawn em transcorrer elegantemente por contínuuns temporais que abrange num só extenso parágrafo tanto música, literatura, máfia e sucessão presidencial. No que se poderia dizer que Judt possa ter tomado como fio condutor para sua própria ampla sinfonia da obra de Hobsbawn, seria o último capítulo de Era dos Extremos, as sombras que assomam no horizonte da História e que, a contar por um caráter cíclico inevitável de comportamento do homem, cairão sobre nós a passos lentos que nos distrairão de sua verdadeira natureza fulminante. No campo da literatura, Hobsbawn estaria para a eufonia de Saul Bellow, enquanto Judt estaria para uma verbosidade calculadamente desmanzelada de Günter Grass.

Uma criança caminha ao lado de cadáveres de Bergen-Belsen

Essas “sombras” vaticinadas por Hobsbawn, e que são sentidas por todos em maior ou menor grau de premonição, é o mote do volume de Judt. Judt não perde tempo voltando o olhar para os eventos pregressos a 1945. A primeira e segunda guerras, o extermínio judáico, as etapas da descolonização, o fascismo, o nazismo, a Revolução Bolchevique, o implemento keynesiano do Estado Previdenciário, todos esses traços genéticos que determinaram o século passado são tidos como uma metade formativa inerente que fez ascender a curva no gráfico dos últimos experimentos sociais, humanos e políticos, antes que essa mesma curva começasse a mostrar sua queda deliberada de falta de perspectivas e vontade humana. Por isso os títulos dos primeiros capítulos de Pós-Guerra já sejam um cartão de visita à desilusão: O Legado da Guerra, Punição, A Reabilitação da Europa, O Acordo Impossível, O Fim da Velha Europa. A partir de então, Judt nos conduz pelos dolorosos processos de reconstrução nacionais dos países europeus destroçados ou seriamente combalidos pela guerra, mostrando as diásporas, os retornos, a hiperinflação, a adaptação traumática à ruína material e os despojos espirituais. O Era dos Extremos se inicia com uma memória de Hobsbawn a um gesto de sutileza inapreendido de François Mitterrand numa visita em 1992 a Sarajevo, no 28 de junho do assassinato do arqueduque Ferdinando, para, em contexto a esse ponto inaugural das guerras mundiais, o autor rememorar o quanto na passagem para o século XX o mundo ocidental estava exultante no progresso e na ciência aplicada ao humanismo. Já em Pós-Guerra, a frase inicial às 848 páginas da edição nacional traz o humor sem eufemismos que dominava uma humanidade despida de esperanças quanto a si própria: “Na sequência da Segunda Guerra Mundial, a perspectiva da Europa era de miséria e desolação total.” Todo esse parágrafo é uma radioscopia exemplar do que vem a seguir:

“Fotografias e documentários da época mostram fluxos patéticos de civis impotentes atravessando paisagens arrasadas, com cidades destruídas e campos áridos. Crianças órfãs perambulando melancólicas, passando por grupos de mulheres exaustas que reviram montes de entulho. Deportados e prisioneiros de campos de concentração, com as cabeças raspadas e vestindo pijamas listrados, fitam a câmera, com indiferença, famintos  doentes. Até os bondes parecem traumatizados_ impulsionados por corrente elétrica intermitente, aos trancos, ao longo de trilhos danificados. Tudo e todos_ exceto as bem nutridas forças aliadas de ocupação_ parecem surrados, desprovidos de recursos, exauridos.”(p.27)

Judt pega os últimos 55 anos do século XX e mostra como esse período foi um negativo que se assemelha a sua primeira metade apenas no que tem de resistir às suas consequências. Vemos que em relação diametralmente oposta aos experimentos políticos das direitas fascistas ou das esquerdas centralizadas à União Soviética, a história do pós-guerra é um cenário onde os valores políticos, sociais e econômicos se transformam numa representação cercada de farsa e teatro. Esses anos, no dito de Kierkegaard adaptado por Marx, decanta o que havia de seriedade no processo histórico extenuado, e se transforma numa versão histriônica de si mesmo. Essa luneta é usada com enorme potencial esclarecedor quando Judt analisa as vistas grossas dos países vencedores da Segunda Guerra quanto à culpa da Alemanha pelas fábricas de extermínio de judeus e demais povos inferiores. Sem nenhuma cautela (à moda de Judt) por falar sobre o que ainda hoje se ressabia por detrás dos tabus das auto-afirmações alemãs, Judt nos mostra o quanto a questão da Shoá foi mantida em “distraído” esquecimento em prol de interesses de equilibrar as relações econômicas numa Europa em que ninguém estava capacitado à santidade acusadora dos pecados alheios. E um dos pontos fortes de Judt é sua sobriedade quanto às armadilhas do maniqueísmo da História, pois ele compreende bem que essa comédia era mais a única forma minimamente coerente de se corresponder às exigências do meio e do período do que propriamente um surto de hipocrisia.

A farsa da "juventude esclarecida e combatente" de 1968

Outras partes impagáveis de Pós-Guerra formam o que se poderia chamar de “revisionismo sem surpresas de eventos históricos de compreensão consolidada”, como o magnífico capítulo em que Judt desbaratina as “revoluções juvenis” de 1968, revelando de vez que todo o tumulto representado nas mídias populares como um movimento sistemático de universitários ideólogos por liberdade de expressão, sexual, de livre consumo de drogas, e direito feminino, surgiu não nas universidades, sobrecarregadas de jovens que mal possuiam uma perspectiva histórica suficiente para saberem sobre as agrúrias que seus pais passaram durante as guerras, mas por greves de estalajadeiros franceses e, em justiça à parte universitária, por acadêmicos que protestaram não pela paz mundial, mas por melhores condições nos albergues estudantis. Assim também, Judt relata um raríssimo caso de atúcia das massas, no advento dos Acordos de Helsinque, em que um pequeno grupo de refugiados ucranianos inicia um atropelo em série às ditaduras soviéticas graças às próprias armas criadas por Brejnev e companheiros que, achando estarem criando um simples joguete de apaziguamento a dissidentes do regime através de um acordo que deveria figurar como uma encenação patriarcalista, acaba por ser uma corda de pescoço e fonte da legitimidade internacional para a pressão popular.

Tony Judt

Outro capítulo fundamental é o que trata do “Novo Realismo”, os governos neoliberias de Margareth Thatcher e François Mitterrand. Uma das facetas principais de Judt é o de ser crítico da esquerda, sem ser de direita, e o de verificar os benefícios do neoliberalismo lamentando avidamente a defasagem do poder do estado. Seu estudo sobre Thatcher é revelador. Ele não consegue esconder sua admiração por essa mulher que, no dizer de Mitterrand, “tem olhos de Calígula e boca de Marylin Monroe”, mas o painel que ele deslinda em torno da grande figura mítica dessa mulher retorna ao seu tema recorrente do desencanto ideológico moderno. Thatcher foi uma figura de dominante solitária e imbativelmente decidida, que destruiu o Partido Conservador e “esmagou seus oponentes trabalhistas”, em que o governo era ela mesma e mais ninguém, que desprezava a opinião popular com uma lucidez de perceber que não havia conteúdo no povo da inglaterra do final da década de 1970, e que trocava a seu bel dispor seu secretariado com uma frequência de monarca indistituível. Ela dilapidou o patrimônio estatal inglês, o que, enfocando a realidade não apenas virtual mas pragmática das estatísticas de crescimento econômico, tirou a Inglaterra do atraso de décadas e a impulsionou em dez anos de governo a um dos primeiros lugares entre os países desenvolvidos. Tirando o sistema de transportes, a saúde e o ensino público (intocáveis para os ingleses), Thatcher vendeu tudo, o que fez fechar milhares de postos de trabalhos vinculados ao Estado ineficiente e não competitivo, levando a uma taxa de desemprego altíssimo. As decisões a médio e curto prazos de alavancar a Inglaterra nos índices de produção econômica, sem se preocupar com os índices reais de desenvolvimento humano, fez da Inglaterra um país rico com uma grande massa de pobres dependente das beneses do governo, num paradoxo de menos estado previdenciário para mais pessoas destituídas de condições mínimas de sobrevivência retiradas pelo próprio fenecimento compulsório do estado.

Tony Judt

Por final, Judt avalia os regimes de esquerda da Europa Central e suas derrocadas ao longo do período enfocado, o que também são capítulos de alto teor informativo e escrita afiada. Pode-se ler Pós-Guerra como uma história subliminar do marasmo humano após o esgotamento das ilusões e transformação das utopias comunistas em distopias assassinas. A única frente de fé que aponta pelo horizonte e faz milhões de asseclas é a ideia da globalização, e sobre isso, tanto no capítulo final de Pós-Guerra quanto em “A Questão Social Revisitada”, em Reflexões Sobre um Seculo Esquecido, Judt faz uma condenação à grande estupidez desse tempo em dar as costas para a Questão Social, apostando as fichas no bezerro de ouro de uma era desregulamentada em que as empresas e as instituições estatais restringidas à manutenção da indevasabilidade do poder dessas empresas tomarão conta da vontade humana e transformará o homem na velha repetição de animal de carga desespiritualizado.

Como bem sabiam os grandes reformadores do século XIX, a Questão Social, diz Judt, se for deixada de lado, não desaparece gradualmente. Em vez disso, ela sai em busca de respostas mais radicais. É para nos elucidarmos dos ciclos pela frente que a História nos espera, com tais respostas radicais, que se torna imprescindível a leitura de Pós-Guerra, como antídoto à bestialidade e às sombras do nosso tempo.


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