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24 de março de 2011
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19:04

Guiomar Namo de Mello: professor precisa de uma formação mais prática

Por
Sul 21
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Guiomar Nemo de Mello, educadora

Felipe Prestes

A educadora Guiomar Namo de Mello não tem dúvidas quanto ao que deve ser o foco das melhorias na educação básica no Brasil. “Se você me dissesse que só dá para fazer uma coisa daqui para a frente, eu diria: reformula completamente o sistema de formação de professores”. Para isto, ela acredita que é preciso uma formação mais prática e a definição de metodologias claras, com materiais que deem indicativos concretos ao professor.

Guiomar explica que a maior parte dos professores hoje é formada no ensino superior privado, de baixa qualidade. Subsidiar este ensino é, para ela, outro ponto fundamental na melhoria da formação de professores. Fundadora do PSDB, ex-secretária municipal da Educação de São Paulo, a professora defende a utilização de provas para os professores avançarem na carreira, aos moldes do que fez Paulo Renato Souza em São Paulo. “Na carreira, o indivíduo vai progredindo de acordo com o tempo. Ele criou um caminho alternativo: se você não quiser esperar, pode fazer um exame e pular algumas referências. Mas isso não prejudica aqueles que não querem fazer o exame”.

Sul21 — Nos próximos anos, qual deve ser o foco da educação básica? Diz-se que já temos vagas para todos, mas não há qualidade de ensino.
Guiomar Namo de Mello
— É, isto já é praticamente um consenso entre os diferentes educadores. Estamos na etapa de conclusão do processo de universalização — ainda tem muita coisa para fazer –, e sabemos que tem que melhorar a qualidade, até porque quanto mais você estende a quantidade, mais você tem que melhorar a qualidade.

“O Brasil enfrenta os desafios de vários séculos ao mesmo tempo”

Sul21 — O ensino no Brasil, em geral, ainda utiliza métodos destinados a ensinar crianças que vêm com uma cultura letrada de casa. Existe já um consenso sobre como deve ser o ensino universalizado, com crianças que não têm esta cultura?
GNM
— O Brasil está enfrentando os desafios de vários séculos ao mesmo tempo. Ele universalizou uma boa parte da educação básica, está caminhando para universalizar o resto. Ao mesmo tempo, incorpora uma parcela mais heterogênea da população e enfrenta a emergência de uma sociedade de informação, com mudanças tecnológicas muito rápidas, que afetam o modo como o conhecimento é organizado e transmitido. É um desafio que todos os países estão enfrentando, mas o Brasil e outros países emergentes têm que, ao mesmo tempo, universalizar o atendimento e encontrar uma forma de trabalhar com populações mais heterogêneas.

Sul21 — Então nós ainda estamos patinando no ensino a estas pessoas?
GNM
— Acho que sim. Temos ainda que debater e praticar muito. Temos que experimentar, criar alternativas, para que se possa ter uma melhor qualidade para todos.

Sul21 — Muitas vezes, pessoas mais humildes não veem possibilidade de sucesso por meio da escola, e, por causa disto, pode faltar motivação. A escola tem como resolver este problema?
GNM
— Talvez seja um mito esta questão posta nestes termos. Há muito tempo o Brasil vê os pobres fazendo um grande sacrifício para ir à escola. Quando você vai à periferia, vê as dificuldades que uma família enfrenta e, mesmo assim, ela busca vaga na escola. Ela não tem condição de saber exatamente como uma escola tem que ser. Muitas vezes, se prende a questões mais aparentes. É mais fácil, por exemplo, a família se mobilizar porque não tem professor ou não tem merenda, do que por má qualidade de ensino. Mas o pobre faz muita questão de pôr o filho na escola. A dose de empenho, de sacrifício que tem que ser feito para que a criança de uma família pobre vá à escola, é muito maior que a de famílias ricas. O problema é que a nossa pedagogia não sabe como lidar com essa criança. E aí a criança começa a reprovar e isto vai baixando a motivação. Todos os dados mostram que a repetência é o que mais contribui para a evasão.

“A formação do professor não pode ser mais teoricista, acadêmica”

Sul21 — Já há um indicativo do que deve ser feito para contemplar a universalização do ensino e essa sociedade da informação?
GNM
— Têm algumas propostas e teorias que fazem mais sentido do que outras. A formação do professor não pode ser mais essa formação teoricista, acadêmica, que não aterrissa em nenhum modelo concreto de criança. O que neste momento se coloca muito é que nós precisamos de um ensino onde tudo é mais estruturado, em que o professor possa saber exatamente o que ele tem que fazer. Para aquele que não souber como fazer tem manual, tem lição pronta. Se ele souber como fazer, usa ou não usa estes métodos, dependendo de sua competência para fazer outra coisa. Mas nós não podemos mais deixar professores que receberam pouca formação definirem conteúdos e metodologias, porque, até que ele aprenda a fazer isto, a criança já foi.

Tem que dar um ensino mais prático, tem que fazer um regime de residência escolar, em que o professor possa ir para uma escola, ver como as pessoas fazem, o que está certo e errado, como se fosse a preparação de um médico. Fala-se muito, inclusive, de usar na preparação do professor o modelo clínico. O médico, no primeiro ou segundo ano de faculdade, dá plantão em pronto-socorro, e fica lá com alguém supervisionando. É assim que você aprende a entubar um paciente, a pegar uma veia, arrumar o soro. Você não pode dizer que é uma atividade menos nobre que ensinar uma criança. Essa formação mais aderente na prática é fundamental. Enquanto isto, que existam recursos — passo a passo — para o professor seguir, caso não saiba como ensinar uma criança.

Sul21 — Esta seria a forma de qualificar os professores?
GNM
— Se você me dissesse que só dá para fazer uma coisa daqui para a frente, eu diria: reformula completamente o sistema de formação de professores. Não só a formação inicial, como a continuada. E cria um sistema por meio do qual a iniciativa privada que forma professores preste um serviço de qualidade. Para isto, você terá que subsidiar, não tem jeito. O curso superior particular de formação de professores não consegue dar um ensino de qualidade, porque cobra pouco. E cobra pouco porque o aluno que faz este curso não tem dinheiro. Se eu disser para a escola particular “eu pago uma bolsa de estudos para você formar este aluno, só que eu quero que o curso seja assim, assado”, ela faz. É até mais fácil fazer isto com a particular que com a pública, porque a universidade pública vai ficar ofendida se você disser como deve ser o curso.

Sul21 — É preciso investir em pesquisa?
GNM
— Precisa investir em material, basicamente. A escola particular já descobriu isso faz tempo. Ela pega o material que seus professores usam, faz com que eles transformem este material em algo mais editável, e publica. Assim nasceram os sistemas de ensino Positivo, Objetivo, Pueri Domus, Koch. Usando uma pedagogia muito eficiente, incorporando o modo de organizar o conteúdo do ensino que o cursinho tinha, criaram materiais que podem servir para o professor. Venderam isto para as demais escolas particulares, para as pequenas, que não têm recursos para produzir isto. É assim que se construiu o ensino de melhor qualidade que o Brasil tem hoje.

“Pouca gente sabe ensinar o professor a alfabetizar”

Sul21 — Mas no ensino fundamental o aprendizado não é só em cima do conteúdo.
GNM
— É também um aprendizado de conteúdo. Nada impede que o professor trabalhe com a formação, com a criação de atitudes, cultivando outros conhecimentos. Agora, você não pode deixar uma criança sair da segunda série sem letramento completo. Então você tem que indicar como é que faz para alfabetizar uma criança. Não é muita gente que sabe ensinar o professor a ensinar a alfabetização. Quando a gente tem um curso de professores e precisa de alguém que ensine a ensinar na área da alfabetização você sai correndo atrás.

Sul21 — É tão difícil assim encontrar alguém?
GNM
— É difícil. Ou então você encontra pessoas que têm uma teoria específica: “ou é construtivismo, ou não presta”. O próprio programa que a Mariza Abreu criou aí no RS, de alfabetização, mostrou que os três métodos testados produziram bons resultados, desde que os professores saibam usar e sejam bem apoiados para colocar em prática o que o método diz.

Sul21 — Quais eram os métodos?
GNM
— Entre eles, havia o da Esther Grossi e o fônico radical, do João Batista Oliveira, que são opostos. É uma verdadeira batalha, eles vivem em guerra, como se a existência de um eliminasse a do outro, o que é um absurdo. O mais importante é dominar o conteúdo, dominar o método e ser apoiado, ter material.

Sul21 — O Brasil incluiu uma parcela grande da população na escola nas últimas décadas. Investimos na mesma proporção?
GNM
— Não, nós expandimos a escola sem o recurso que deveria ser correspondente, sobretudo na formação de professores. É como se, para dar escola para essas populações que estavam chegando, qualquer professor servisse, quando era exatamente o contrário. Ensinar uma criança cuja família lê para ela em casa é muito mais fácil. Difícil é ensinar uma criança que tem este currículo oculto. O que se fez com a formação de professores? Formação é cara. A universidade pública não tem apetite para isto. Ela forma, mas são poucos. E nós estamos formando de “baciada”. São 35 milhões de crianças, são dois milhões de professores. A escala na universidade pública é muito pequena.

Então, a formação fica por conta da iniciativa privada. Só que o controle que o estado fez da qualidade da iniciativa privada é cartorial: o MEC confere planilha. Quando Paulo Renato Souza era ministro da Educação, começou a haver avaliação dos cursos, mas até ali foram duas décadas de formação em que qualquer curso servia, desde que satisfizesse apenas critérios formais do MEC. Aí cai nas costas das secretarias estaduais ou municipais, que têm que fazer programas de educação continuada. Elas fazem esses programas com as universidades públicas. Mas, neste caso, as universidades recebem para isto. É mais dinheiro da educação básica que vai para o ensino superior. Onde tem mercado de trabalho para absorver os professores formados no ensino particular é no setor público.

“O magistério é uma das carreiras com menor número de desistências”

Sul21 — São muito mais vagas que no ensino particular.
GNM — E como! 90% da matrícula é pública no Brasil. Este é um mercado que absorve qualquer professor. E é balela dizer que o magistério não atrai. A desistência de quem entra no magistério é mínima. É uma das carreiras com menor número de desistências.

Sul21 — Por quê?
GNM
— Apesar de todo mundo reclamar do salário, é uma profissão que dá segurança, quase dois meses de férias por ano, licença paga para você fazer mestrado e doutorado. Você troca uma coisa por outra. O salário é muito maior no mercado, mas o mercado é competitivo.

Sul21 — A senhora defende maior competitividade no ensino público?
GNM
— Eu defendo, a partir de mérito, de critérios.

Sul21 — Qual modelo a senhora considera mais adequado?
GNM
— Acho que pode ser um modelo de bônus. Aqui em São Paulo, o Paulo Renato introduziu um exame para passar de uma referência da carreira para outra, por exemplo.

“Na educação, as coisas são muito sujeitas a ideologia, a partidarismos”


Sul21 — E deu resultados?
GNM
— O Paulo Renato saiu e parece que vão voltar atrás com isto, não dá nem para saber se deu resultados. Mas é assim: na carreira, o indivíduo vai progredindo de acordo com o tempo. Ele criou um caminho alternativo: se você não quiser esperar, pode fazer um exame e pular algumas referências. Ao invés de você receber 5% de aumento, ganha 25%. Mas isso não prejudica aqueles que não querem fazer o exame. Isso está sendo visto como uma coisa injusta pelo novo governo, que é do mesmo partido. Para mim, o exame é saudável. Na educação, as coisas são muito sujeitas a ideologia, a partidarismos. E se precisa tomar muito cuidado com algumas soluções, porque às vezes você pensa que é uma luz no fim do túnel, mas é uma locomotiva em sentido contrário.

Sul21 — A senhora tem algum exemplo em que ocorreu isto?
GNM
— Por exemplo, o tempo integral. Ele é interessante se for uma política que você, paulatinamente, vai aumentando para todas as crianças a carga horária, até você chegar no tempo integral. Não é assim que ele tem sido feito. O tempo integral tem aparecido como uma solução do seguinte tipo: você faz um modelo de escola diferente, com uma arquitetura de prédio escolar diferente, e aí você batiza de CIEP, CIAP, CEU, CAIC. Cria modelos segmentados dentro do sistema. Você não tem uma política para todo mundo. Você tem um programa que beneficia um número “x” de escolas e alunos. E a escola integral deveria pegar o currículo e ensinar metade de manhã e metade de tarde, para ter mais tempo de trabalhar com a criança em história, geografia, artes, educação física. O que acontece, na prática, é que o currículo fica espremido pela manhã e, à tarde, põem uma série de atividades: capoeira, teatro. Esse é o modelo que o Brizola criou no Rio de Janeiro e que se perpetua em todas as tentativas de escola integral.

Sul21 — Mas não pode haver outras atividades também?
GNM
— Pode, desde que estejam integradas no currículo. O currículo é tudo o que a escola tem. A gente tem mania de chamar de extracurricular. Ou é curricular, ou não tem que estar na escola. Eu tenho que repensar o currículo e ver como enriquecê-lo. Não se pode usar o currículo de tempo integral para colocar coisas que não têm nada a ver com ele. Senão, em vez de empregar professor, emprega animador ou os tais ongueiros. Tudo quanto é ONG tem um programinha. Isto tudo (que digo) não é nada simpático, é politicamente incorreto, é visto como rabugice de gente velha como eu.


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