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23 de fevereiro de 2011
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00:40

Muammar Kadafi só sairá se o matarem ou se ele cometer suicídio, afirma ex-ministro líbio

Por
Sul 21
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Reprodução / Al Jazeera
Muammar Kadafi - Foto: Reprodução / Al Jazeera

Igor Natusch

Em um novo e inesperado desdobramento da crise que convulsiona a Líbia, o ministro do Interior do país árabe, Abdul Fatah Younis, renunciou ao cargo, nesta terça-feira (22). A saída de Younis, considerado o “número dois” do regime de Muammar Kadafi, reforça o aparente desmanche do governo líbio, com o isolamento cada vez maior do ditador. Em entrevista à rede de televisão Al Arabiya, o ex-ministro diz que o povo já “sofreu demais” e o conclamou a “resistir bravamente” aos atos de repressão. “O Jamahiriya não existe mais”, afirmou, citando uma expressão usada por Muammar Kadafi durante seu regime, que significa “governo de muitos”.

“Não sou um homem de duas caras”, declarou Abdul Fatah Younis, admitindo que permaneceu ao lado de Muammar Kadafi durante os 42 anos de seu regime. Mas o último discurso de Kadafi, no qual o ditador manifestou a decisão de reprimir as revoltas com violência e lutar até o fim, teria convencido Younis a deixar o governo. “Fiquei chocado”, garantiu. “Não sou um traidor. Sempre fui um amigo próximo dele (Kadafi). Demos início à revolução para lutar pelo povo, não para virar as costas para ele, para matá-lo a tiros”.

“Preferia que ele (Kadafi) tivesse demonstrado seu pesar pelas mortes que provocou e anunciasse sua saída do poder”, declarou Younis. “Implorei a ele que não mandasse aviões (contra os manifestantes). Dei ordens ao meus homens em Benghazi para que não atirassem no povo. Ofereço minhas condolências aos mártires que caíram”.

Segundo Abdul Fatah Younis, o pronunciamento feito por Kadafi, nesta terça (22), foi “muito claro para qualquer um que tenha um cérebro”. O ex-ministro disse não acreditar que o ditador abandonará voluntariamente o poder. “Ele está nervoso e é muito teimoso. Não irá embora. Ele só deixará o governo se o matarem ou se cometer suicídio. Ele vai permanecer no poder até o fim, mesmo que esteja sozinho”, disse o ex-ministro.

A fala de Abdul Fatah Younis desmente, da maneira mais cabal possível, informações divulgadas pela TV estatal da Líbia, de que ele teria sido morto durante um ataque de forças contrárias ao regime de Kadafi. Segundo Younis, o atingido por tiros foi seu primo, em um confronto ocorrido às portas de seu gabinete. O ex-ministro deu a entender que foram tropas leais a Kadafi que fizeram os disparos. “Vieram atirar em mim, mas não me acertaram. Kadafi, esse homem sujo, espalhou que eu tinha morrido para que a minha tribo, os Obeidat, ficasse ao lado dele”, denunciou.

A partir de agora, o ex-ministro do Interior diz que estará ao lado dos revoltosos e que trabalhará para que a Líbia tenha um novo governo. “Muitas tribos, como os Tuareg, garantiram que estão ao lado dos manifestantes”, disse Younis. “Com o dinheiro vindo de nosso petróleo, o povo poderia viver como em um hotel 5 estrelas”, assegurou. “Quando soube que jogavam bombas contra o povo, resolvi me unir à revolução. O povo já sofreu demais. Chegamos ao ponto em que não há mais como voltar atrás”.

Kadafi: “A punição será a morte”

A decisão de Abdul Fatah Younis em desligar-se de Muammar Kadafi segue-se a um longo e raivoso discurso, transmitido pela TV estatal líbia, no qual o ditador não deu nenhum sinal de que deixará o poder. Kadafi referiu-se aos manifestantes como “ratos”, e garantiu que são “drogados” e “bêbados”. Kadafi chegou a pedir às mães dos manifestantes para que os entreguem ao governo, para que passem por uma “desintoxicação”. “Ainda não usei a violência (contra os opositores), mas farei isso, se for necessário”, declarou, prometendo ir “de porta em porta” atrás dos que querem derrubar o “governo do povo”.

Em outro ponto de seu discurso, o ditador líbio garantiu que não deixará o governo, estando disposto a “morrer como um mártir”. Mesmo que a Líbia não possua uma constituição, ressaltou que qualquer um que vá contra as leis do país está sujeito a ser morto. “A punição é a morte. Todos os que querem prejudicar nosso país serão executados”, assegurou. E atribuiu a revolta a uma confusa conjunção de fatores, envolvendo invasores da Tunísia, governos ocidentais como os EUA, mídia internacional e até mesmo o grupo Al-Qaeda. “Querem transformar a Líbia em um país islâmico, em um novo Afeganistão”, bradou.

Outra figura importante do governo de Kadafi a aparecer na TV estatal líbia foi o secretário-geral do Comitê Popular da Líbia, Mohamed Bel Qasim. Em sua fala, Qasim garantiu que o governo implementará uma série de reformas, coordenadas pelo filho de Muammar Kadafi, Saif Al-Islam Kadafi. Entre as mudanças, estão a criação de leis específicas para a mídia e a sociedade civil, além da criação de células governamentais em diferentes regiões do país. Reforçando as já bastante duras palavras anteriores de Muammar Kadafi, o oficial prometeu também uma “lei marcial” para investigar os “tristes atos de violência” que tomaram conta do país.

Ditador está cada vez mais isolado

No entanto, os sinais são cada vez mais fortes no sentido de que Muammar Kadafi está ficando isolado no poder. No começo da noite de terça-feira (22), dois navios de guerra líbios chegaram na costa de Malta, país com o qual a Líbia tem boas relações comerciais. As embarcações teriam se recusado a cumprir ordens do ditador para cercar Benghazi, segunda maior cidade do país árabe. Relatos de deserções surgem de várias partes do país, e alguns integrantes das forças armadas, que deixaram de seguir as ordens de Kadafi, conclamam os demais militares a recusar as ordens do ditador e unirem-se à revolta popular. Informações contrárias, porém, dão conta de grandes alinhamentos militares em cidades atualmente tomadas pelos revoltosos, como Sabratah, supostamente com o objetivo de reprimir os manifestantes.

Ibrahim Dubbashi, embaixador líbio junto à missão das Nações Unidas em Nova York (EUA), é outro nome a abandonar o regime de Kadafi. Afirmando que há um “genocídio” em andamento na Líbia, Dubbashi implorou à ONU que intervenha imediatamente contra a violência em seu país. “O discurso de Kadafi foi um chamado a seus colaboradores, para que cometam genocídio contra seu próprio povo”, exaltou-se. Seguindo exemplo de outros embaixadores líbios pelo mundo, Dubbashi disse que não renunciará a seu posto. “Trabalhamos para o povo da Líbia, não para os indivíduos que estão no poder”.

No momento, a sinalização mais forte da ONU foi uma declaração oficial, divulgada na terça-feira (22), na qual o Conselho de Segurança do órgão conclamou Muammar Kadafi a assumir suas responsabilidades e proteger a população civil. A declaração é assinada pela brasileira Maria Luiza Ribeiro Viotti, que atualmente ocupa a presidência do Conselho, em um regime rotativo. “O Conselho condena firmemente todas as demonstrações de violência, e os envolvidos serão responsabilizados por seus atos”, diz o comunicado. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, garante ter tido uma conversa telefônica de 40 minutos com Kadafi, na qual teria pedido “moderação” ao governante líbio.

A violência, de qualquer modo, não dá sinais de que diminuirá no país. Boatos de diferentes origens afirmam que até mesmo oficiais do exército líbio teriam sido assassinados por se recusarem a cumprir ordens de disparar contra manifestantes. Alguns relatos dão conta até da existência de uma vala comum em Benghazi, onde cerca de 150 membros das forças armadas, incluindo oficiais da aeronáutica, estariam enterrados.

O secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa, anunciou que a Líbia está suspensa de todas as atividades do órgão — o que significa, na prática, que o país não tem mais relações políticas oficiais com seus vizinhos. “Exigimos o fim da repressão violenta e o estabelecimento imediato de um diálogo nacional, que atenda as necessidades do povo líbio”, declarou Moussa.

John Kerry: “abaixo do desprezível”

Nos EUA, cresce a pressão para que Barack Obama tome uma postura mais dura quanto à violência na Líbia, incluindo o uso de sanções políticas e econômicas. O senador John Kerry, líder do Comitê de Relações Internacionais do senado norte-americano, conclamou todas as companhias exploradoras de petróleo a suspender as atividades comerciais com a Líbia, até que cesse a violência contra civis. Kerry também pediu ao presidente Obama que retomasse as sanções contra a Líbia, suspensas durante a administração de George W. Bush. O senador qualificou os atos de violência como “covardes” e “abaixo do desprezível”.

Um sinal de que o pedido de Kerry pode estar sendo atendido é o fechamento do gasoduto Greenstream, que liga a Líbia à Itália e o restante do continente europeu. A interrupção foi anunciada pela ENI, gigante italiana que controla a exploração de petróleo e gás na Itália. O gasoduto é a única ligação direta entre o óleo produzido na Líbia e as nações ocidentais. Em comunicado, a ENI garantiu que a suspensão não causará escassez de combustível em território italiano. A petrolífera espanhola Repsol também suspendeu as atividades comerciais em território líbio.

O governo italiano, que tem sido um dos poucos a não manifestar abertamente seu repúdio aos atos de violência na Líbia, é outro que pode estar mudando de lado. Muammar Kadafi e o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi teriam conversado por telefone na terça-feira (22). Segundo a TV estatal líbia, o objetivo da ligação foi garantir ao governo italiano que “está tudo bem” no país árabe. A versão que surge da Itália, porém, é outra. Berlusconi teria ficado indignado com um trecho do discurso de Kadafi, no qual acusou a Itália e os EUA de fornecerem granadas aos opositores do regime líbio. A Itália é uma das principais importadoras de gás da Líbia, usado para aquecimento de residências no país. Além disso, os dois países assinaram um tratado em 2008, no qual Kadafi se comprometeu a tomar medidas que evitem a entrada de imigrantes líbios no país europeu.

Outra curiosa manifestação de repúdio a Muammar Kadafi veio do príncipe exilado Muhammad as-Senussi, pertencente à família real deposta pelo atual ditador em 1969. Segundo as-Senussi, o regime de Kadafi não resistirá por muito tempo. “O povo líbio está unido e deseja ser livre. O mundo todo ouve a voz deles. A grande revolta popular sairá vitoriosa”, declarou. O príncipe também conclamou as nações ocidentais a tomarem medidas enérgicas contra Kadafi. “Peço aos governos que estiveram ao lado do regime de Kadafi que exerçam pressão para que acabe o banho de sangue”, afirmou.


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