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20 de janeiro de 2011
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16:31

Função das secretarias da Cultura é chancelar os bons projetos, diz um dos idealizadores do Porto Verão Alegre

Por
Sul 21
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Milton Ribeiro

Criador, mesmo que involuntário, de um dos maiores movimentos culturais de Porto Alegre, o ator gaúcho Zé Victor Castiel se divide entre o Rio de Janeiro, onde trabalha, e a capital gaúcha, onde mora e mantém dois espetáculos de teatro. Ele e Rogério Beretta, um de seus parceiros na peça Os Homens de Perto, deram início, há 12 anos, ao Porto Verão Alegre, que oferece ao público teatro, música, artes plásticas, literatura e cinema. A aceitação é tão boa que o número de espectadores, este ano, em relação a 2010, deve crescer 30%.

Castiel tem queixas do poder público e, também, faz algumas críticas. Ele acredita que ao último governo gaúcho faltou uma política de cultura. E prega: a tutela do poder público tem de acabar. “Acho que a obrigação das secretarias de cultura não é a de financiar cultura”, afirma. “A obrigação é chancelar os bons projetos, facilitar, abrir espaços”, conclui.

Milton Ribeiro

Sul21: O Porto Verão Alegre, hoje em sua 12ª edição, promove não apenas o teatro, mas também a música, as artes plásticas, a literatura, o cinema e espetáculos em shoppings. Qual é o histórico deste crescimento?

“… vendemos 12 mil ingressos em quatro semanas… Foi então que nos demos conta de que tínhamos um evento que poderia ser repetido.”

Zé Victor Castiel: No início, o Porto Verão Alegre era só teatro. Na verdade, o evento nasceu totalmente por acaso, não foi um empreendimento nascido de um projeto. No ano de 1999, eu e o Rogério Beretta estávamos duros e tínhamos, cada um, um espetáculo pronto. Então resolvemos unir forças apresentando os dois espetáculos e fazendo a venda conjunta de ingressos na Lancheria do Parque. Nós mesmos vendíamos. Eu e minha mulher atendíamos num turno, ele e a mulher dele no outro, ambos carimbando ingressos. Nós convidamos mais quatro espetáculos que queriam se apresentar no verão e vendemos 12 mil ingressos em quatro semanas… Foi então que nos demos conta de que tínhamos um evento que poderia ser repetido. Uma coisa importante de ser dita é que a estrutura administrativa do Porto Verão Alegre até hoje é muito pequena. O resultado é que é grande. Somos apenas seis pessoas.

Sul21: Como vocês se organizam?

ZVC: Nós consultamos os teatros para descobrir o que teremos disponível e então fazemos a agenda, que tem de ser muito bem feita porque há muitos elencos que se repetem de uma peça para outra. Todos os teatros são alugados, pagos pelos próprios grupos, inclusive os da prefeitura. É como se os grupos fossem se apresentar normalmente. Nossa ideia é a de aproveitar o maior número de teatros, desde que profissionais. As bilheterias são dos próprios grupos que nos repassam apenas 10%, quando o percentual de produção é tradicionalmente 30%.

Sul21: O público do Porto Verão Alegre é maior que o do restante do ano?

ZVC: É difícil de mensurar, mas eu acredito que a afluência de público concentrada no Porto Verão é maior do que o público de qualquer período no restante do ano. Mas quando nós começamos, jamais imaginaríamos que a repercussão seria esta. Foi um peitaço, entende? Mas hoje o pessoal nos cobra a realização como se nós fôssemos a Secretaria de Cultura! (risadas)

“Nós realmente não nos damos o luxo de nos sentir magoados. Mas também sabemos que, em nosso estado, o sucesso ofende.”

Sul21: E o estado?

ZVC: Agora há poucos dias, o Secretário da Cultura do Estado, Assis Brasil, nos convidou para uma reunião onde pudemos protestar do boicote que sofremos por parte do estado, que muitas vezes dá férias para funcionários justo durante a realização do Porto Verão. Não somos contra as férias de ninguém e de forma nenhuma cultivamos ressentimentos. Nós realmente não nos damos o luxo de nos sentir magoados. Mas também sabemos que, em nosso estado, o sucesso ofende. No ano passado, o evento não incluiu teatros públicos, apesar de nossa disposição para sermos totalmente inclusivos, nada monopolistas. Os funcionários de alguns teatros públicos simplesmente saíram de férias em plena alta temporada… Claro, o cara que quiser fazer a coisa sozinho ou que quiser fechar seu teatro no verão, que feche, porém, acho um absurdo.

Sul21: Há mais problemas além deste boicote?

ZVC: Olha, há gente que pensa que o ovo nasceu no supermercado, que o leite deu na caixinha do Zaffari. Há pessoas que pensam que a gente do Porto Verão ganha muito dinheiro com um esforço mínimo. Ora, não ganhamos. Um dia, quando alguém se interessar pela estrutura financeira do evento, entenderá que o PVA dá é trabalho. E, mesmo que desse grana, nunca ouvi uma banda reclamar dos organizadores do Rock in Rio ou do Planeta Atlântida, que são tão privados quanto o Porto Verão. Minha opinião, independente de quaisquer outras questões, sempre foi a mesma: o evento serve para o artista se apresentar, encher o teatro e receber o que merece. E há outra constatação que posso fazer, sem a menor arrogância: nós colocamos 1.500 pessoas a trabalhar durante o verão. Isso é muito importante em nosso mercado de trabalho.

Sul21: Qual é a participação dos patrocinadores?

ZVC: Nós temos vários patrocinadores que pagam uma estrutura que não possuiríamos sozinhos. Temos pontos de venda espalhados em lojas, espaços na TV, banners, cartazes, busdoor, outdoor, rádio, jornal, há toda uma divulgação que faz o sucesso do evento. O Porto Verão é 80% de marketing e 20% de produção. Tudo no Porto Verão é do patrocinador: os telefones a Vivo empresta, os carros a Fiat empresta, etc. De certa maneira, o evento nos ensinou a trabalhar, ficamos mais pragmáticos. Hoje, 50% do que faturamos com Os Homens de Perto é reinvestido em mídia e equipamentos. É errado pegar o dinheiro e botar no bolso. Isso tu fazes uma vez, no ano que vem não vai ter como montar outra peça. Tem que investir. O Porto Verão custa, em marketing, por volta de R$ 300 mil. É menos que a maioria dos festivais. Mas o resultado fica num patamar muito elevado.

Sul21: Os preços dos espetáculos são menores durante o Porto Verão Alegre?

ZVC: Não, 90% dos espetáculos gaúchos praticam os mesmo preços dos que os praticados durante o Porto Verão, a não ser que vá para um teatro diferenciado como o São Pedro ou o Bourbon Country, onde o próprio público já sabe que os preços serão maiores.

Sul21: Há um movimento dos sem-praia em Porto Alegre? Do pessoal que escolhe ficar aqui em vez de ir para a praia?

ZVC: Eu acho que antigamente, em Porto Alegre, havia mais gente que ficava por aqui no verão do que agora. Antigamente, as famílias iam para a praia veranear, passar o mês, tinha a turma que ia em janeiro, depois acontecia a troca da guarda e vinha o pessoal de fevereiro. Depois, com a melhoria dos carros e das estradas, o pessoal deixou de ficar o tempo todo na praia. Eu acho que o pessoal que não gosta de praia não é significativo em termos numéricos. No início do Porto Verão, a gente pensava assim: “Nós temos que contentar aquele pessoal que tem ojeriza ao litoral”. Não é assim.

Sul21: E o público, como a afluência se divide durante os dias da semana?

ZVC: O Porto Verão oferece espetáculos de segunda a segunda e não há diferença importante de público, de segunda a quinta está cheio; sexta, sábado e domingo também. Então, há um revezamento – nem imagino como isto acontece – entre os que vão e os que ficam na cidade nos finais de semana.

“Olha, vamos ser francos, Porto Alegre é um horror no verão.”

Sul21: Sim, muita gente viaja na sexta e volta domingo… Muita gente fica com poucos amigos na cidade.

ZVC: Olha, vamos ser francos (risadas), Porto Alegre é um horror no verão. De repente, se há uma opção de se divertir em ambientes mais refrigerados, com algo além do chopinho e da balada, talvez as pessoas que não gostam ou não têm a oportunidade de se deslocar para a praia tenham a sensação de que melhor é ficar por aqui do que ficar nos engarrafamentos do litoral, quem sabe. E, veja bem, eu sou um dos que gostam de praia… E ainda há toda uma promoção, claro. Os mais antigos talvez lembrem da Campanha da Kombi. Era apenas uma Kombi parada na Praça da Alfândega vendendo ingressos para todos os espetáculos da cidade. Vendia mais. Some-se a isso que o Porto Verão descobriu que a alta temporada do teatro em Porto Alegre é no verão. Todo mundo quer montar projeto no verão, todo mundo quer deixar o seu melhor para o verão – eu hoje acho natural que assim seja –, então, como disse antes, não faz sentido os teatros públicos darem férias para a maioria dos funcionários, dando as costas à alta temporada de espetáculos. Isso não é mais admissível. Se o cara quiser ir para a praia, OK, mas tem que ser substituído, porque se toda a comunidade artística não está indo para a praia e o público está aqui para ver teatro, não se justifica dar férias para funcionários no verão.

Sul21: Que teatros deram férias a seus funcionários?

ZVC: No ano passado, o Teatro de Arena deu férias para o seu técnico de luz, tivemos que providenciar por fora. Eu acho justo que os caras queiram e saiam de férias, mas tem de haver substitutos. É altamente irregular que o Porto Verão contrate um técnico por fora para botar numa sala pública, mas já aconteceu, não nego.

Sul21: E há algo que atrapalhe o teatro durante o inverno?

ZVC: Ah, tem. Sabe o que atrapalha muito o teatro no resto do ano? O calendário do futebol. Temos que pegar a tabela da Libertadores da América e do Brasileiro e fugir daquelas datas e horários. Houve uma vez em que o Grêmio estava nas semifinais da Libertadores e jogaria numa quarta-feira. Nós tínhamos uma apresentação no Bourbon Country na terça e na quarta. Terça tivemos a casa lotada e na quarta, nada. Tabela de futebol é uma coisa que influencia muito. Temos que ficar de olho nela.

Sul21: No Uruguai, as casas de apostas vendem ingressos para qualquer espetáculo, o sistema é interligado.

ZVC: Não sabia, é como se fosse uma rede de Kombis! (risadas) O Porto Verão é, no fundo, uma Campanha das Kombis, a diferença é que em vez de ir na praça, o comprador vai no shopping, onde é bem atendido, etc.

Sul21: Como os espetáculos são escolhidos para fazer parte do PVA?

ZVC: Nós não escolhemos, mas sim evitamos que um mesmo grupo faça mais do que dois espetáculos. A qualidade cai. Sabemos disso porque antigamente liberávamos os grupos para que levassem mais de duas peças. Baixou o número de espetáculos de 120 para 60, mas a qualidade subiu. O termômetro é a satisfação do público. O grande curador é o público.

Sul21: Qual é a importância do PVA para a classe artística?

ZVC: Olha, alguns reconhecem a importância do evento. Outros… O problema é que tem gente que parece que precisa ter patrão… Nós não somos patrões de ninguém. Está todo mundo liberado, quem quer participar que venha, estamos aqui, somos colegas, não somos responsáveis pelos grupos nem administrativa nem profissionalmente. Eu e o Beretta somos dois atores, não somos nem produtores e nem buscamos reconhecimento. Talvez só daqui a muitos anos a gente possa avaliar qual foi a importância do Porto Verão para a classe artística.

“E os teatros estão lotando, todos os teatros, todos os dias. Nós ainda não conseguimos aquilatar o que está acontecendo…”

Sul21: E o público, tem crescido?

ZVC: Sim, demais. Esse ano a coisa explodiu. No ano passado, tivemos uma queda, foi um ano complicado, as pessoas ficaram mais recolhidas, mas esse ano eu realmente não sei o motivo, se foi o advento de uma mulher na presidência da república, a mudança no estado… O fato é que as pessoas estão mais felizes e otimistas. Digo graças a Deus, embora Ele não exista… E os teatros estão lotando, todos os teatros, todos os dias. Nós ainda não conseguimos aquilatar o que está acontecendo, mas chuto um crescimento de 30% de público.

Sul21: Você esteve reunido com o Secretário da Cultura do RS Assis Brasil, você pensa que o modelo do Porto Verão Alegre possa ser “exportado” para o restante do Estado?

ZVC: Sim, pode, sem dúvida. Mas teríamos que descobrir uma fórmula. Esse tipo de evento tem que passar por uma maturação dos artistas e do público. Não é algo para cair de paraquedas, para ser somente instalado, é algo que evolui. Eu fui lá saudar o Assis Brasil. É um homem da cultura, um excelente nome para o cargo. Vou te contar uma história: quando o pessoal da secretaria me chamou para conversar, peguei meu carro, o Beretta, e fomos para a Praça da Matriz. Eu não sabia que não era mais lá! Isto demonstra que… Bem, demonstra que eles deixaram um prédio charmoso e que os caras que organizam um evento importante em Porto Alegre não frequentavam a SEDAC há muito tempo.

Sul21: Poderia ser mais específico para com nossos leitores em sua crítica? (risadas)

ZVC: (risadas) O que quero dizer é que faltou política cultural na gestão passada. Acho que, por mais de esquerda que eu seja (E SOU, deixe bem claro na entrevista), tem que acabar a tutela. Nós vivemos num mundo completamente diferente daquele de 30 anos atrás. Acho que a obrigação das secretarias da Cultura em geral não é a de financiar a cultura. Eles não têm nem orçamento para isso. A obrigação deles é chancelar os bons projetos, facilitar, abrir espaços. E incluir, pois os bons projetos têm de passar pela inclusão e pela diversidade.

Sul21: A Secretaria da Cultura do RS começa em que ponto?

ZVC: Cara, eles vão começar do zero, eles não têm nem uma sucata para refazer! Aquilo era uma cota do PP. Só.

“Na primeira reunião saía faísca entre os dois, parecia que iam se matar na nossa frente…”

Sul21: A Secretaria da Cultura do estado tem âmbito, obviamente, estadual, como levar a cultura ao interior?

ZVC: Há como. Veja o exemplo da Jornada Literária de Passo Fundo. Eles construíram outra coisa a partir de uma ideia semelhante a da Feira do Livro de Porto Alegre. Eles fizeram um evento com a cara da cidade. Então… Nós lançamos um embrião ainda no governo Olívio, com o secretário Luiz Marques. Houve a participação da RBS, através do Rogério Caldana. Na primeira reunião saía faísca entre os dois, parecia que iam se matar na nossa frente, mas mesmo assim o resultado daquela reunião foi um negócio maravilhoso. Montamos o CTG – Circuito de Teatro Gaúcho. Então, nós pegamos todas as regiões onde a RBS tinha afilhadas – 10 regiões – e nós saíamos para cada uma delas com cinco espetáculos teatrais. Nós nos instalávamos na cidade junto com um oficineiro (um Dilmar Messias, um Camilo de Lélis, gente do melhor nível). Bom, então no primeiro dia o oficineiro pegava o grupo local da cidade e começava uma oficina com os caras. Daí, segunda se apresentava um grupo de Porto Alegre, terça outro, quarta outro… E na sexta encerrava-se os nossos espetáculos de Porto Alegre. No sábado, era a vez do grupo da cidade. Era sensacional. Nós deixávamos algo na cidade.

Sul21: O público ia? Havia movimentação?

ZVC: Nossa! A Secretaria da Cultura pagava o cachê padrão, a RBS dava mídia e lotávamos todos os dias. Era um embrião de algo que hoje poderia andar por suas próprias pernas, mas aí veio outro governo e a coisa não prosperou.

Sul21: E foi proposta uma retomada na reunião?

ZVC: Acho que isso pode e deve ser retomado. Mas não diretamente por mim. Naquela época, tinha mais tempo. Hoje tenho 52 anos, trabalho no Rio, moro aqui e minha vida é um rolo. E tenho dois espetáculos ativos: Os Homens de Perto I e II.

Sul21: E provavelmente criarás outro logo…

ZVC: Sim! Este ano quero fazer um monólogo do Tchékhov, Os Malefícios do Tabaco, um troço genial, um texto pequeno que já tenho quase decorado. Estou namorando uns diretores aí para montar… Esse ano isso tem que sair da gaveta. Na verdade, eu gostaria de sair um pouco da linguagem do teatro de revista que fazemos em Os Homens de Perto, que é muito divertido, mas pouco profundo. O teatro de revista sem vedete é um gênero válido do qual eu me orgulho muito de fazer, mas gostaria de fazer também outro tipo de teatro. Afinal, o Julio Conte me convenceu e mostrou com Um negócio chamado família que eu poderia fazer drama. Eu gostei e sou muito grato a ele. Ele mostrou a mim que eu era um ator, não só um humorista. Não estou diminuindo os humoristas, mas ele me mostrou que eu podia me aventurar. Fazer algo dramático. O drama diverte internamente o ator, é isso.


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