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22 de novembro de 2010
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11:10

História Regional da Infâmia, de Juremir Machado da Silva

Por
Sul 21
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História Regional da Infâmia, de Juremir Machado da Silva
História Regional da Infâmia, de Juremir Machado da Silva

Igor Natusch

O gaúcho, via de regra, cultiva ou ao menos gosta das suas tradições e da sua história. Guarda com seus heróis uma relação afetiva próxima da cumplicidade, lembrando de feitos, lutas e conquistas quase como se tivesse participado delas, lenço no pescoço e mosquete em punho, das batalhas de Seival ou Ponche Verde. Povo forte, aguerrido, bravo e que olha com orgulho para o seu passado de luta por liberdade, igualdade e humanidade. É fato: cantamos o hino de nosso estado mais alto e com mais entusiasmo. Acreditamos piamente que sim, nossas façanhas servem de modelo a toda terra.

E aí aparece um Juremir Machado da Silva querendo tumultuar essas certezas todas. O cidadão é, sem duvida, mal intencionado: dispõe-se a escrever nada menos que uma História Regional da Infâmia (L&PM, 344 pp., R$ 48), levantando uma série de fatos desagradáveis sobre eventos que se tornaram parte do imaginário gaúcho. Se formos levar a sério as ousadas declarações desse estraga-prazeres, Bento Gonçalves era um “corsário”, assassino e corrupto. David Canabarro, por sua vez, surge como um traidor que, para salvar o próprio couro, desarmou as tropas que comandava e permitiu que fossem massacradas pelo inimigo. A própria Revolução Farroupilha se mostra um palco de intrigas e deslealdades, minada pelas vaidades, consumida pela roubalheira, manchada com o sangue dos escravos que dizia querer libertar. Juremir vai tão longe que chega a comparar os farrapos com o MST e as Farc – desatino que, não se duvide, ainda levará algum descendente da Revolução Federalista a puxar um facão metafórico e a ressuscitar os tempos da degola.

A bem da verdade, é preciso dizer que pouco do que se lê nesse livro infame é realmente novo. Outros, antes de Juremir, já tinham tentado levantar esse tipo de acusação contra o glorioso passado da mui honrada nação gaúcha. Mas Juremir consegue reunir todos esses desagradáveis relatos e pesquisas em um só lugar, unindo-os com um texto veloz e farto suporte documental. Não há grandes introduções ou rodeios. Fiel ao estilo polemista que o consagrou tanto na Academia quanto nos meios de comunicação, o autor vai listando iniquidades, uma atrás da outra – tanto que, após apenas 25 páginas, já terá nos dito que a Revolução era um antro de roubalheiras, que Domingos José de Almeida financiou gastos de guerra com a venda de negros, e que jamais houve real intenção de libertar os escravos que lutaram ao lado dos farroupilhas. E ainda tem mais de 300 páginas de lembranças incômodas pela frente…

Há, em alguns momentos, certo exagero nas tintas. Compromissado com o seu próprio legado de polêmicas (que chegou ao ápice na briga com o escritor Luis Fernando Verissimo, uma figura que não se imagina capaz de discutir nem com o carrasco à beira do cadafalso), o escritor mantém o tom do texto sempre uma oitava acima – o que prende a atenção, mas acaba cansando o leitor. É um livro que, por mais interessante que seja, não se consegue ler em uma só sentada. Não apenas pela necessidade de digerir as muitas informações, mas também porque a intensidade acaba deixando o leitor aturdido. Não é caso de se dizer que é um demérito do livro – afinal, Juremir Machado da Silva tem noção clara do vespeiro que está cutucando, e sabe que a simples exposição de fatos históricos não é suficiente para balançar conceitos tão arraigados na memória coletiva gaúcha. O tom é um recurso consciente, é uma opção estilística e argumentativa que funciona bem, mesmo que provoque pausas na leitura.

Nossas façanhas, por menos reais que sejam, seguirão servindo de modelo a toda terra. Difícil imaginar que o lançamento da História Regional da Infâmia provoque mudanças nos livros didáticos ou mude o roteiro de aulas das professoras de primeiro e segundo graus. Lendas são, a seu modo, inquebrantáveis – ainda mais lendas como essas, que se tornaram alicerce do imaginário de um povo sobre si mesmo. Continuaremos aplaudindo o Desfile Farroupilha e o Hino Rio-Grandense continuará sendo cantado mais alto que o Brasileiro nas partidas de futebol. Mas uma histórica nuvem cinzenta nublará nossas festas tradicionalistas e livros escolares. E Juremir Machado da Silva terá dado sua contribuição inequívoca a essa desagradável, incômoda e persistente sombra de verdade que insiste em incomodar a beleza idílica da ilusão que move nosso gauchismo. Só por isso, as páginas dessa História infame não terão sido escritas em vão.


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