Entrevistas|z_Areazero
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13 de janeiro de 2020
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11:08

Investimento privado não vai puxar crescimento econômico se não houver demanda, avalia professor da UFRGS

Por
Luís Gomes
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Investimento privado não vai puxar crescimento econômico se não houver demanda, avalia professor da UFRGS
Investimento privado não vai puxar crescimento econômico se não houver demanda, avalia professor da UFRGS
Alessandro Donadio Miebach conversou com o Sul21 sobre o estado da economia brasileira em 2020 | Foto: Arquivo Pessoal

Luís Eduardo Gomes

A vitória nas urnas de Jair Bolsonaro, então no PSL, criou uma euforia em certos segmentos sobre a expectativa de crescimento econômico. Na esteira de uma suposta recuperação, otimistas falavam até em alta próxima ou superior a 3% e o próprio Banco Central começou o ano com uma perspectiva de crescimento de 2,4%. A prática mostrou um resultado praticamente igual ao que se via nos anos do governo Temer, na casa de 1%.

Para avaliar o primeiro ano da economia sob a gestão do ultraliberal Paulo Guedes, o Sul21 conversou com o professor Alessandro Donadio Miebach, do Departamento de Economia e Relações Institucionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele aponta que, apesar de algumas diferenças em relação ao governo anterior, os resultados foram os mesmos, principalmente porque, motivada pela demanda não aquecida, ainda haveria uma grande capacidade instalada ociosa nas indústrias brasileiras.

Por essa razão, ele também diz acreditar que a promessa do governo de que o crescimento virá a partir de uma “chuva de investimentos” não deve se concretizar, defendendo que seria necessária uma política industrial que o governo ainda não demonstrou interesse em apresentar.

A seguir, confira a íntegra da entrevista.

Sul21 – Qual tu achas que foi a marca da gestão econômica do Paulo Guedes em 2019? Havia uma promessa, no início do ano, de aumento do PIB acima de 2%, ou pelo menos na casa dos 2%, e a gente viu a continuidade dos resultados do governo Temer. A promessa de decolagem da economia não se viu. Como tu avalias esse primeiro ano?

Alessandro Donadio Miebach: Acho que o que caracteriza a gestão Guedes ao longo de 2019 é que os resultados que ele obteve foram uma continuidade do período anterior, entretanto, com algumas modificação em relação ao que vinha acontecendo no governo Temer. Acho que a principal característica que a gente visualiza da economia em 2019 é que a gente teve uma mudança no patamar do câmbio. O câmbio apreciou e, de fato, é uma inflexão ao período anterior, o Brasil está operando agora com o câmbio apreciado em relação ao ano passado. Isso está associado com outro movimento que também caracterizou a gestão Guedes, que foi a redução da taxa de juros, isso articulado com a manutenção da compressão salarial. Então, acho que o que caracteriza a gestão do Guedes é que ele está buscando implementar um conjunto que a gente chamaria de estrutura de preços chilenos. Qual é? Juros baixos, moeda doméstica depreciada e salário comprimido. É uma combinação que, tradicionalmente, se associa a uma expectativa positiva de crescimento, só que, em geral, associada à plataformas exportadoras. Só que a gente não está numa plataforma exportadora, a gente está no Brasil e aí é onde essa estratégia neoliberal, essa combinação de preços, dada a estrutura da nossa economia, não traz resposta em termos de crescimento, porque tu não tem demanda. Os mercados externos estão travados. Os principais mercados para as nossas exportações industriais estão em recessão, como é o caso da Argentina, e a nossa estrutura produtiva para exportação é muito mais voltada para bens primários. O problema, na minha concepção, é que tu trava uma ausência de política fiscal de gasto. Precisa de demanda para que essa estrutura de preços, que seria favorável ao crescimento, de fato se manifestasse, acelerasse.

Sul21 – O grande mantra econômico que vinha sendo defendido é que era pra preciso ajustar a economia para que pudesse “chover investimento externo”. O cara sairia da lógica desenvolvimentista que marcou os governos petistas, em que o Estado puxava investimento, e isso seria substituído pelo investimento privado, com a promessa, especialmente, do investimento externo. Por que isso não aconteceu da forma como o governo esperava?

Alessandro: O governo baixou os juros e esperava o crescimento, só que tem um excesso de capacidade ociosa na economia. Não vai ocorrer investimento. A taxa de juros de fato está num patamar bastante cheio para os padrões brasileiros, só que tu não teve essa chuva de investimento que garantisse o crescimento na magnitude das expectativas que foram formuladas no final de 2018. O motivo, na minha percepção, é que ainda tem excesso de capacidade ociosa. O empresário não vai investir para aumentar a capacidade, que é o investimento no sentido macroeconômico, para aumentar a capacidade produtiva, se não tem demanda para os seus produtos. ‘Bom, vou esperar ter melhores condições de demanda para fazer a avaliação se vou fazer investimento ou não’. Tu tem uma restrição de demanda que está inibindo investimentos e a própria reação dos investimentos em relação à redução de juros sinaliza que isso parece uma hipótese bastante consistente. Baixou os juros e não veio investimento. Tu tem um mercado de trabalho que está deprimido. Tu tem ou desemprego ou colocações em condições muito mais precárias, trabalhadores part-time, trabalho intermitente ou o trabalhar autônomo. Tu tem uma série de condições que estão inibindo a atividade econômica no sentido de os consumidores demandarem mais bens e justificar o investimento produtivo.

Sul21 – E possível esperar alguma mudança em 2020 ou o cenário deverá ser o mesmo?

Alessandro: Acho que a gente tem dois polos de análise. Tu tem os analistas excessivamente otimistas, inclusive no sentido de justificar as políticas que estão sendo adotadas pelo atual governo, e, de outro lado, tu tem uma série de análises que estão associadas muito a uma rejeição ao governo Bolsonaro e a uma crença que ele será um desastre. Eu acredito que os dois estão equivocados e que vai ter um caminho intermediário. Justamente pelo excesso de capacidade ociosa na economia, não me parece que tu vai ter uma retomada do crescimento tão acentuada em 2020. Isso é uma coisa. Logo, seria uma tendência de crescimento ainda baixo ou não tão pronunciado. Por outro lado, o que a gente tem visto do governo, e temos que estar atentos a isso, é que ele tem uma retórica liberal, mas a gente vê, principalmente a partir do último trimestre, algumas medidas que não necessariamente a gente pode chamar de liberais. Por exemplo, o controle de preços no setor bancário com o limite do cheque especial, a própria política de liberação do FGTS. Então, a gente pode trabalhar com a expectativa de que vai ter um crescimento um pouco maior em 2020. A questão da taxa de juros também pode implicar em reduzir o serviço da dívida do país, que onera as contas do governo…

Sul21 – E também dos estados.

Alessandro: Exatamente. Isso é uma coisa que pode abrir algum espaço para alguma forma de gasto. Então, me parece que a gente tem que tomar cuidado ao dizer que o governo Bolsonaro não vai tomar medidas para estimular o crescimento. Eu acredito que pode ter algumas ações do governo que, inclusive, podem ser feitas numa retórica da oferta, mas com efeito sobre a demanda. Eu posso usar a retórica que estou fazendo política de ofertar, mas, de maneira efetiva, estar fazendo alguma forma de atuação na demanda, principalmente via investimento público, alguma coisa em termos de ações para estimular a atividade. Por exemplo, vai ter o efeito, que vamos ter que verificar como vai se dar, que é o do saque-aniversário do FGTS. Tu tens também alguma dinâmica que pode ser associada ao crédito. Evidente que, o canal do crédito, como incentivo ao consumo, tem uma restrição que é a própria mudança do mercado de trabalho. O que acontece: se eu tinha um emprego formal, eu tinha uma forma de obter crédito, como autônomo é outra, mais cara ou com volume menor.

Sul21 – Sim, é uma oferta menor para trabalhadores de plataforma, que são aqueles postos de trabalho que mais crescem.

Alessandro: Mas o meu ponto é que as condições para crescer, que são a compressão dos salários, o aumento da margem de lucros, um câmbio depreciado, estão ali.

Sul21 – Aí eu te pergunto: que crescimento é esse? Quando se fala em crescimento, a promessa liberal, do Paulo Guedes é que crescendo o bolo isso vai respingar na base. Esse crescimento que está se vislumbrando, daqui a pouco de 2%, os otimistas falam em um pouco mais, pode significar um crescimento de renda ou é justamente a compressão salarial que justifica o crescimento e ele não deverá se refletir em ganhos salariais?

Alessandro: Eu acredito que, como teve uma mudança institucional forte, que foi a reforma trabalhista, o crescimento, hoje em dia, tende a repercutir de maneira diferente no mercado de trabalho do que repercutia há seis, sete anos atrás. Por quê? Porque mudou a estrutura do mercado de trabalho. A primeira coisa que a gente tem que ter em mente é que tu vai ter um aumento de salário mínimo muito pequeno, basicamente apenas a reposição da inflação, e o salário mínimo tem efeito sinalizador para vários salários na economia. A tendência é que, num contexto em que há uma elevada desocupação, muitos trabalhadores alocados em atividades intermitentes ou autônomas, capacidade ociosa elevada, uma taxa de crescimento não tende a se refletir em aumento de renda, principalmente entre as camadas de menor renda da população. O que eu posso ter não é um aumento de salário, o que poderia ocorrer, numa hipótese remota, seria um efeito folha de salário. Seria tu aumentar o nível de ocupação da capacidade instalada. Tu emprega mais pessoas, só que essas pessoas vão ser empregadas com o mesmo salário vigente. Então, poderia acontecer um aumento massa [salarial] se tu tivesse um aumento da capacidade instalada, só que a renda individual das pessoas não vai aumentar. Para acontecer, seriam necessárias algumas políticas de incentivo ao gasto no sentido de ocupar a capacidade instalada. Agora, é que a sinalização que ocorre desse crescimento não parece, à primeira vista, que vá refletir em melhoria das condições dos trabalhadores, porque os salários estão estagnados e dado que o mercado tem excesso de trabalhadores, é um mercado que beneficia o comprador de trabalho nesse momento.

Sul21 – Tem alguma perspectiva relevante de redução de desemprego a partir dessas medidas como a MP verde e amarela?

Alessandro: O que eu noto é que a carteira verde e amarela e essas mini-reformas trabalhistas continuam sendo políticas direcionadas a reduzir ou comprimir os salários, ou seja, a mudar os aspectos da barganha salarial. Se eu tenho para o trabalho, isso pode ter algum efeito. O problema é que, se tu tem capacidade ociosa, se não tem quem compre teus bens, se eu não tenho para quem vender meus bens, eu não vou contratar o trabalhador por 10 ou por 9 reais. Igual, eu vou incorrer nesse custo e não vou vender o meu produto. Essa é uma política de oferta. Ela faz sentido numa perspectiva de que há uma demanda puxando a produção industrial. Então, talvez reduzir o custo do trabalho poderia ter algum sentido.

Sul21 – Se tivesse, por exemplo, perspectiva de aumento das exportações.

Alessandro: Exatamente, que é o que as plataformas exportadoras fazem. Comprimem o salário interno para ganhar competitividade e vender para fora. Só que tu não enxerga isso no horizonte. Então, dado que o mercado de trabalho está numa condição bastante ruim no processo de barganha salarial, a probabilidade maior é que isso reflita na preservação e manutenção da margem de lucro das empresas, não se reflita em volume de vendas e volume de empregos.

Sul21 – Existe uma discussão sobre que tipo de políticas o Brasil deveria ter em termos de exportação. Há quem diga que o Brasil tem que realmente focar nas exportações primárias, no agronegócio, e não tem que ter política industrial, o que os governos petistas indicavam na defesa da indústria nacional. Essa ideia que alguns críticos chamam de “fazendão”, de que é preciso reforçar a pauta exportadora primária?

Alessandro: É um equívoco absoluto.

Sul21 – Mas tu achas que essa é a aposta do governo ou não é bem assim?

Alessandro: Acho que tem um pouco disso, tem um pouco desse componente de seguir o que a gente chama de vantagens comparativas, que é uma teoria do século XIX. A questão é que isso não é adequado para um país como o Brasil. Tu pode pensar em um ou outro país de pequena população, de pequena dimensão, de que isso poderia, de alguma forma, funcionar. É uma discussão que tu poderia fazer em alguns casos, um tema aberto para debate. Mas um país como o Brasil, de 200 milhões de habitantes, com uma estrutura social extremamente complexa, tu não vai conseguir ter um processo de desenvolvimento baseado na exportação de commodities. Nenhum país do tamanho do Brasil pode se viabilizar com um processo de primarização. Não tem como.

Sul21 – Por quê?

Alessandro: São processos que assumem uma especialização produtiva. São processos que, em geral, têm pouco encadeamento setorial. Então, por exemplo, tu vai produzir um bem primário, esse bem primário não vai ser insumo para uma atividade produtiva nessa mesma economia, então não vai ter efeitos multiplicadores na economia. Então, a probabilidade de tu conseguir empregar toda a população, ou um grande contingente da população nesses setores, é muito remota. São processos que tendem a engendrar uma maior concentração de renda. O que não quer dizer, e isso é importante, que tu deva abdicar dos setores exportadores, dos setores primários, não é isso que está sendo colocado. A questão é que tu não pode se resumir aos setores primários. Então, um setor primário pujante articulado com uma indústria pujante permite uma série de encadeamentos, uma dinâmica econômica bastante relevante. Por exemplo, agora a gente está em crise, mas o próprio estado do Rio Grande do Sul tem essa característica. Talvez, na última década, isso tenha perdido um pouco de intensidade, mas o Rio Grande do Sul tinha um agronegócio pujante e sempre teve um setor industrial relevante. Ambos os setores foram relevantes para o desenvolvimento do Estado.

Sul21 – Existe um dado concreto de que a indústria tem tido cada vez menos participação no PIB brasileiro e isso já vem desde os anos 1990. O volume do PIB industrial nem sempre esteve em queda, até cresceu, mas abaixo do setor de serviços, por exemplo. Isso é algo que pode ser revertido ou, dadas as condições geoeconômicas, a forte industrialização na Ásia, o Brasil não vai ter como retomar, por exemplo, a grande produção de eletrodomésticos da linha branca que tinha? Isso pode vir com a melhoria da produtividade, como defendem economistas liberais, ou essa desindustrialização é irreversível?

Alessandro: Acho que é uma escolha que o País pode fazer. Se tu for pensar no caso chinês, qual era o perfil da indústria chinesa na década de 70? Era um país com uma densidade industrial muito baixa, baixíssima tecnologia. Aquela sociedade tomou uma decisão de se industrializar, se aproveitou de um momento de transformação tecnológica e hoje em dia tem uma indústria pujante com alta tecnologia embarcada. Não é nada dado, como se fosse uma maldição, que nos destine à determinada trajetória. A trajetória econômica e social de uma sociedade é construída a cada instante com base nas decisões que a gente toma. Como existe agora uma indicação de um novo processo de transformação industrial, com a incorporação de novas tecnologias, a famosa indústria 4.0, é uma questão de escolha.

Sul21 – O que precisaria para o Brasil se adequar a esse processo?

Alessandro: Tu teria que ter uma concepção e uma estratégia de desenvolvimento. Tu tem vários exemplos ao longo da história de estratégias de desenvolvimento, algumas melhor sucedidas e outras com grau de sucesso menor. Tu tem, por exemplo, o caso sul-coreano, o caso japonês, o caso chinês. O caso brasileiro dos anos 50, 60 e 70, que teve o seu momento de sucesso e o colapso com a crise da dívida. É uma questão de estratégia para definir uma trajetória para isso. É possível? É. Como é que tu faz? Tu faria isso na medida que a sociedade, eu quero dizer o governo e a setor privado, se imbui de uma mesma visão e, a partir dela, constrói uma estratégia de desenvolvimento. Evidentemente que, nesse momento atual, não parece provável que isso vá acontecer. Mas, da mesma maneira esse argumento de ênfase na primarização, que nunca vai se industrializar, é um argumento que tu certamente também ouvia no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX no Brasil, o que se chamou de República Velha. Os processos são históricos, existem possibilidades, a questão são as escolhas que os atores fazem. Nesse momento, eu não enxergo essa possibilidade, a indústria brasileira vem perdendo densidade, vem perdendo a capacidade de encadeamento. Isso é grave, porque os ganhos de produtividade ainda são realizados na indústria, bem como na prestação de serviços associada, vinculada à indústria. O setor de serviços é muito heterogêneo, tem atividades de baixa produtividade, mas tem atividades de elevada produtividade. Em geral, associadas a uma prestação de serviços para o setor industrial. Um país de 200 milhões habitantes, com a nossa renda média, nossa situação social, tem que buscar aumentar o PIB per capita. Como aumenta? Crescendo com ganho de produtividade, que vão acontecer no setor industrial. Pelo menos, até o momento foi assim. O país que mais cresceu, que apresentou uma transformação social relevante no final do século XX e no século XXI, foi a China. Baseada no quê? No setor industrial. Então, a indústria ainda não morreu. Pode ser que venha a morrer, é possível, o futuro é indeterminado, é histórico, está em transformação, mas o fato é que, hoje em dia, os processos de desenvolvimento ainda são associados à indústria. De novo, os casos que a gente enxerga de transformação de estruturas socioeconômicas estão vinculadas com transformações no setor industrial. Vamos falar, de novo, de Coreia do Sul, China, Cingapura, Taiwan. Na própria América do Sul, em menor escala, o caso brasileiro.

Sul21 – Pelo que tu vê no governo até agora, alguma coisa indica um possível ganho de produtividade?

Alessandro: Não. Tem vários fatores, mas não me parece que tu tenha alguma política industrial no sentido de incorporação de tecnologia. As empresas brasileiras, algumas inovam, mas, digamos assim, o cenário não está favorável a investimentos. Em geral, eu incorporo produtividade e progresso técnico quando eu substituo bens de capital. Eu adquiro bem de capital, em geral, ele é tecnologicamente mais avançado e vai fazer aumentar a produtividade. Para isso, tem que ter investimento. Se a minha capacidade está ociosa, eu tendo a não fazer isso. Isso é um elemento. Outro elemento é que algumas fontes de inovação estão barradas, como é o caso da Petrobras, a privatização da Embraer basicamente travou um setor que era relevante. O Brasil era um dos poucos países que tinha uma indústria aeronáutica própria. Então, tu não vê nenhuma política deliberada no sentido de aumentar a produtividade do trabalho. Basicamente, a ênfase do governo até o momento é uma forma de produtividade que não está necessariamente associada à incorporação de progresso técnico. Tu tem uma forma que está associada, para usar um termo antigo, da economia do século XIX, ao aumento da taxa de exploração dos trabalhadores, que é a mudança da legislação laboral, dinamizar o uso do tempo do trabalhador, mas não em intensificar a capacidade produtiva dele através do uso de tecnologia mais avançada. Tu não vê uma estratégia deliberada em relação a isso por parte do governo. O que vai acontecer é que talvez algumas empresas de alguns setores façam esse processo de inovação. Outras não, outra talvez sejam extintas ou não tenham capacidade de adoção dessas tecnologias. Tem outro elemento que a gente tem que considerar nesse processo de incorporação do progresso técnico no Brasil que é o papel do BNDES. O BNDES, na atual conjuntura, com a mudança de sua política de juros, aparentemente não está desempenhando o papel que deveria desempenhar em termos de ser uma alavanca do investimento. Isso é uma coisa a se pensar. Evidente que o governo emitiu vários sinais contraditórios em relação ao BNDES no ano passado. Num início de discussão, inclusive, relacionado às questões legais das operações do BNDES, passando por mudanças de gestão, com a saída do Joaquim Levy. Então, é uma questão em aberto. Não se visualiza nada em termos de uma política industrial do governo, o que seria, em certo sentido, esperado na medida em que uma política industrial é contraditória à visão de mundo externada pelo Paulo Guedes e pela equipe dele. O importante é só ressaltar que, no caso chileno, que é uma referência para a atual econômica, tu teve uma entidade estatal com um papel muito importante na reestruturação do setor industrial chileno no final dos anos 80 e início dos anos 90. Então, é necessário ter uma política industrial. Não visualizo casos de desenvolvimento em que tu não tenha uma estrutura estatal pensando, com mais intervenção ou com menos, uma ação deliberada no sentido de desenvolver a indústria e buscar aumento de produtividade, mesmo por uma questão de velocidade. Dada à competição internacional, eu preciso ganhar mercados de maneira mais rápida, e isso eu faço com uma ação deliberada do estado. Não me parece que a gestão Guedes tenha alguma sinalização nesse horizonte. A ideia da gestão Guedes é justamente remover o estado da economia e deixar que esses processos ocorram de maneira espontânea, o que não parece ser compatível com a evidência histórica.

Sul21 – Pois é, essa promessa de que o investimento privado vai assumir o papel do Estado em puxar o crescimento tem precedente na história do Brasil?

Alessandro: Eu não conheço, não tenho percepção em relação a isso. A referência que se tem dos grandes liberais, no século 20, por exemplo, tu tens a República Velha, que é um liberalismo até questionável pela ênfase na política do café, mas, de qualquer forma, tu não tem um desenvolvimento industrial importante, tu não tem nada. O País era uma fazenda até a década de 30. No governo Fernando Henrique, no processo de privatizações, tu teve essa expectativa, com alguns resultados positivos pontuais que a gente poderia até considerar que não foram tão ruins, como o caso da telefonia, que teve alguma mudança, mas ali iniciou o processo de reprimarização da economia brasileira de maneira mais acentuada. Não me parece que na história do Brasil tu tenha condição de ter um processo de industrialização espontâneo, mesmo porque a gente não está num patamar de desenvolvimento tecnológico e econômico que permita isso. Em geral, historicamente, os países se tornam defensores do livre comércio a partir do momento em que eles atingem um determinado patamar de desenvolvimento econômico e industrial. Foi o que aconteceu com a Inglaterra no século XIX, por exemplo. Nos Estados Unidos, a defesa do livre comércio vai ser uma realidade no final do século XIX e no século XX. Até a guerra civil norte-americana, tu tinha os estados do norte com políticas de defesa industrial. Um dos principais nomes, que está até na cédula de US$ 10, o Alexander Hamilton, era um defensor das tarifas e da ideia de proteção da indústria nascente. Enquanto os EUA desenvolviam seu parque industrial, adotaram medidas protecionistas, tinham uma política deliberada. A medida que tu atinge um patamar de desenvolvimento mais robusto, passa a defender políticas de livre médico, aí sim, tu está em um patamar que tuas indústrias vão se desenvolver de maneira mais inercial, digamos assim. É sintomática, por exemplo, que, hoje em dia, os Estados Unidos esteja voltando atrás. Está saindo de políticas de livre comércio para políticas de restrição comercial, isso num país que está diagnosticando um processo de desindustrialização efetiva. Isso é sintomático. Em geral, evidente que existem fatores relevantes no livre comércio sob alguns aspectos, em alguns setores tu expôr a produção à concorrência externa, mas tem outros setores ou algumas indústrias específicas que precisam ser protegidas até ganhar um nível de desenvolvimento, uma capacidade produtiva para competir mercado externo. O meu ponto é o seguinte: tem que ter uma estratégia deliberada. Qual estratégia? Isso aí, sem dúvida, é estratégia de debate para a sociedade, vai ter custos associados a isso, existem ônus, existem ganhadores e podem existir perdedores nesse processo, mas é questão da sociedade pensar qual é a estratégia. De novo, tem vários exemplos históricos, talvez a gente possa se inspirar neles, mas não tem como a gente imitar eles. A nossa realidade é diferente, nós vamos ter que descobrir o nosso caminho, mas é uma questão deliberada.

Sul21 – E tu achas que o governo não apresentou isso até o momento?

Alessandro: Não apresentou. Não vejo essa estratégia no sentido de incremento de produtividade via incorporação de progresso técnico, via incorporação de novas tecnologias, e de reposicionamento do parque industrial brasileiro. A tendência à desindustrialização permanece. Essa tendência não me parece ter sentido qualquer tipo de inflexão no atual governo. A verdade é que, por concepção, o atual governo recusa-se a ter uma política industrial, dado que ele é um governo inspirado numa perspectiva mais acentuada de defesa do livre comércio de maneira generalizada e não seletiva. Ele está mais focado para isso. O que talvez ocorra, e a gente tem que estar atento, é que o governo pode preservar a retórica da defesa do livre comércio e, em algum momento, passar a ter uma atitude mais pró-ativa em relação a algum setor industrial. Como eu falei antes, eu percebo uma certa mudança, na qual tu mantém a retórica, mas os fatos se impõem. À medida que não cresce, à medida que o mercado de trabalho continua estagnado, à medida que as eleições se aproximem, talvez o pragmatismo se imponha, mas é uma coisa para a gente ver.


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