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18 de novembro de 2019
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11:28

MP Verde Amarela levará à aceleração da concentração de renda no país, diz pesquisadora do Dieese

Por
Luís Gomes
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Patrícia Pelatieri conversou com o Sul21 sobre os possíveis impactos da MP Verde Amarela no mercado de trabalho brasileiro | Foto: Fetquim/Divulgação

Luís Eduardo Gomes

No dia 11 de novembro, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) apresentou o plano elaborado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, para enfrentar o maior problema social do Brasil, o desemprego que atinge cerca de 13 milhões de pessoas. Seguindo a linha já anunciada por Bolsonaro desde a campanha de “menos direitos e mais empregos”, o programa de emprego Verde Amarelo, nome oficial do plano, tem por objetivo reduzir os custos de contratação para jovens de 18 a 29 anos em postos de trabalho que paguem até um salário mínimo e meio (R$ 1.497 atualmente).

Pelas regras previstas na Medida Provisória (MP 905) que apresentou o programa (e precisa ser ratificada pelo Congresso), empregadores podem contratar até 20% de sua força de trabalho na nova modalidade e em contratos de, no máximo, dois anos. A expectativa do governo é que o Verde Amarelo gere 1,8 milhão de empregos até 2022.

Para tentar entender o impacto que o programa pode ter no mercado de trabalho, o Sul21 conversou com coordenadora de pesquisas do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Patrícia Pelatieri.

Para ela, o resultado mais sensível desse programa, caso sua implementação seja autorizada pelo Congresso, será a precarização dos postos de trabalho. “Nós vamos ter um rebaixamento do padrão remuneratório no país. Nós vamos ter, certamente, uma aceleração na concentração da renda no país e um empobrecimento da classe trabalhadora e das camadas mais populares”, avalia.

Ela avalia que essa redução no padrão remuneratório dos postos de trabalho ocorrerá, primeiro, pela diminuição de encargos sociais que são percebidos pelos empregadores. Em segundo lugar, porque a possibilidade de gerar postos de trabalho com vencimentos menores tende a ser usada como referência para as demais contratações.

“Parte desses encargos é o salário diluído no tempo, o trabalhador vai receber, como o FGTS, o 13º, adicional de periculosidade, enfim, tem uma série de coisas tratadas na MP. Quando você reduz tudo isso, ocorre um rebaixamento da remuneração total do trabalhador. Isso passa a ser referência para os demais postos de trabalho. Quando se imagina que a solução para o desemprego é gerar postos de trabalho precários, com jornadas mais extensas, menos direitos, menos remuneração para o segmento mais jovem, você acaba condenando à reprodução desses postos de trabalho sempre precários”, afirma.

Guedes e Bolsonaro apresentaram a MP no dia 11 de novembro | Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

A seguir, confira a íntegra da entrevista com a pesquisadora do Dieese.

Sul21 – O que foi mais destacado pela imprensa depois da apresentação do programa Verde Amarelo foi a questão da desoneração da folha do pagamento, o que não é uma novidade. Guardadas as diferenças, foi uma medida adotada pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) e um estudo do IPEA de 2018 apontou que não teve efeito na geração de emprego. Dá para imaginar um resultado diferente dessa vez?

Patrícia Pelatieri: Esse, de fato, foi um tema destacado, mas eu acho que é preciso associar dois elementos aí. Além da desoneração para os empresários, o programa faz uma precarização, retira remuneração do trabalhador a ser contratado. Então, atua nas duas pontas. Desonera o patrão e onera o trabalhador a ser contratado, uma vez que diminui a sua remuneração.

A desoneração, no governo Dilma, foi feita numa outra perspectiva, que era a perspectiva setorial e tinha ali embutidas algumas contrapartidas, que não se efetivaram. De fato, elas não aconteceram. Mesmo previstas na medida, elas não aconteceram. Então, o resultado dessa desoneração que é do posto de trabalho [a proposta por Guedes], não é setorial, é daquela contratação específica, até pode resultar, no médio prazo, em uma substituição de trabalhadores. Para a economia ou para a geração de novos postos de trabalho, essa medida é inócua. Desse ponto de vista de desenvolvimento, de incremento de produção, não é ela que vai alavancar a melhoria da produção nacional.

Sul21 – A MP tem como alvo gerar empregos para jovens entre 18 e 29 anos que recebam até um salário mínimo e meio. Sempre que se fala em criação de vagas diferenciadas, há um temor de que elas possam virar a regra. Tu acreditas que essa substituição possa de fato acontecer, gerando essa precarização do mercado de trabalho?

Patrícia Pelatieri: Esse é um risco enorme. Primeiro porque, embora ele diga que sejam novas vagas e que seja o primeiro emprego, não tem na MP travas que, de fato, garantam que seja para o primeiro emprego e sejam novas vagas. O empregador pode contratar até 20% do quadro com essa condição que, para ele,  é muito mais vantajosa, uma vez que está desonerado e não tem nenhum compromisso de manutenção desse contrato de trabalho. Esse é um contrato de trabalho por prazo determinado. Tem a regra do contrato por prazo determinado em que, se o empregador não cumprir o contrato acertado, ele tem que pagar 50% do tempo que falta. Neste caso aqui, não tem esse compromisso. Além de ter todos os encargos desonerados, as multas reduzidas, a multa do FTGS, o recolhimento do FGTS [reduzido] de 8% para 2%, ele ainda não tem nem um compromisso do contrato que ele fizer, porque pode romper a qualquer momento.

Aí, veja bem, diz que são novos contratos, mas, se ele tinha 100 trabalhadores, pode contratar 20, vamos dizer. Aí ele contrata esses 20, com contrato por dois anos, não tem nenhuma trava dizendo que ele não possa demitir outros. Então, ele pode demitir outros 20 que estão no prazo indeterminado e ficar na mesma casa de 100 trabalhadores com esse contrato que, para ele, empregador, é muito vantajoso.

Sul21 – A criação dessas vagas não geraria uma pressão para que essas regras propostas sejam estendidas para as demais modalidades de contratação?

Patrícia Pelatieri: Com certeza [existe esse risco]. E, na verdade, essa é só a primeira parte da MP. Ela mexe com várias outras leis e mexe na CLT de tal modo que essa ideia de que é um programa emergencial para atender o segmento mais vulnerável desempregado passa, na verdade, a ser uma política que pode ser estendida para todos os segmentos. É verdade que esse segmento [jovens de 18 a 29 anos] tem uma taxa de desemprego maior, mas também é verdade que é esse segmento que está sendo mais contratado. O problema central do desemprego está na faixa de 29 a 59 anos. Então, começa assim, mas tudo indica que o que eles estão propondo, de fato, é uma desestruturação de todo o regramento do mercado de trabalho. Na verdade, é a segunda onda de uma reforma trabalhista que recentemente aconteceu e que nós estamos começando a colher o resultado agora.

Sul21 – Nós vamos falar da reforma de 2017 ainda, mas focando nesse ponto. Como tu vês o fato de o governo ter usado a MP para realizar uma espécie de nova minirreforma trabalhista?

Patrícia Pelatieri: Eu até nem chamaria de mini, ela é um complemento muito maldoso de algo que eles já fizeram em 2017. Lembrando que diversas matérias estavam naquela MP que o Temer mandou e que caiu porque não podia ser MP da reforma trabalhista, estavam no projeto da reforma trabalhista, depois mandaram de novo na MP da liberdade econômica, como é o caso do trabalho dos bancários ao sábados, como é o caso do trabalho aos domingos, todas medidas que caíram no Congresso e eles estão reeditando nesse medida novamente. Ou seja, é uma sequência de tentativas de desregulamentação que já foram rechaçadas no Congresso e que eles ficam recolocando em medidas provisórias. A rigor, tem uma série de irregularidades regimentais e inconstitucionais nessa MP. Eles reeditam coisas que já foram vencidas em medidas anteriores, então não poderiam reapresentar, e eles mandam como emergencial uma reforma trabalhista, o que pressupõe uma discussão tripartite, muito mais detalhada. Ou seja, está repleta de irregularidades e inconstitucionalidades.

Sul21 – A MP pode ser questionada juridicamente?

Patrícia Pelatieri: Não tenha dúvida. Tem várias associações [já estudando isso], como a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), porque ela altera substancialmente a fiscalização. Ela praticamente impede a fiscalização de empresas. Então, deixa, de fato, o trabalhador a mercê da relação capital-trabalho, sem uma base mínima legal, sem a fiscalização e interfere também na Justiça do Trabalho. Enfim, é uma mexida bastante significativa e uma desregulamentação absurda de todo o arcabouço trabalhista.

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Pelatieri avalia que o programa do governo terá como consequência a redução do padrão remuneratório dos assalariados no Brasil | Foto: Brasil247

Sul21 – Imaginando que a MP seja validada na íntegra. Entre as medidas estão a possibilidade de o trabalhador ser convocado para trabalhar em domingos e feriados, alterações na jornada de trabalho dos bancários, extinção da multa de 10% do FGTS ao empregador, permissão de acordo extrajudicial entre patrões e empregados, estabelecimento de valores fixos para multas por violações trabalhistas. Qual dessas pode ter mais impacto e qual delas é mais perigosa para o trabalhador?

Patrícia Pelatieri: O perigo está no conjunto delas. Vai ser sentida mais diretamente essa precarização dos postos de trabalho. Nós vamos ter um rebaixamento do padrão remuneratório no país. Nós vamos ter, certamente, uma aceleração na concentração da renda no país e um empobrecimento da classe trabalhadora e das camadas mais populares. Nós vamos ter uma população mais adoentada, trabalhando jornadas mais extensivas, o que vai afetar na própria reprodução da força de trabalho, porque vai afetar na família, e possivelmente nós teremos também um retrocesso grande na questão da qualificação da formação acadêmica dos jovens. São medidas que, olhando para o futuro, nós vemos com muita preocupação, porque podemos estar condenando gerações, mais de uma, inclusive, a uma reprodução desse empobrecimento.

Sul21 – A diminuição do padrão remuneratório é pela oferta de vagas com um teto de até um salário mínimo e meio?

Patrícia Pelatieri: Não só isso. Isso é um abrir de portas. Mas, veja, quando você faz um rebaixamento dos chamados encargos sociais, vou colocar assim, parte desses encargos é o salário diluído no tempo, o trabalhador vai receber, como o FGTS, o 13º, adicional de periculosidade, enfim, tem uma série de coisas tratadas na MP. Quando você reduz tudo isso, ocorre um rebaixamento da remuneração total do trabalhador. Isso passa a ser referência para os demais postos de trabalho. Quando se imagina que a solução para o desemprego é gerar postos de trabalho precários, com jornadas mais extensas, menos direitos, menos remuneração para o segmento mais jovem, você acaba condenando a reprodução desses postos de trabalho sempre precários. Isso que eu digo que vai, no cômputo geral, gerar um rebaixamento da remuneração do trabalho no país de uma maneira geral.

Sul21 – O governo colocou nessa MP uma série de contrabandos, como se costuma chamar matérias que não estão diretamente ligadas ao conteúdo central do programa. Uma delas é a revogação da necessidade de uma série de registros profissionais, como o de jornalista. O que isso pode significar? O que tu imaginas que o governo espera com essa medida?

Patrícia Pelatieri: É difícil saber exatamente, pegando ponto a ponto, o que se espera. O que a gente observa é que são diversos assuntos complexos e difíceis misturados numa mesma medida para atender a lógica da redução do Estado em todas as suas frentes, beneficiando segmentos do capital, principalmente do capital financeiro, que está sempre contemplado nas várias medidas que o governo Bolsonaro e o ministro Guedes apresentam. A extinção de categorias reconhecidas significa a extinção de direitos conquistados por essas categorias. Então, muito possivelmente, é um nivelamento do mercado de trabalho nesse patamar mínimo, abaixo do mínimo, na verdade. Nesse patamar de remuneração que o governo insiste em dizer que é o padrão [até um salário mínimo e meio] e o restante seria privilegiado. Foi a mesma discussão na reforma da Previdência. Então, o que a gente observa é que todas as medidas são voltadas para aumentar a concentração de renda, a capacidade e o ganho de segmentos do capital, em detrimento da maioria da população.

Sul21 – É possível dizer que a reforma trabalhista de 2017 teve algum impacto positivo na geração de emprego?

Patrícia Pelatieri: Não, muito pelo contrário. Os números todos, embora seja difícil isolar o que é efeito da reforma trabalhista e o que é efeito da crise — e uma coisa também impacta na outra –, os dados estatísticos e oficiais todos mostram exatamente o contrário. Você tem uma ampliação da informalidade, uma ampliação da subocupação de uma forma medonha. Esse país empreendedor que se fala, na verdade, a gente vê que esses empreendedores são estratégias de sobrevivência, não tem nada a ver com empreendedores. Você tem um aumento absurdo da desproteção social e a taxa de desemprego continua muito alta. Você tem quase 13 milhões de desempregados, 26 milhões de subocupados, quase 5 milhões de desalentados, aqueles que não têm nem como mais buscar emprego. Então, é um quadro muito triste, muito difícil nesse momento para os trabalhadores, porque não há nenhum dado que aponte alguma melhoria, nenhum.

Sul21 – É perceptível alguma mudança no perfil dos empregos criados desde a reforma de 2017? Ficaram mais precários ou também não dá para dizer isso?

Patrícia Pelatieri: Os postos de trabalho que estão sendo gerados são mais precários. São postos informais, sem carteira assinada, e são esses por conta própria, que podem ser microempreendedores, mas que, na sua grande maioria, não contribuem para a Previdência, então também estão desprotegidos. O que você tem é um aumento do número de trabalhadores com formação, com nível superior, ocupando vagas de funções de nível elementar. Você tem aí uma rebaixamento enorme da remuneração, porque esses trabalhadores que têm formação tiram as vagas que são de ocupações elementares daqueles que não têm, jogando esses para o desemprego, e aceitam condições de remuneração e de trabalho muito abaixo do que a sua qualificação lhe dá. Então, o que nós temos são poucos postos de trabalho gerados para o tamanho da necessidade, nós ainda temos uma taxa de desemprego muito alta, e os postos de trabalho gerados são precários.

Sul21 – Qual é a frente que o governo Bolsonaro deveria atacar para gerar emprego e não ataca com esse programa Verde Amarelo?

Patrícia Pelatieri: Na verdade, a gente teria que ter outra lógica. A lógica deveria ser do investimento público, que vai alavancar o investimento privado. Se não tiver investimento público, não vai existir investimento privado. Teria que fazer políticas ativas de geração de emprego e renda, não rebaixando as condições, mas, ao contrário, deveria promover uma melhor distribuição da renda, tanto dentro do próprio trabalho, e, principalmente, teria que se pensar ou que se fazer, na verdade, uma reforma tributária com uma tributação mais justa e progressiva, cobrando de fato de quem concentra muito a renda e distribuindo para as demais camadas da população, para gerar consumo e gerar demanda, o que gera produção e gera emprego. Só assim para a gente sair dessa encalacrada.


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